O som do silêncio

“Ducha”, de Nikolai Féchin
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Por JOSÉ CARLOS AVELLAR*

Considerações sobre cinco filmes que discutem as relações entre os colonizadores brancos e os índios brasileiros

Exatamente no período em que a censura batia mais forte (e aqui devemos entender como censura todo o sistema de governo, e não apenas a repartição encarregada de cortar e apreender tudo o que fosse contrário à imagem do país imposta pelo governo), na década de 1970, cinco filmes de longa-metragem tomaram o índio brasileiro como tema. Quatro filmes de ficção: Como era gostoso o meu francês, de Nelson Pereira dos Santos, filmado em 1970, mas liberado apenas em 1972. Uirá de Gustavo Dahl, em 1974. A lenda de Ubirajara, de André Luís de Oliveira, em 1975. E Ajuricaba, de Oswaldo Caldeira, em 1977. E um documentário: Terra dos índios, de Zelito Viana, em 1979.

O interesse pelo tema parece ter surgido da possibilidade de usar os conflitos entre índios e brancos (os que ocorreram pouco depois do descobrimento, os que ocorreram ao longo de nossa história e a violência contra os índios que estava ocorrendo bem naquele momento) como uma representação do mecanismo injusto da sociedade em que vivemos, mecanismo que se tornara então mais do que evidente. O que se pretende nestes cinco filmes é transpor para tela, tomando o índio como exemplo, as relações entre os que governam e os governados. É discutir a violência do poder através de histórias onde um grupo materialmente mais forte (nos filmes, o colonizador branco) se serve de múltiplas formas de violência às vezes a violência física, às vezes a violência cultural para impor a um grupo materialmente mais fraco (nos filmes, o índio) um determinado modelo de sociedade.

As relações entre os colonizadores brancos e os índios brasileiros, na realidade, se adaptam com facilidade a este projeto. Não foi preciso sequer inventar uma figura idealizada de índio para se ajustar ao desejo de representar, no desentendimento entre índios e brancos, o quadro político e social daquele instante. Qualquer pedaço da história de nossos índios funciona como uma perfeita representação das relações entre dominadores e dominados tal como ela se dá ainda agora, e especialmente tal como ela se dava na sociedade em que o espectador da década de 1970 estava vivendo. Para levantar o problema, bastava, portanto, documentar através da ficção cinematográfica o mundo dos índios, assim como ele existia no momento em que começou a ser agredido pelo colonizador branco.

“Escolhi um personagem francês (disse Nelson no lançamento de Como era gostoso o meu francês) porque os franceses participaram diretamente da colonização, e são por isso um objeto interessante para a apreciação de um choque de culturas. Procurei ser fiel à história, para lembrar o que ao correr dos tempos aconteceu com a cultura Tupinambá: ela simplesmente desapareceu, depois de ter ocupado praticamente toda a costa brasileira”.

Colocar na tela o choque de culturas significava, ao mesmo tempo, levar o espectador a se sentir como um índio. O documentário procurou, simplesmente, dar voz (num instante em que a censura procurava calar todas as falas que não viessem do poder) aos índios. Os quatro filmes de ficção que vieram antes dele procuram contar suas histórias de modo a que as pessoas na plateia se sintam parte das situações filmadas, reconheçam no índio não exatamente a sua própria imagem mas um outro/igual, uma representação dupla, o índio mesmo e todos os outros que como os índios são reprimidos para deste modo viver numa outra dimensão, numa dimensão próxima/distante, para criticar mais que sofrer, o mecanismo de opressão a que se encontram submetidas fora da sala de projeção.

“O móvel do filme (disse Gustavo Dahl no lançamento de Uirá) é levar o espectador citadino, branco, ocidental, a sentir na própria pele através do processo de identificação cinematográfica as agressões que, em nome de não se sabe bem o quê, foram feitas ao índio. O móvel do filme é passar para o espectador que uma pessoa igual a ele se encontra naquela situação, e que qualquer um de nós poderia estar lá”.

Um fragmento de nossa história a violência do colonizador europeu contra os índios, a violência dos fazendeiros brancos contra os índios é tomada então para encenar outro fragmento de nossa história, o tempo em que a narração se dá a ver e não o tempo da história narrada, e outra manifestação de violência, aquela dos que detêm o poder contra a parcela mais numerosa, desarmada e materialmente mais fraca da sociedade: as pessoas comuns, as pessoas que reivindicam o direito a uma forma de vida diversa do modelo de “civilização” imposto pelo poder. A eficiência deste projeto cinematográfico tornou-se ainda maior porque ele ganhou forma no exato momento em que o homem da cidade em geral começava a se interessar pelo problema do índio, pela sobrevivência do índio agora.

Como era gostoso o meu francês, Uirá, A lenda de Ubirajara e Ajuricaba chegaram às telas em meio a denúncias (veiculadas algo timidamente, nas entrelinhas dos jornais) de massacre de tribos na região do Xingu e de choques armados contra grupos de índios na rota da Transamazônica. Chegaram às telas ao lado da proposta oficial de integração do índio na chamada “moderna sociedade brasileira”, e ao lado dos protestos de caciques xavantes e caingangues contra as frequentes invasões de suas reservas por fazendeiros ou grupos imobiliários.

Diante deste quadro tornou-se impossível falar dos índios assim como um cientista acadêmico e distante, a partir de um discurso na aparência, isento, antropológico e neutro, interessado só em registrar formas culturais de um grupo humano, digamos, aqui mas pertencente a um outro tempo histórico. Os índios passaram a ser olhados em função de suas relações com os homens ditos civilizados, citadinos, brancos, passaram a ser olhados como uma opção, como uma oposição. Os índios passaram a ser olhados como uma representação do oprimido.

A preocupação comum a estes quatro filmes de ficção é também a preocupação de um conjunto de documentários de curta e de média metragem feitos no mesmo período, especialmente Aukê, O mito do fogo e do homem branco, de Oswaldo Caldeira (1976), Ronkamekra, vulgo Canela, de Walter Lima Jr. (1973), Noel Nutels, de Marco Altberg (1975), Guarani, de Regina Jehá (1975), e Pankararu de Brejo dos Padres de Vladimir Carvalho (1977). O que se faz nestes filmes é retratar o índio enquanto um indivíduo acossado por um poder materialmente mais forte e intolerante. E esta preocupação de certo modo, continua presente mesmo em documentários feitos posteriormente como, por exemplo, Terra dos índios, de Zelito Viana (1979).[i] O índio, ainda aí, é uma parte da cultura brasileira que não pode se expressar, sufocada pelo poder. No documentário os índios continuam como uma fusão de realidade e ficção. Não são diferentes, não são outros. São o que somos. Um pedaço de tudo aquilo que sentimos e não conseguimos exprimir, sufocados neste período em que a censura bateu mais forte.

