Diante da fronteira

Robert Rauschenberg e Jasper Johns, Sem título, circa 1955.
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Por JEANNE MARIE GAGNEBIN*

Considerações acerca das teses “Sobre o conceito de história”, de Walter Benjamin

Se conseguirmos sobreviver e lembrar os mortos, 2020 será um ano monstruoso. No Brasil, o confinamento físico provocado pelo isolamento contra o vírus da Covid-19 se desdobrou numa clausura psíquica; foi difícil não ceder a uma indignação, tanto mais verborrágica quanto impotente, ao perceber os efeitos mortíferos das injúrias e dos palavrões vociferados pelo presidente. Como “intelectuais”, isto é, como cidadãos privilegiadíssimos, mesmo que mal pagos no mais das vezes, demo-nos conta ao mesmo tempo de nossa fragilidade e da absoluta necessidade de resistência.

Fragilidade e resistência que deram uma intensidade inusitada às várias celebrações dos oitenta anos da morte de Walter Benjamin: seu suicídio na fronteira franco-espanhola em Port Bou, geralmente rememorado como o gesto desesperado de um melancólico “homme de lettres” (expressão que Hannah Arendt escolheu para designar o amigo), adquiriu outra conotação. Ouso a provocação. Pelo menos nesse gesto, Benjamin provou uma compreensão prática que não costumava demonstrar em vida: se ele não tivesse se matado, teria sido entregue de volta à polícia francesa de Vichy e por esta à polícia nazista, à Gestapo, terminando seus dias num campo de concentração – como foi, aliás, o caso do seu irmão mais jovem, Georg Benjamin, médico comunista de Wedding, um bairro proletário de Berlim. Ele morreu no KZ Mathausen em 1942 quando, segundo os arquivos nazistas, tentou fugir e foi eletrocutado na cerca do campo.

A morte na fronteira de Walter Benjamin lembra, por assim dizer por antecipação, as inúmeras mortes – futuras e presentes – de outros exilados e fugitivos que, como ele, nunca possuem todos os documentos necessários para conseguir adentrar terras mais privilegiadas. Essa morte pode ser rememorada como um desfecho trágico que conclui a vida de um intelectual sempre “deslocado”, um intelectual cujo pensamento crítico consiste, aliás, em vários deslocamentos. Ao mesmo tempo, é uma morte exemplar para tantas outras, anônimas, que continuam acontecendo na mesma bela paisagem mediterrânea, na neve ou nos desertos. Uma morte sem túmulo como aquela de Moisés, mas também como a de tantos desparecidos contemporâneos.

Quando relemos, mais uma vez, as teses “Sobre o conceito de história”, manuscrito que Benjamin carregava provavelmente consigo nos Pirineus em sua misteriosa maleta de couro, devemos, em primeiro lugar, atentar para duas características desse texto: seu contexto histórico e o gênero literário dessa escrita obscura, mas fulgurante.[i] Se não o fizermos, corremos o risco de engessar as assim chamadas “teses” numa interpretação dogmática como se fosse um texto acabado de teoria da história, o que ele, definitivamente, não é.

O próprio Benjamin chamou a atenção para o caráter provisório e ensaístico dessas observações quando escreveu a Gretel Adorno, no início de maio de 1940, que tinha colocado no papel várias reflexões que o preocupavam havia muito tempo, talvez até à sua revelia, mas que não pensava em publicá-las tais e quais porque iam provocar, nesta forma, “o mais entusiástico dos mal-entendidos” (2005, 410).

Sabemos que Benjamin começou a escrever essas “teses” após o pacto de não agressão entre os governos da Alemanha Nazista e da União Soviética em agosto de 1939, isto é, quando desmoronaram as últimas esperanças que os exilados judeus, comunistas, austríacos ou alemães, podiam nutrir em relação à resistência da União Soviética contra a ascensão do fascismo na Alemanha. Os militantes antifascistas alemães, refugiados em Paris, viram-se destituídos de sua nacionalidade pelas autoridades de seu país de origem, mas, simultaneamente, tratados como inimigos potenciais pelo governo francês.