As histórias que Como era gostoso meu francês, Uirá, A lenda de Ubirajara e Ajuricaba contam, episódios do conflito entre o homem branco e o índio, discutem duas questões ao mesmo tempo. São um salto ao passado para falar do problema do índio de hoje e um salto ao índio para falar do problema da sociedade em que o espectador (e o narrador) vivia então.

O tema comum, e a preocupação de usar este tema para representar também outra realidade além da que se encontra ali figurada, levaram os filmes a adotar soluções de cena semelhantes. São quatro filmes de narração lenta. A ação se interrompe de quando em quando para a descrição do mundo material e do mundo mágico dos índios e aí voltamos ao comportamento comum entre nós na década de 1960: o realizador procura fazer algo equivalente a uma documentação encenada. Estes entreatos, feitos com uma acentuada preocupação da veracidade, são de fato o principal recurso para levar a plateia a se identificar com os índios (mais exatamente: a se identificar com o narrador que se identifica com o índio), a viver o problema (dela, plateia numa outra dimensão, crítica, imaginária) em lugar de compreendê-lo intelectualmente. Naquele momento, uma vez que toda a informação estava censurada e que o sistema cobria a realidade com uma fantástica e enganosa ficção de boa ordem, segurança e progresso, naquele momento um registro simples do real, a informação direta, ganhava uma força mágica.

Mais importante que reconhecer a semelhança de duas ou três soluções narrativas é verificar que as histórias destes filmes se encontram ligadas entre si, quase como se fossem partes de uma única narrativa. O segundo prossegue a conversa iniciada no primeiro, o terceiro serve de ponte para o quarto elo da corrente. Os documentários surgem quase como um prólogo, uma consulta a uma fonte histórica, uma nota ao pé de um texto, um epílogo, uma reportagem de televisão (antes do novo capítulo da novela) com um episódio mais recente do enfrentamento. Uma interligação especialmente interessante porque aconteceu de modo espontâneo, e não em obediência a um projeto prévio ou a um desejo expresso dos realizadores.

Para início de conversa um manifesto antropofágico.

Como era gostoso meu francês se passa no Rio de Janeiro, no século XVI. Franceses e portugueses de um lado, tupinambás e tupiniquins de outro. Os europeus comem-se entre si para ver quem ficará sozinho para devorar o trabalho dos índios e as riquezas da terra, a pimenta e o pau-brasil. Os índios devoram-se entre si enquanto esperam o momento de comer o europeu. A narrativa se organizava em torno de um francês aprisionado pelos tupinambás e condenado a servir de comida para a tribo daí a oito meses. Durante este tempo o francês vive entre os índios como um hóspede. Ganha uma esposa de presente, aprende a língua e os hábitos dos tupinambás e passa a se comportar como se fosse um deles; ensina aos índios técnicas de cultivo e o uso de um canhão tomado dos portugueses e aprende com eles a cortar o cabelo e a pintar o corpo. Passados os oito meses, a aldeia se reúne numa grande festa e come o francês.

O segundo elo da cadeia, Uirá, retoma a conversa do ponto em que ela se interrompe no filme de Nelson. Na cena final de Como era gostoso meu francês, já pintado para o ritual, de pé diante de toda a aldeia reunida para comê-lo, o homem branco emudece. Recusa-se a cumprir a parte que lhe cabe na festa, ou seja, recitar as palavras que comandam o golpe final. O cacique, diante do francês, espera com o tacape já pronto. A índia que o francês ganhou como esposa no tempo de espera vem ajudá-lo: repete baixinho as palavras que ele deve dizer em voz alta e em tom valente. Pede que ele fale logo, porque a tribo quer comê-lo e ela espera ansiosa o momento de comer o seu pescoço. O homem branco, então, grita furioso (mas em francês, e não em tupi como previsto) as palavras finais do ritual: “os meus iguais virão vingar a minha morte e destruir meus inimigos”.

Uirá começa aí, com os índios já quase inteiramente destruídos pelos iguais do francês. Há um salto no tempo. Não estamos mais no século XVI. A história, baseada num fato real (narrado por Darcy Ribeiro no ensaio Uirá vai ao encontro de Maíra) se passa em 1939, no Maranhão, e se passa mesmo como se o filme viesse em reposta, ou melhor, em sequência direta ao Francês de Nelson.

O personagem central é um cacique Kaapor que parte de sua aldeia, às margens dos rios Turiaçu e Pindaré, para ir ao encontro de Maíra, o grande herói civilizador, que fez as terras e os rios, que plantou a mata e fez os homens atirando pedaços de árvores nos rios fez os Kaapor com galhos de pau d’arco e com galhos de sumaúma fez os homens brancos, os karaívas. O cacique partira ao encontro de Maíra porque sua aldeia fora dizimada por uma epidemia de gripe depois dos primeiros contatos com os homens brancos. Esgotados os conhecimentos da tribo para vencer o mal, restava partir ao encontro de Maíra.

Maíra ensinava os Kaapor como viver nas florestas. Ensinara também o que fazer para vencer a doença e recuperar a alegria de viver. Para ver Maíra seria necessário livrar-se dos presentes dos karaívas. Jogar fora facas, machados e roupas, quebrar os utensílios, queimar as velhas casas, construir a aldeia de novo, agir como um kaapor. Maíra era também um kaapor, um forte. E não aparecia para os karaívas. Uirá pinta o corpo de vermelho e preto, as cores de Maíra, enfeita a cabeça com um arranjo de penas amarelas, adorno igual ao de Maíra. Toma uma paneiro com farinha de mandioca, a comida de Maíra. Empunha um arco e flechas, as armas de Maíra. E, como um kaapor, parte sem o saber na direção da cidade de São Luiz.

Agredido por sertanejos no meio do caminho, Uirá é preso na cidade de Viana – as pessoas reagem ofendidas pela nudez do índio, de sua mulher, Katai, e de seus filhos, Irapik e Aruri, e chamam a polícia. De Viana, Uirá é enviado para a cadeia de São Luiz. Libertado depois de algum tempo pelo Serviço de Proteção aos Índios, o cacique tenta ainda, sem sucesso, apoderar-se de uma canoa de pescadores para seguir mar adentro. (Maíra, dizem os kaapor, mora do outro lado de um rio ou de um lago muito grande, tão grande que de uma das margens não se consegue ver a outra. E para chegar até Maíra o kaapor precisa mostrar coragem e passar por duras provas).

Os pescadores reagem, Uirá insiste, é agredido a golpes de remo, e mesmo ferido se atira ao mar para tentar alcançar a nado a morada de Maíra, mas é retirado das águas por uma lancha do Serviço de Proteção aos Índios. Uirá retorna a sua aldeia e perto de casa atira-se no rio Pindaré, deixa-se devorar pelas piranhas. Os kaapor, e só os kaapor, depois de mortos são recebidos por Maíra. E, vencidas todas as outras possibilidades, Uirá vai ao encontro do herói criador através da morte.

Uirá, de certo modo, retoma a estrutura narrativa de Como era gostoso meu francês às avessas. O índio, no filme de Gustavo Dahl, aparece no lugar ocupado pelo francês no filme de Nelson Pereira dos Santos: aprisionado e tratado como hóspede até o instante em que é comido. No filme de Nelson, na aldeia dos tupinambás, o francês aprende a cortar a barba e o cabelo, a tirar a roupa e a pintar o corpo como se fosse um índio. No filme de Gustavo, na cidade dos karaívas, o índio é obrigado a cobrir o corpo com roupas e a participar de festas e solenidades, como se fosse um homem branco. Dois idênticos rituais de antropofagia. Os quase idênticos.

Quase, porque um deles, o ritual que devora Uirá, é marcado por uma violência inexistente no outro. Não tanto a violência física, a dos sertanejos, policiais e pescadores que agridem o cacique, mas a violência cultural, as ofensas à nudez do índio, a intolerância das pessoas da cidade, o cerco e a embriaguez de Katai, mulher de Uirá, tomada como prostituta enquanto espera na rua, na porta da prisão, a liberação do cacique. No filme, explica Gustavo, a violência física está bastante atenuada em comparação aos fatos realmente acontecidos. Atenuada para “evitar que o espectador desvie sua atenção para uma espécie de calvário físico, para uma brutalidade puramente visual, externa. Por exemplo: no filme há uma cena onde Uirá é dominado pelos guardas dentro de uma cela. Na história real o episódio se passou no pátio da prisão e Uirá enfrentou sozinho vinte pessoas até ser dominado”.

No filme a violência física foi atenuada para revelar melhor a agressão mais forte, a violência civilizada, já integrada ao cotidiano do espectador, vivida quase sem ser sentida pelo espectador em seu dia-a-dia.

Na aldeia dos tupinambás o francês passeia mais ou menos à vontade. Ele aprende algumas coisas com os índios. Os índios aprendem algumas coisas com ele: a usar o canhão tomado aos portugueses e técnicas de plantio. Na cidade dos karaívas o índio é controlado todo o tempo como apenas meio-gente, e ninguém imagina que ele seja capaz de ensinar ou mesmo de aprender qualquer coisa. O índio é um meio-bicho: perigoso. Mais vale deixá-lo enjaulado, pensam os policiais. O índio é meio-gente: primitivo. Mais vale protegê-lo, pensa o funcionário do Serviço de Proteção aos Índios, que conclui com um elogio ao Governo Federal e ao seu Serviço com um longo suspiro: “O que seria destas criaturas se não houvesse quem não fosse indiferente à sua sorte”.

No salão de festas do palácio o governador anuncia as “providências para hospedar este legítimo líder político de sua gente que é o cacique Uirá no Grande Hotel São Luiz”. Organiza um passeio de carro pelas ruas da cidade, pede à população para enviar “uma grande quantidade de presentes, para que o cacique receba a verdadeira expressão de nossos sentimentos”, e promove uma festa para apresentar o cacique à sociedade. “O Senhor Presidente – diz o funcionário do SPI (vivido pelo diretor do filme, Gustavo Dahl) em resposta ao governador – sempre foi árduo defensor da integração dos silvícolas à civilização”.

Outro ritual de antropofagia, mas um ritual que a rigor não se realiza. Os tupinambás comem, de fato, o francês. Comem o francês como igual, como um forte. Comem para que sua força se espalhe por toda a tribo. Os karaívas, ao fim do ritual, não comem o kaapor. Meio-bicho, meio-gente, Uirá é comida jogada às piranhas. Ninguém o vê como igual, como uma força. Ele é aniquilado como um bicho, um inferior.

Na primeira metade do filme de Dahl o espectador vê apenas o cacique, a aldeia pobre, as tentativas de vencer a tristeza (o isolamento, a destruição da palhoça, a caça, a guerra) e a preparação para a viagem ao encontro de Maíra. Vê e entende o que vê, graças, em parte, às explicações trazidas pela narração de Katai, mulher de Uirá, e em parte a uma questão puramente cinematográfica: o fato de o índio ser interpretado por um ator branco, não necessariamente com aquela aparência mais rapidamente identificada com a de um índio, o fato de um filme se compor bem marcadamente como uma ficção (embora inspirado no relato de um fato real), o fato cinematográfico, enfim, coloca o espectador ao lado de um índio de cinema.

É através deste personagem de ficção que o espectador vê o índio (do mundo real, o do mundo do cinema), aprende a sentir como se fosse um deles. E assim, quando o homem branco civilizado, materialmente mais forte, começa a impor seus hábitos sem se perguntar sequer sobre os valores culturais do mundo kaapor, as pessoas na platéia podem sentir melhor a violência civilizada (e às vezes nem tão civilizada assim) que sufoca a livre expressão de formas culturais diversas daquelas impostas pelo poder.

“O que importa nesta história é a violência moral que uma cultura impõe a outra a partir do pressuposto imediato de superioridade, por ser mais forte e em maioria”, acentuou Gustavo. “O que importa é ver como a cultura branca e brasileira não reconheceu em Uirá um integrante de cultura maior”.

O tema da conversa, as situações diretamente registradas em imagens e sons, faz apenas uma parte do filme. Igualmente importante é a maneira de narrar, é a utilização destas situações não como registros ou reconstituições de fatos acontecidos, e acontecidos bem assim como estão ali visíveis, mas como uma cena, como uma representação dramática cujo significado vai além do imediatamente visível. Igualmente importante é narrar de modo a que o espectador saia da projeção com a sensação de que as situações filmadas poderiam ter acontecido com ele. Ou melhor, com a sensação de que as situações filmadas, numa certa medida, numa outra dimensão, estão acontecendo com ele.