Assim, Benjamin e vários dos seus companheiros de exílio foram transferidos para um “campo de trabalho”, perto de Nevers, numa grande casa senhorial, fria e sem conforto nenhum. Graças à intervenção de amigos franceses, em particular de Adrienne Monnier, dona da Librairie de l’Odéon, Benjamin foi liberado desse campo em novembro de 1939 e pôde voltar a Paris e aos seus estudos na Bibliothèque Nationale – em vez de concentrar seus esforços na obtenção de um visto de saída para os Estados Unidos.

Se relembro esse contexto de perigo e de perseguição, de guerra e de invasão próxima da França pelas tropas alemãs, é para insistir no momento histórico de redação das teses. Momento tenso no qual o autor, apátrida e refugiado, vive o fim de esperanças políticas na luta contra o fascismo e o encerramento num exílio cada vez mais precário. Momento de ameaça, momento de perigo, como o diz a tese VI, momento de confrontação com suas esperanças pessoais e coletivas de resistência. Benjamin não escreve na calma de um gabinete de estudos, mas num quarto provisório (mudou-se inúmeras vezes nos últimos meses em Paris), na iminência da fuga. E escreve, como disse a Gretel Adorno, não a pedido de uma revista científica ou literária, mas escreve para si mesmo, para clarificar o impasse, para se confrontar com reflexões políticas e teológicas que o ocuparam durante toda sua vida – pois ambas, teologia e política, dizem respeito à transformação do mundo.

Insisto nesse caráter de escrita porque hoje em dia, em nossa vida universitária concorrencial e burocratizada, na qual as “produções” contam pontos e os pontos contam avanço na carreira, escrevemos para publicar em revistas de prestígio ou para colocar mais um livro no mercado. O exercício (askèsis) de interrogação e de meditação, próprio da filosofia desde Platão até Foucault, de interlocução consigo mesmo, cuja configuração a escrita permite, cedeu lugar à produção de papers que deveriam oferecer coerência e resultados em vez de tentar elaborar melhor dúvidas e questões.

Ora, nesse quadro de pensamento administrativo e administrado, temos dificuldades em deixar ressoar um texto como as teses “Sobre o conceito de história” que não propõe nenhuma “solução”, que usa metáforas e alegorias, que recorre, ao mesmo tempo, a Nietzsche, Brecht e à mística judaica, enfim que não pretende nem à sistematicidade nem à aplicabilidade, mas que lança hipóteses sobre nossas insuficiências de pensamento e de ação no enfrentamento do(s) fascismo(s). Proponho, a seguir, alguns elementos que deveriam ajudar a ouvir melhor como essas interrogações, formuladas num momento tão sombrio da história do século passado, podem repercutir no desamparo atual e, igualmente, incentivar nossa resistência e inventividade.

Devemos em primeiro lugar observar que, segundo o título do próprio punho de Benjamin, essas “teses” não são sobre a história ou sobre a evolução histórica, mas sobre o conceito de história. Nesse sentido, são, sim, uma reflexão filosófica e teórica mesmo que pouco convencional. O primeiro título que os editores do número da Zeitschrift für Sozialforschung, em homenagem a Benjamin, deram a esse texto póstumo, “Geschichts philosophische Thesen” (isto é, “Teses de filosofia da história”) induz ao erro. Ele foi corrigido nas edições críticas posteriores, mesmo que o apelido “teses” continue a ser usado, talvez para ressaltar uma certa filiação às “Teses contra Feuerbach” de Marx, isto é, uma filiação a uma tradição combativa de filosofia. Também para ressaltar o gênero literário do texto que não consiste em nenhuma argumentação dedutiva, mas, sim, numa série de afirmações críticas.

Benjamin não traça nenhum esboço de “filosofia da história”, mas se detém no conceito. Ora, esse conceito é ambíguo porque Geschichte pode ser usado tanto para uma sequência de acontecimentos temporais quanto para a disciplina histórica (Historie) que tenta estudar e retratar essa sequência e, enfim, também como narrativa (Erzählung), literária ou não, em particular como narrativa de ficção, como novela, romance, conto, enredo, a palavra sendo, nessa aceitação, usada muitas vezes no plural. Podemos afirmar que toda filosofia de Benjamin se detém nessa rica pluralidade de sentidos que ressalta o entrelaçamento entre os acontecimentos ditos “reais” e a narração que lhes dá vida e espessura. Pois, sem narrativa, não há lembrança articulada daquilo que aconteceu. Talvez possa haver rastros, ruínas, indícios, mas não há história.

As teses retomam essa questão: como se narra a história do passado? E, em decorrência dessas várias maneiras de narrar, como apreendemos nossa relação presente ao passado e, igualmente, nossa relação ao futuro? O momento presente, o tempo de agora (Jetztzeit), momento do perigo e da decisão, somente se define como uma distensão (segundo a expressão de Santo Agostinho no livro XI das Confissões) entre a imagem do passado e a imagem do futuro, imagens que não são réplicas de fatos, mas sim narrativas que tecemos, que podemos desfazer e desmanchar, preencher ou, pelo contrário, esvaziar, ressaltando lacunas, apontando para incertezas.

Assim, as teses “Sobre o conceito de história” são antes de mais nada teses sobre as diversas formas possíveis de historiografia e sobre as consequências políticas de decisões historiográficas. Não são observações epistemológicas. Benjamin não procura uma definição justa do conhecimento histórico, problema que ele deixa para os teóricos da “ciência histórica”. Isso não significa que todas as versões do passado se equivalem, ou seja, que reine um relativismo geral. No entanto, não se pode compartilhar da certeza – positivista – que podemos conhecer o passado “tal como ele propriamente foi” (expressão do historiador Leopold von Ranke) porque o passado é sempre transmitido, não existem “fatos brutos” quando dele falamos, mas acontecimentos que foram relatados e transmitidos e que narramos novamente.

Portanto, Benjamin escreve muito mais, como diz a tese VI, sobre a articulação do passado ao presente, do presente ao passado: “Articular o passado historicamente não significa conhece-lo ‘tal como ele propriamente foi’. Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela lampeja num instante de perigo. Importa ao materialismo histórico capturar uma imagem do passado como ela inesperadamente se coloca para o sujeito histórico no instante do perigo” (Benjamin apud Löwy 2005, 65).

A metáfora chave da articulação realça a dinâmica que imprime um movimento tanto à imagem do passado quanto à percepção do presente, um movimento que atinge ambos, num mesmo esforço, e permite uma transformação recíproca. A hipótese política (não só hermenêutica) de Benjamin consiste em analisar como certas maneiras de contar a(s) história(s) não só reproduzem a dominação de classe, mas também nos impedem de lutar, nos paralisam, nos tornam impotentes. Como crítico literário e como filólogo, o filósofo insiste na relevância política e prática das diversas formas de narração. Podemos ter uma teoria histórica das diversas formas narrativas literárias, como propõe Györy Lukács em A teoria do romance ou o próprio Benjamin no ensaio sobre “O narrador”, e podemos, igualmente, analisar as diversas narrativas ditas históricas e mostrar suas implicações. Muitos autores contemporâneos – como por exemplo Reinhardt Koselleck, Paul Ricoeur ou mesmo Michel Foucault – retomam essa linha de reflexão crítica da historiografia, na trilha aberta por Benjamin ou em decorrência de outras hipóteses. E a reflexão aberta pela psicanálise também insiste na relevância prática das várias formas de relato de sua própria história, tentando incentivar o sujeito a deixar seu encerramento na mesma narrativa, autoconstruída ou imposta, para ousar inventar uma outra história.