Os fatos, as coisas que estão dentro da imagem, situam com bastante precisão o espaço e o tempo em que se passa a história. Maranhão, 1939. Retrato de Getúlio Vargas na parede. Serviço de Proteção aos Índios. Gente vestida à maneira antiga. Índios de fala incompreensível. Soldados de farda amarela. Nada disto tem a ver com o cotidiano do espectador. Mas alguma coisa está no ar, meio invisível, entre o projetor e a tela, entre os kaapor e os brancos. Alguma coisa que não se traduz em palavras, talvez só em gestos. Um sentimento de violência e de humilhação, de isolamento e fragilidade, isto sim, faz parte do cotidiano do espectador – isto é, em particular daquele espectador a quem o filme se dirigiu em primeira instância, o espectador da década de 1970. Esta alguma coisa o espectador percebe não propriamente nos fatos que compõem a história de Uirá, mas no modo de transformar estes fatos em ficção, em imagens de cinema ꟷ e percebe sem se dar conta, percebe pela emoção.

“Durante a preparação de Uirá”, diz Gustavo, “pensei com frequência no Tabu de Murnau. Ver um protagonista nativo interpretando o personagem principal leva a gente a observá-lo como um estrangeiro. Ele passa a ser uma pessoa diferente, não pertence à nossa Nação, ao nosso grupo cultural. E este tipo de reação não me interessava. Um ator e uma atriz da cidade provocam outro tipo de afastamento: o filme se distancia da veracidade. E aqui me lembrei de um sem-número de exemplos de filmes americanos, onde a verdade que se poderia obter através da veracidade documentária. Minha intenção é abrir uma janela para o problema através da emoção, e não através da compreensão intelectual, porque toda a gente está muito menos preparada para equacionar o problema do índio de forma emocional. Todas estas coisas me levaram a optar por um filme narrativo, por um tratamento mais clássico em lugar de uma abordagem antropológica. Era importante compor o filme mais próximo das estruturas tradicionais, para permitir uma identificação afetiva entre o espectador e o personagem, em lugar da percepção abstrata do problema”.

Para o espectador que adere à proposta do realizador, que se deixa levar pela emoção e entra na veracidade da ficção, o desfecho da história de Uirá ganha um significado especial. Nem um suicídio, nem uma derrota, nem a conseqüência inevitável do civilizado ritual de antropofagia. O mergulho do cacique kaapor no rio Pindaré expressa principalmente uma recusa. Uma recusa extrema de se integrar ao grupo materialmente mais forte. Para passar este sentimento o realizador obriga o espectador a ver a cena da morte de Uirá com certo afastamento. A câmera vê de longe. Os olhos do espectador ficam parados e Uirá se afasta sem nada dizer. Caminha com passos lentos e pouco a pouco entra no rio até desaparecer. Katai, sua mulher, que estava ali, não faz nada. A câmera, não faz nada.

Uirá vai embora, isto é tudo que se vê. Ou quase tudo, porque na imagem seguinte, coisa um tanto fora do espaço natural em que se passa o filme, aparece um índio de pé sobre uma pedra, contra o azul do mar e do céu (Uirá redivivo? Maíra?) quase uma indicação de que Uirá conseguiu, enfim, avistar-se com Maíra. Um corte seco para uma realidade mágica, uma brusca mudança de tom, um grito emocional difícil de traduzir (e que ali, em 1974, foi especialmente significativo pela semelhança com a imagem que conclui O amuleto de Ogum de Nelson Pereira dos Santos, realizado ao mesmo tempo, 1974).

Curiosamente os dois filmes seguintes, A lenda de Ubirajara e Ajuricaba, terminam mais ou menos assim como Uirá: de repente, um corte para outra dimensão.

Nos dois primeiros elos da corrente os índios falam tupi. De certo modo se atende, assim, a certa preocupação de autenticidade. Mas o que importa de fato é a utilização de outra língua como uma solução dramática, como um dado da ficção. O grupo materialmente mais forte (nos filmes, o colonizador branco) e o grupo materialmente mais fraco (nos filmes, o índio) falam línguas diferentes, não se comunicam. No terceiro filme deste conjunto, A lenda de Ubirajara, os índios falam uma língua do grupo Gê. No filme que fecha este ciclo de ficção, Ajuricaba, os índios se recusam a falar. Permanecem todo o tempo calados.

Em Uirá as longas cenas dialogadas em tupi não possuem legendas (ao contrário do que acontece em Como era gostoso o meu francês, que traduz em legendas todos os diálogos). No filme de Gustavo Dahl espectador vê, ouve, e tenta compreender o significado das coisas que o cacique kaapor diz através de seus gestos e da composição da imagem – ainda uma vez: tenta compreender não pela razão, mas pelo sentimento. Enquanto a cena se passa na tela existe só uma relação afetiva com o personagem. Só depois de acabada a cena, em trechos armados como se fossem entreatos, surge uma narração em português, comentários da mulher de Uirá, que mais ou menos explica o que se fez e o que se disse nas imagens que acabaram de passar. Na maior parte do tempo os diálogos em tupi funcionam como um som musical, e os gestos dos índios como movimentos de um balé. A plateia vê um jogo de mímica sublinhado por uma espécie de canto. Sente a imagem. A compreensão vem depois do sentimento. A lenda de Ubirajara começa aí, neste estilo de encenação aberto por Uirá.

O ponto de partida foi o romance de José de Alencar, Ubirajara, o senhor da lança. Para dar vida às duas tribos imaginadas pelo escritor, os Tocantins e os Araguaias, o filme se serve de adornos plumários e de utensílios indígenas autênticos. Os diálogos são falados em karajá. As filmagens, feitas nas florestas do planalto central, perto de Brasília, foram precedidas de um estudo das culturas indígenas do grupo Gê, os karajá e os xavante. Um índio kraô, Tep Kahok, viúvo de uma índia karajá, orientou os atores nas danças, nos rituais e na entonação dos diálogos.

No entanto, estes pedaços de realidade do mundo indígena encaixados na ficção de José de Alencar não dão ao filme de Andre Luís Oliveira um tom documental. Não se trata de documentar através da ficção cinematográfica o que se passou com determinada cultura indígena, a karajá ou a xavante. Da realidade o filme retém apenas o que pode servir à sua ficção particular. E esta ficção pretende que o espectador se identifique emocionalmente com a imagem do índio. Isto é, não com um índio de verdade, com um xavante ou com um karajá, mas com a condição do índio, com a ideia de uma cultura perseguida desde a chegada do colonizador europeu. Com a ideia de uma cultura onde as relações entre as pessoas, e entre as pessoas e a natureza, eram mais harmoniosas.