No caso específico das teses benjaminianas, a análise crítica enfrenta duas narrativas dominantes: uma historiografia dita progressista e outra dita burguesa, que Benjamin assimila ao “historicismo”, retomando muitas das críticas dirigidas por Nietzsche, na sua “Segunda consideração intempestiva”, aos seus colegas eruditos – e profundamente chatos da Basileia. À primeira vista, essas duas linhagens são opostas como hoje, aliás, continuam se opondo os professores militantes ditos marxistas e os professores tradicionais ditos especialistas e eruditos. As dificuldades de compreensão das teses benjaminianas nascem, entre outras coisas, desse duplo enfrentamento porque Benjamin critica tanto a “ideologia do progresso”, quanto a erudição vazia e cumulativa do historicismo.

De um lado, ele acusa a socialdemocracia alemã de pensar que ela “nada com a correnteza” (ver em particular as teses XI e XIII), isto é, que há uma direção histórica predeterminada, que o fluxo dos acontecimentos históricos deságua necessariamente no oceano da justiça social e socialista; simultaneamente, Benjamin apoia claramente a luta de classes do proletariado alemão e suas tentativas revolucionárias, em particular os conselhos operários, as greves de 1918/1919, tentativas do movimento spartakista, que foram brutalmente derrotadas pela polícia e terminaram com o assassinato de Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht , cujos corpos foram jogados no Spree (rio de Berlim) pela polícia sob as ordens do socialdemocrata Noske. Trata-se, portanto, de pensar uma política de esquerda, de luta de classe e de revolução, mas sem a “fé” no progresso no fim da história – fé que talvez seja um Ersatz de fé religiosa moribunda – sem a “ideologia do progresso” como a chama Benjamin.

Existe igualmente – e isso remete às nossas tentativas atuais de reescrita da história, tentativas feministas, decoloniais e outras –, uma crítica clara por parte de Benjamin ao lado “épico”, como ele o chama, das narrativas históricas, tanto da classe dominante com suas batalhas e seus heróis vitoriosos, quanto dos sujeitos soterrados pela dominação. Adotar o tom heroico sempre é perigoso pois, se temos exemplos admiráveis a serem lembrados e celebrados, “é à memória dos sem nomes que a construção histórica é consagrada” como o escreve Benjamin.

Como também diz Brecht no poema intitulado “Perguntas de um trabalhador que lê”, a verdadeira historiografia materialista deve lembrar o cozinheiro de César e os escravos que ergueram os arcos de triunfo de Roma:

Cada página uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande homem.
Quem pagava a conta?
Tantas histórias.
Tantas questões.

Isto é: devemos e podemos reverenciar Zumbi dos Palmares e Nelson Mandela, sim, mas também honrar a memória dos sem nomes que morreram com eles; respeitar e estudar a obra de Simone de Beauvoir, sim, mas também honrar a memória de tantas mulheres silenciadas, mortas sem ter nem falado alto nem escrito. Em suma, não cair numa nova historiografia gloriosa, porque não se trata de glória e de heróis, mas de justiça e de felicidade compartilhada, o que é muito mais radical.[ii]

Se Benjamin rejeita, do outro lado, a narrativa acumulativa do historicismo – que repousa, como a ideologia do progresso, sobre uma apreensão da história “percorrendo um tempo homogêneo e vazio” – sua erudição infinita e cansativa, seu armazenamento de “bens culturais”, sua mania de comemorações de grandes datas da nação, como também o denunciou Pierre Nora nos recentes debates historiográficos franceses, ele não o faz porque os “detalhes” seriam supérfluos.

Ao contrário, o elogio do “cronista” na tese III ressalta a decisiva importância do “pequeno”; a crítica visa uma prática de entesouramento que somente deseja o aumento da posse privada, uma “cultura” privada e ostentativa, no fundo a réplica no nível individual da acumulação capitalista. A imagem famosa do cortejo de triunfo (tese VII) que exibe suas presas, sob o nome de “bens culturais”, é eloquente. Ela denuncia uma noção de cultura que serve de ornamento e de amparo à dominação em vez de ser signo de questionamento do “status quo” e de emancipação.

Devemos ler juntas as teses VII e IV, que não se contradizem, mas atribuem às obras e às práticas culturais um papel ativo na luta de classes: não se deixar transformar em “bens” que cabem aos vencedores, mas, pelo contrário, pôr “incessantemente em questão cada vitória que couber aos dominantes”, e isso com “coragem, humor, astúcia, tenacidade” diz a tese IV. Notemos aqui que Benjamin não fala da posição política do autor ou do artista. Não basta um escritor ser comunista para ter uma obra notável, aliás, muitas vezes ele pode ser até ruim, dogmático e retrógrado! Muitas vezes, são pelo contrário os artistas ditos burgueses que, pela sua radicalidade singular, apontam para a necessidade de transformação.

Assim Benjamin lê nas As afinidades eletivas de Goethe não uma defesa do casamento, mas muito mais o diagnóstico de sua falta de autenticidade – e isso à revelia talvez do próprio Goethe, mas graças à sua honestidade artística. De maneira semelhante, Baudelaire celebra nos seus versos a saudade da beleza clássica e, simultaneamente, sua impossibilidade – se o poema não quiser ser somente um falso consolo ilusório. A famosa frase da tese VII, “Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie” (Benjamin apud Lowy 2005, 70), não implica na destruição dos monumentos, mas na sua análise precisa enquanto “documentos” justamente, cuja edificação pressupõe tanto o “gênio” do artista quanto a “corveia sem nomes de seus contemporâneos”.

Tal exercício de desconstrução enfatiza na historiografia materialista uma dimensão muitas vezes esquecida, a da transmissão, uma palavra sinônima de tradição, mas menos solene, mais material e demarcada. Em seus vários textos sobre Baudelaire e em seu ensaio sobre Eduard Fuchs, a palavra Überlieferung, transmissão, adquire cada vez mais peso metodológico. O radical liefern designa a ação concreta de “entregar”, como se entrega um pacote ou uma carta, e o prefixo über o movimento que vai de um ponto preciso até outro determinado, atravessando distâncias mensuráveis[iii].

Escreve Benjamin nas notas da edição crítica dos vários ensaios sobre Baudelaire: “O que fala contra a tentativa de simplesmente confrontar o poeta Baudelaire com a sociedade de hoje e de responder à pergunta, na base de sua obra, o quê ele ainda tem a dizer a seus quadros avançados; bem entendido sem esquecer da pergunta, se ele tem de fato algo a lhes dizer. O que fala contra isso, é [que] fomos instruídos justamente pela sociedade burguesa na leitura de Baudelaire, durante uma aprendizagem histórica. Essa aprendizagem nunca pode ser ignorada. Uma leitura crítica de Baudelaire e uma revisão crítica dessa aprendizagem são muito mais uma e mesma coisa. Pois é uma ilusão do marxismo vulgar pensar poder determinar a função social seja de um produto material, seja de um espiritual, fazendo abstração das circunstâncias e dos portadores de sua transmissão (Überlieferung)”. (BENJAMIN 2013, 1160/1161)

Nessa observação, Benjamin recusa sem o nomear o debate sobre a herança (Debatte über das Erbe) da cultura burguesa que opunha pensadores marxistas como Brecht e Lukács. No ensaio sobre “Eduard Fuchs, o Colecionador e o Historiador” que o Instituo de Pesquisa Social lhe encomendou, Benjamin critica implicitamente essas discussões e propõe uma reflexão sobre o processo de conservação e de transmissão do passado, das obras e dos acontecimentos do passado, um processo nada inocente, mas ele mesmo profundamente cambiante e histórico.