Em A lenda de Ubirajara os utensílios são reais, as falas reais, a floresta real, a realidade enfim, contribui, de certo modo, para afastar o espectador da realidade, do que é concretamente visível, para transportá-lo a uma realidade/outra, a um modo imaginado. A realidade, neste filme, parece ter sido inventada para servir à fotografia. Na longa sequência de abertura – um índio sai da floresta com uma canoa e se põe a navegar num grande rio – existe apenas a imagem. Ou mais exatamente: existe apenas a fotografia. Não há diálogos, nem narração, nem música (só uns poucos ruídos sussurrados, para passar a ideia do grande silêncio da floresta). E a rigor nem mesmo existe uma ação para se ver. Repetem-se vários planos da canoa no rio. Os gestos do índio, impulsionando a canoa com o remo, são os mesmos.

Dentro da imagem tudo é igual, como se o mesmo plano se repetisse uma, duas, três, um número infinito de vezes. O que se modifica, o que está mesmo em movimento na imagem, é o tom da fotografia, o maior ou o menor brilho das cores, a maior ou a menor intensidade de luz. Em determinado plano a luz do sol invade a tela, vai direto ao olho do espectador, cobre a tela de branco. No plano seguinte o índio e a canoa aparecem debaixo de uma luz suave. Logo depois, em silhueta contra o azul claro do céu. Adiante, mal iluminado, meio escondido pelas sombras das árvores na margem do rio. E, finalmente, perdido numa infinidade de pontos brilhantes que invadem a tela e se agitam todo o tempo: os reflexos da luz do sol na água do rio. O fragmento de realidade fotografado – o ator que faz as vezes de um índio, a canoa, o rio, a floresta – passa a segundo plano. São de mentira. A fotografia é a verdade. Em muitos trechos de A lenda de Ubirajara o que realmente importa é um efeito de luz, e sempre um efeito obtido com a luz natural do sol.

Um raio de luz atravessa a copa das árvores, se multiplica no ar úmido perto do chão e se espalha em mil diferentes raios coloridos. Um ponto de luz invade a maloca do cacique Itaquê, na tela em primeiro plano, e um círculo luminoso destaca o olho direito do índio. Uma luz indireta, suave, que rende cores brilhantes e elimina as sombras e os contrastes acentuados, cobre a floresta durante o namoro de Ubirajara e Araci.

A fotografia – a luz – aparece antes de qualquer outra coisa porque ela é mesmo o primeiro elemento da encenação. O primeiro, o principal intérprete em cena, por assim dizer. E um intérprete que exagera, que não se limita a reconstituir com fidelidade a ação diante da câmera. Faz um super registro, super representa, age, aliás, tal como os outros intérpretes, os atores e atrizes, convidados pela direção a super representar. É o intérprete que, ao lado da fotografia, melhor atende a esta solicitação do realizador é Roberto Bonfim, que faz o papel de Pojucã, guerreiro tocantim.

Desde o instante em que aparece logo ao final da primeira cena, enfrentando Ubirajara, o guerreiro Araguaia que deixara sua taba para conquistar um nome de guerra, o ator, Roberto Bonfim, aparece mais que o seu personagem, Pojucã. O estilo de interpretação se torna mais importante que o personagem interpretado. Bonfim canta os diálogos com a voz arrastada e gutural e com um evidente esforço físico. Contrai todos os músculos do corpo para recitar o texto. Grita os diálogos. Marca as falas com gestos largos. Uma interpretação exagerada, sem dúvida, mas feita sob medida para uma fotografia de tom igualmente exagerado e pouco documental – ou vice-versa.

O que importa é que neste contexto os pedaços do mundo real dos índios se reduzem a acessórios – ou pelo menos perdem seus significados originais, transformam-se em ficção. A lenda de Ubirajara amplia a parcela de ficção presente nos dois filmes anteriores. Torna a encenação mais aparente. Toma o índio um pouco pelo que ele é, um pouco pelo que o filme, ao fotografá-lo de determinado modo, pode fazer dele. Toma, na verdade, a ideia de floresta, de natureza não atingida pelo homem civilizado, e a ideia de índio, de homem livre e perseguido por isto mesmo, porque é livre. E cria a partir dessas ideias uma realidade mágica, representa uma relação harmoniosa e nobre perdida pelo homem no processo de civilização. Tocantins e Araguaias formam uma espécie de contra-campo das tensões do mundo contemporâneo. Eles se relacionam entre si diretamente, de pessoa para pessoa, sem a medição de estruturas sociais mais complexas, sem ter sequer um horizonte de progresso de material através do fabrico de novos utensílios ou de uma divisão do trabalho que torne o grupo mais diversificado e rico. O que importa é a pessoa, a individualidade.

O guerreiro vencido vai à taba do vencedor e se considera prisioneiro até o dia da morte gloriosa. O guerreiro vencedor oferece ao vencido a mais linda virgem da taba, para conservar na aldeia o sangue generoso do adversário e aumentar a nobreza e coragem de seus iguais. O hóspede é recebido na taba como se estivesse nascendo naquele instante; ninguém pergunta de onde veio e o que faz. É batizado diante dos mais velhos, escolhe seu novo nome, passa a fazer parte do grupo.

Quase todo o filme se desenrola aí, nesta realidade/outra, neste mundo mágico, neste meio-paraíso habitado por tocantins e araguaias, neste meio-tempo perdido no espaço, numa qualquer época antes da chegada do branco civilizado. Ao contrário dos dois filmes anteriores, A lenda de Ubirajara reserva pouco espaço para o colonizador. A rigor ele nem parece em cena. Vemos só um sinal de sua presença na última imagem do filme. Sinal breve, mas forte, porque desloca o espectador da realidade/outra da ficção para a realidade imediata; desloca o espectador um tempo impreciso para o tempo presente. De repente, Brasília bate na tela. Desaparece a floresta. Desaparecem os tocantins. Desaparecem os araguaias. Bate na tela a esplanada dos ministérios. Na rua, no chão, no meio-fio, abandonado, encolhido, imóvel, calado, um índio com roupas de civilizado: última lembrança do que foi o planalto central antes da chegada do homem branco.