Na reta linha das “teses”, afirma ele: “Se, para o materialismo histórico, o conceito de cultura é um conceito problemático, sua decomposição em um conjunto de bens que seriam para a humanidade objeto de propriedade, essa é uma representação que ele não pode assumir. A seus olhos, a obra do passado não é acabada. (…). Como um conjunto de formações consideradas independentemente, senão do processo de produção, do qual nasceram, mas pelo menos do processo, no qual elas perduram, o conceito de cultura tem um aspecto fetichista. A cultura aparece aí reificada”. (Benjamin 1991, 477)

A tese VII arremata: “Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie. E, assim como ele não está livre da barbárie, assim também não o está o processo de sua transmissão, transmissão na qual ele passou de um vencedor a outro. Por isso, o materialista histórico, na medida do possível, se afasta dessa transmissão. Ele considera como sua tarefa escovar a história a contrapelo”.

Obras da cultura e acontecimentos históricos são, portanto, transmitidos até nosso presente, ou então deixados de lado e esquecidos num processo – nem sempre consciente – de formação e aceitação de uma tradição histórica, processo nada tranquilo de transmissão ligado a estratégias e lutas histórico-políticas que levam à constituição de um cânone, isto é, à exclusão de várias obras e ao esquecimento de acontecimentos julgados sem importância. Essa hermenêutica crítica de Benjamin enfatiza a distância histórica, palco de lutas e de tomadas de decisões que um conceito convencional de tradição tende a encobrir em proveito de uma adesão imediata a “valores” estabelecidos. Podemos observar que Paul Ricoeur, nos seus textos críticos da hermenêutica de H.G. Gadamer, também realça a “fonction heméneutique de la distanciation” (Ricoeur 1986, 101).

Desde seu texto de juventude sobre As afinidades eletivas de Goethe, o tema da distância histórica se opõe, nas análises de Benjamin, ao ideal de compreensão que defendia a hermenêutica de Dilthey, à apreensão imediata pela Einfühlung. Podemos traduzir esse conceito como “identificação afetiva”, literalmente um “sentir-se em”, uma “empatia” do sujeito com seu objeto segundo o modelo do diálogo individual que Dilthey define como forma privilegiada de entendimento.

Ora, tal ideal, segundo Benjamin, não deixa de ser uma ilusão de comunicação e de consenso que repousa sobre um paradigma psicológico individualista e que disfarça, sob afetos entusiásticos, uma tomada de poder do sujeito sobre o outro, minimizando sua alteridade essencial. Ademais, em relação ao conhecimento histórico, minimiza justamente aquilo que separa o historiador do seu objeto, a saber suas diferenças temporais, em proveito da concepção histórica e limitada da atualidade do pesquisador, erigida em critério de validade.

Para concluir, gostaria de retomar essa crítica da Einfühlung. Com efeito, ela me parece preciosa para nossas tentativas canhestras de lutar hoje contra o processo de crescimento e de exacerbação da indiferença em relação à dor, à doença e mesmo à morte dos outros. Indiferença monstruosa que a pandemia revelou e que muitos governantes encorajam como se ela fosse sinal de virilidade e escolha realista em favor da sobrevivência nacional, isto é, da economia neoliberal.

Nesse contexto de indiferença monstruosa, a palavra “empatia” ganhou uma aura renovada. Parece que a solução consistiria em apelar por esse vago sentimento de simpatia com o outro em que podemos nos reconhecer, de cujo sofrimento podemos participar. Tais apelos à compaixão pessoal sofrem, no entanto, da insuficiência da origem individual e individualista deste sentimento: apela-se à boa vontade de cada um, apelo por demais irrisório em oposição às forças de esmagamento e de destruição em jogo.

Num artigo recente, Vladimir Safatle opõe as exortações (no mais das vezes vãs) à empatia à construção de um sentimento coletivo de solidariedade, que reconhece que todos nós (mesmo aqueles com quem não me identifico e por quem não nutro nenhuma simpatia) fazemos parte de um mesmo corpo social: em termos políticos somos mutuamente comprometidos na solidez (mesma etimologia que solidariedade) e perseverança desse laço social, mais amplo que relações pessoais de família, amizade, aliança, “patota”.

Cito Safatle: “A solidariedade, desde o direito romano, é um tipo de obrigação contraída com vários na qual um pode quitar a dívida de todos. Ela é um sistema de obrigação na qual a ação de um tem o efeito da ação de todos, o que explicita sua natureza radicalmente implicativa. Neste sentido, ela traz a ideia de um corpo social que se organiza sob as bases do mutualismo. Um mutualismo que tem força transformadora porque se trata de compreender como dependo de pessoas que não se parecem comigo, que não tem minha identidade, que não fazem parte de meu lugar”. (Safatle 2020).

Ora, como são essas relações privadas que sempre prevaleceram no Brasil, desde a colonização predatória do país até sua atual destruição, como Indígenas e Negros sempre foram caçados e mortos sem dó até hoje por não ser considerados membros iguais à “elite” dominante, o conjunto da nação parece condenado à autodestruição; não só por falta de “bons sentimentos”, mas por falta de lucidez sobre a necessidade de reciprocidade e mutualidade entre todos os cidadãos, como se as avenidas bancárias de São Paulo pudessem formar uma opulente ilha de neoliberalismo a sobreviver sozinha no meio de um deserto sem habitantes – e sem floresta.

A crítica da empatia em Benjamin exige uma narrativa solidária com os excluídos da história dominante, singularmente, com os mortos – “também os mortos não estão seguros diante do inimigo” –, afirma a tese VI. Uma frase que a política de reabilitação da ditadura militar tornou cruelmente verdadeira no Brasil de Bolsonaro. Somente a construção – cotidiana e atenta – da solidariedade política permite resistir ao fascismo. E inventar outras formas de vida, mais justas, mais felizes.

*Jeanne Marie Gagnebin é professora de filosofia na Unicamp. Autora, entre outros livros, de História e narração em Walter Benjamin (Perspectiva).

Publicado originalmente na Revista de Teoria da História, vol. 24, no. 2.

 

Referências


BENJAMIN, Walter. Baudelaire. Paris: La Fabrique, 2013.

BENJAMIN, Walter. Gesammelete Schriften II-2. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1991.

BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. In: LÖWY, Michael. Aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.

BENJAMIN, Walter; ADORNO, Gretel. Briefwechsel, 1930-1940. Berlim: Suhrkamp Verlag, 2005.

BIRNBAUM, Antonia. Bonheur Justice Walter Benjamin, Payot, 2008.

BRECHT, Bertold. Poemas 1913 – 1956. São Paulo: Ed. 34, 2000.

LINDNER, B. (Org). Benjamin-Handbuch. Stuttgart: Metzler Verlag, 2006.

LOWY, Michael. Aviso de Incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005.

RICOEUR, Paul. Du texte à l’action, Ed. Seuil, 1986.

SAFATLE, Vladmir. O Brasil e sua Engenharia da Indiferença. El País, 2 de julho de 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-07-02/o-brasil-e-suaengenharia-da-indiferenca.html

BOUTON, Christophe; STIEGLER, Bárbara. (Org). L’expérience du passé, Paris: Ed. de l’éclat, 2018.

 

Notas


[i] Tomo a liberdade de remeter, para uma análise mais completa desse texto, ao verbete que escrevi a respeito em (Lindner 2006). Uma versão francesa deste texto foi publicada no livro coletivo (Bouton; Stiegler 2018).

[ii] Lembro o belo título de Antonia Birnbaum (2008). A temática da felicidade em Benjamin mereceria um estudo à parte.

[iii] Não por acaso, esse prefixo designa hoje um aplicativo de transporte!

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