Ajuricaba de Oswaldo Caldeira começa exatamente aí, nesta ideia de saltar da ficção para a realidade e de um passado mais ou menos impreciso para um presente bem determinado. A história propriamente dita se passa no século XVIII. Os portugueses, depois da fundação em Manaus, em guerra com os índios manaús e maiapenas, que resistem sob o comando de Ajuricaba, guerreiro que, conta a lenda, quando atacado se transformava em pássaro, em peixe, em folha de árvore, em cobra, em morcego ou em onça, para escapar ao ataque e derrotar seus inimigos.

A narração começa em Ajuricaba preso, acorrentado, levado pelo capitão Belchior para Manaus. Na maior parte do tempo a câmera está na floresta. Com Ajuricaba acorrentado e mudo, e com o capitão Belchior, que avança em direção ao barco que o conduzirá de volta à cidade. Está com a memória de Ajuricaba, que em pensamento volta à floresta de antes da chegada do homem branco: a floresta de Manari, o herói criador que fez as árvores, o rio, o céu e os bichos, e que fez os manaús e os maiapenas para defenderem a floretas de todos os invasores. Está com a memória de Belchior, que em pensamento se desloca da floresta para a cidade, para rever as conversas que precederam a expedição contra Ajuricaba. Quase todo o filme se passa aí, mas a cena de abertura está ambientada num cenário de hoje.

O corpo de um bandido de nome Ajuricaba (morto, ao que parece, “numa luta entre dois bandos rivais, um deles dirigidos por estrangeiros”) é conduzido numa canoa a uma ambulância, e daí ao Instituto Médico Legal de Manaus. A ação não chega a se concluir. Num corte brusco saltamos para a floresta, e logo encontramos, no século 18, o índio Ajuricaba prisioneiro do capitão Belchior. No entanto, aí pela metade da história, quando o espectador já nem se lembra mais da canoa e da ambulância das imagens iniciais, a ação é cortada por um plano rápido da ambulância que avança nas ruas de Manaus. Sem qualquer explicação a floresta do século 18 é cortada por um carro de hoje – bem entendido, o hoje da década de 1970.

Essas intromissões de uma imagem nossa contemporânea numa história que se passa 200 anos atrás se explicam por inteiro só na cena final, quando a ação se desloca num salto brusco para o Amazonas da Zona Franca de Manaus. Aí, neste novo cenário, a história volta a ser vivida. Reaparecem os mesmos personagens que aprisionaram Ajuricaba no século XVIII –exceto o capitão Belchior. Reaparece o guerreiro índio: nome de loja, nome de rua, nome de emissora de rádio, nome de estação de televisão. Reaparece o guerreiro índio: marginal – amplos ósculos escuros, camisa aberta no peito, cordão em volta do pescoço, relógio digital no pulso; portuário – descarregando bananas trazidas de barco até a cidade; operário – capacete na cabeça e picareta na mão trabalhando no calçamento de uma rua. Operário, marginal, reaparece na cidade invadida por radinhos de pilha, máquinas de calcular, calças americanas, gravadores cassetes, relógios digitais, máquinas fotográficas, e se comporta na cidade do século XX tal como se comportava na floresta do século XVIII: não diz uma só palavra.

Quem fala, quem se explica, quem diz o que pensa, quem age enfim, são os outros. O Governador, o comerciante, o nobre, o padre, e – enquanto a ação se passa na floresta – especialmente o capitão Belchior, o braço armado de todos eles enviado para debelar a rebeldia dos índios na floresta. Numa pausa na caminhada para Manaus, o capitão lamenta a “incompreensível hostilidade dos selvagens contra a boa vontade dos homens brancos, que chegaram à floresta com os hábitos modernos, o conforto e a civilização, com o necessário para tirar os índios da vida primitiva, da nudez, da língua inculta”. Lamenta a teimosia dos selvagens em manter a luta contra um adversário muitas vezes mais forte e bem armado. O capitão se dirige a Ajuricaba, mas o índio nada responde. Permanece calado.

Em princípio, levado pelo hábito de ver filmes, o espectador dá maior atenção à pessoa que age e se explica. À primeira vista os personagens mais importantes de um filme (assim nos ensinou o cinema dominante) são aqueles que se definem diretamente, como o capitão Belchior de Paulo Villaça e alguns de seus seguidores – o Martin de Emmanuel Cavalcanti, que serve ao capitão com todo o zelo possível, e o Pedro de Nildo Parente, que pretende só conquistar-lhe a posição. Ajuricaba, o guerreiro aprisionado e mudo (assim ele aparece para o espectador na tela), o meio-feiticeiro capaz de se transformar em cobra em peixe ou em pássaro (assim ele aparece para os outros personagens, os homens de Belchior) é um ponto de observação. É um espectador dentro do filme. Um igual, quase o próprio espectador dentro da cena.

Algo assim como se o espectador, dotado de um poder semelhante ao do guerreiro dos Manaus e dos maiapenas, se transformasse em imagem, em pedaço de filme. Em pedaço feito só de olhos e ouvidos, para ver de perto o capitão Belchior, o soldado que invade a floresta para acabar com o que acredita ser a vida selvagem; para secar os rios e queimar a floresta, se preciso for, para por fim à rebeldia. E uma vez o espectador transformado em espectador dentro da cena, transfigurado em Ajuricaba, o personagem importante mesmo é o capitão Belchior, metade uma representação dos militares, metade uma representação de classe média brasileira.

Na verdade, o que importa neste filme não é um tipo de visão que trate de decifrar deste modo cada um de seus símbolos, que trate de identificar que pessoas, grupo de pessoas ou episódios da vida brasileira se encontram representados em tal cena ou personagem. Não é assim que o filme se constrói na tela. O que se busca é levar o espectador a se identificar com a condição do herói acorrentado na tela. A reconhecer, mais do que uma pessoa ou um grupo em particular, uma forma de opressão idêntica a então sentida do lado de fora do cinema. Mas, de certo modo, Belchior reúne certas coisas comuns aos militares e à classe média brasileira de então, anos 1970, e da década anterior, anos 1960.

Ele se mostra para o espectador numa imagem bem parecida com aquela usada então pelos militares para se mostrar ao país: como um desbravador, como um domador da floresta inculta e selvagem, como um portador de boa ordem e de civilização, como uma força de progresso sempre menosprezada e deixada à margem, ou manipulada, por uma politicagem pouco honesta. E se mostra também com uma imagem algo semelhante àquela que uma parcela da classe média fazia de si mesma: a de defensora da civilização e da cultura contra a permanente ameaça de uma subversão selvagem.

Belchior é um pouco isto, e os diálogos em que ele recita seu sofrimento de guerreiro ferido e incompreendido reforçam esta sensação. Seu desaparecimento no trecho final do filme, no pedaço da história ambientado bem no final da década de 70, torna esta interpretação ainda mais possível e curiosa. Porque Belchior desaparece bem no momento em que certa aliança entre a classe média, a burguesia e os militares está sendo rompida. Bem no momento em que as Forças Armadas começam a se dividir e a agir como um partido político, como uma soma de diferentes facções e não mais (de acordo com a expressão que se tornou clássica na segunda metade da década de 1960) como um bloco coeso e unido. Desaparece bem no momento em que Ajuricaba começa a agir com certa abertura, sem grilhões no pescoço e nos pulsos, numa espécie de liberdade condicional, vigiado pelos velhos inimigos de sempre e também por uns estrangeiros que entraram em cena de repente.

Ajuricaba é um ponto de vista. O que ele vê e o que o espectador vê através dele é uma luta interna pela conquista do poder. A expedição armada através da floresta, a viagem de volta a Manaus com os dois presos, tal como aparece no filme, é uma espécie de cenário para a ação que realmente importa, a disputa entre Pedro e Belchior pela conquista dos favores do governador e de sua filha. Importante mesmo é esta ação, desde que observada do correto ponto de vista, desde que o espectador se identifique não com os personagens que agem, mas sim com o personagem que impedido de agir livremente vê a ação – Ajuricaba.

A partir do momento em que se imagina na pele do índio o espectador passa a viver numa outra dimensão a sua experiência cotidiana. Volta a sofrer as conseqüências da luta pelo poder, de fora, imobilizado, impedido de participar, emudecido. Em verdade, naquele período em que a censura batia de maneira mais forte (e convém repetir: devemos entender como censura o sistema de governo e não apenas a repartição feita para cortar as palavras, imagens, sons e tudo o mais que culturalmente se movimente), naquele período a identificação de pessoas com personagens impedidos de falar era mais ou menos imediata; em verdade, naquele tempo em que quaisquer ideias em desacordo com o pensamento oficial eram reprimidas com violência, como coisa selvagem e inculta, a identificação das pessoas com personagens como Ajuricaba, o guerreiro acorrentado, era natural.

Era imediata a identificação com o feiticeiro capaz de se transformar em folha de árvore, em pedra, em pássaro, em peixe, em bicho; com o guerreiro capaz de sumir na floresta e aparecer de novo como carregador de banana no cais de Manaus, como nome de rua ou nome de loja da Zona Franca invadida pelo que o capitão Belchior muito contentemente chamaria de “hábitos modernos”. Da floresta do século XVIII Ajuricaba salta de repente para um barzinho de Manaus, para o aeroporto internacional, para as lojas de nomes estrangeiros que, digamos assim, chegaram à floresta para acabar com “a vida primitiva, a nudez e a língua inculta”. E ao transformar o guerreiro acorrentado da floresta num marginal ou num operário de hoje, esta história acentua a preocupação comum aos filmes anteriores: usar o índio como uma representação do homem da cidade, usar o conflito entre o colonizador branco e o índio como representação do conflito governante/governado, colonizador/colonizado, no sistema em que estamos vivendo.

O guerreiro acorrentado e mudo fica em cena como testemunha e presença ameaçadora para o colonizador por sua força obstinada e seu poder mágico de se transformar, de mudar de forma, de renascer. “A força dos índios – escreve Pedro em seu diário – não se extingue. Eles insistem em lutar mesmo depois de reduzidos a quase nada. Morrem, renascem, se desdobram em forças”. Nas ruas da Manaus de hoje a ambulância com o corpo do bandido. Ajuricaba passa por um bloco de gente fantasiada de índio. Na sala deserta do Instituto Médico Legal o corpo do bandido ganha vida. Ele reaparece como índio, com as cores do guerreiro dos manaús e dos maiapenas e diz sua única fala, se anuncia como “a força do guerreiro sempre”. A fala é rápida. O plano dura pouco tempo. O filme termina logo a seguir. Mas é como se, num breve instante, pouco antes de deixar a sala da projeção para voltar à luz do dia, o espectador acorrentado e emudecido recuperasse a fala através do personagem.

Do lado de fora do cinema, para melhor enfrentar os inimigos, o espectador, como Ajuricaba, poderá de novo se transformar em folha de árvore, em pedra, em peixe, em bicho. Poderá ser acorrentada de novo. Mas o que a experiência de viver através de Ajuricaba ensina às pessoas comuns, àquelas pessoas que o sistema condenou a viver à margem dos centros de decisão, é que elas, embora momentaneamente acorrentadas, são uma força que não morre nunca e que se transforma a todo instante.

Quase como um complemento natural destes quatro filmes, apêndice ou bibliografia que ao final de um texto relaciona os documentos e as diversas fontes de consulta que o inspiraram, surgiu em 1979 o documentário Terra dos índios, de Zelito Viana. E, muito significativamente, a documentação colocada em seguida a estas representações onde os índios estão impedidos de falar, ou falam numa língua incompreensível pelo espectador, abre espaço para que o índio fale. O explorado (a censura passava a agir com menor violência) se expressa de modo direto.

Na primeira imagem, ainda no prólogo, antes mesmo dos letreiros de apresentação, um índio olha para a câmera e fala para o espectador. Na imagem seguinte acontece o mesmo. Depois, aparece outro índio. E outro mais. E outro ainda. Outros e outros índios. E fazem todos assim como o primeiro: olham para a câmera e falam diretamente para o espectador. E a câmera, diante de todos eles, se comporta assim como diante do primeiro, olha interessada em ouvir o que eles têm a dizer. Olha com os ouvidos. Fica parada, não se mexe, nem pisca os olhos enquanto eles falam.

A imagem não se movimenta e em verdade em si mesma informa pouco. O que faz o filme é o som, é o que os entrevistados dizem. O primeiro, Marçal, um índio guarani, olha direto para câmera e se dirige especialmente ao espectador. Isto é, as coisas que ele diz no instante em que está sendo entrevistado não são propriamente respostas às questões colocadas pelo entrevistador a seu lado. O entrevistador não aparece na imagem, a pergunta que motivou o depoimento (se é que houve alguma pergunta) não aparece na faixa sonora. A imagem e o som do índio Marçal chegam soltas na tela, como se ele mesmo, o personagem que aparece dentro do quadro, comandasse o filme. Marçal age não como um entrevistado num filme, mas como alguém que faz um filme. No instante da filmagem fala já para as pessoas que, depois do filme terminado, se reúnem na sala de projeção:

“Eu queria que o público brasileiro sentisse e visse, através dessa reportagem, dessa filmagem, a situação real de uma parte do índio brasileiro. A vida do índio brasileiro, a situação deles atualmente. Não é só conhecer o índio amazonense, os nossos irmãos do Amazonas, que ainda têm área maior, que têm possibilidade de se locomover numa área bem grande, que é muito lindo. É muito bonito o índio viver sua vida natural. Nós não temos nada disso. Porque nós, os índios que vivemos aqui, é que sentimos a injustiça, a pobreza, a perseguição, a fome porque a área que ocupamos não oferece mais condições para a nossa sobrevivência. Dizer que o índio mato-grossense aqui do sul, vai viver da caça e pesca? Vai viver dos recursos naturais que oferecia antigamente aos nossos antepassados? Que viveram felizes aqui nessa bendita terra que é o Brasil, que foi do índio. Falo que foi do índio porque nós não temos mais nada. Não temos mais nada. Isso eu quero que chegue ao conhecimento do Presidente da República, que desconhece a nossa situação. Isso o brasileiro, o branco lá fora, no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, esses grandes centros brasileiros, precisa conhecer”.

O plano é longo. Marçal fala, o filme observa. Marçal faz o filme, se dirige ao espectador. Não é um entrevistado, conduz a entrevista, faz um discurso. Salta sobre a realidade que está ali diante dele e se comporta já como uma imagem de cinema. Marçal não conversa com o diretor, o fotógrafo ou o técnico de som, que foram lá fazer o filme. Marçal toma conta do meio de expressão do homem branco para se explicar, para conversar de uma vez como muitas pessoas ao mesmo tempo, para dizer a todo o mundo o quanto o índio sofre: “Nós reclamamos a injustiça, a calúnia, a pobreza e a fome que a civilização nos trouxe”.

Terra dos índios é um filme feito como se os índios tivessem tomado conta da tela. Fazer um filme, fazer imagens e sons com a movimentação, o colorido e a musicalidade habitualmente encontrados num filme não é propriamente o que interessa aqui. O que vale é colocar a câmera e o gravador a serviço dos índios, é chegar aos cinemas como informação em estado bruto; como documento puro, não manipulado; como coisa meio selvagem, se tomada em comparação com o modelo “civilizado” de cinema, com o filme mais amplamente consumido: aquele de narração e ritmo mais suaves, com pausas e entreatos para dosar as informações passadas e evitar que os dedos se atropelem.

A informação chega ao espectador agrupada em cinco blocos, um prólogo e mais quatro partes, cada uma delas marcadas por um título aplicado sobre a imagem; Eu fui nascido e criado aqui é o título da primeira; Os donos da terra, o título da segunda; O índio como negócio, o título da terceira. Nosso documento é a tradição, o da quarta parte. O material que compõe cada um destes blocos é rigorosamente o mesmo: depoimentos filmados em som direto. A câmera se coloca diante do entrevistado e espera. O tempo e a movimentação do plano são determinados pelo que o entrevistado diz e faz. A ligação de um plano com outro é igualmente determinada pela fala, pois sempre que possível o filme evita cortar a palavra do entrevistado ao meio. Procura montar os diversos depoimentos de modo a que eles se complementem, de modo a conseguir com a soma das várias falas algo semelhante a um discurso contínuo.

No prólogo, por exemplo, Marçal diz que “pelo Brasil inteiro vai levantar ou já levantou índios esclarecidos como eu, que levantará sua voz em prol de sua raça”, e cita o exemplo do xavante Mário Juruna, “que é tido como subversivo pelos elementos da Funai”, para concluir que o conceito de subversão é coisa estranha ao índio, que é coisa que pertence só ao mundo dos brancos. “O índio não sabe esse termo de subversão. Isso não é nosso”. O plano em que Marçal fala é cortado aí. Aparece então a imagem de Mário Juruna, que diz “a gente tem que explicar que não é problema do índio. Não existe problema do índio. Tem muito problema do branco”. Um novo corte na imagem surge na tela o rosto de Darcy Ribeiro, mas o texto continua, quase como se não houvesse corte algum, prosseguindo a ideia lançada por Marçal e ampliada por Juruna:

“Não há propriamente uma questão indígena, há uma questão não-indígena, quer dizer, nós, não-índios, é que somos o problema. Nós, por termos desembarcado aqui com uma pequena célula em 1500, mas com uma imensa potencialidade de crescimento, é que geramos esse problema que ampliado e desdobrado ao longo dos séculos foi indo caçar os índios onde quer que eles estivessem”.

O que conduz o filme é o texto. O que se movimenta é o texto. A imagem é verdade, nem sempre está imóvel, nem sempre é a mesma coisa. A composição do quadro varia um pouco de plano para plano: às vezes vemos só o rosto da pessoa que fala, às vezes o entrevistado aparece na tela de corpo inteiro; às vezes a paisagem por trás do índio que fala está fora de foco outras, bem definida; às vezes tudo está parado, só a voz do entrevistado se mexe, às vezes a câmera anda no meio de um grupo de pessoas à procura de alguém, para conversar, ou à procura de um detalhe apontado pela pessoa que fala.

Existem até mesmo alguns momentos em que a imagem corre mais ou menos solta, para ilustrar o que diz um narrador que de quando em quando precede um conjunto de entrevistas com informações de caráter geral. Existem também uns poucos momentos em que a imagem expressa algo mais forte que o som: os planos dos índios doentes filmados por Noel Nutels talvez sejam o exemplo mais marcante. Mas, na realidade, a variação das linhas de composição, ou a inclusão de imagens desacompanhadas de texto, não alteram o quadro geral. Terra dos índios é um audiovisual ao pé da letra: primeiro ouvir, depois ver. A imagem depende do som mesmo nos instantes em que, digamos assim, toma a palavra para pontuar as coisas que o diretor procura dizer direta (pela narração) ou indiretamente (pela seleção e montagem das entrevistas).

Palavra puxa palavra. Fala-se quase todo o tempo no filme, que se compõem como quem procura reduzir o espectador a um ouvidor, que se dirige especialmente às pessoas interessadas em ampliar a sua sensibilidade esticando os ouvidos até as vozes deste grupo de pessoas que não tem vez de se pronunciar. Fala-se muito e o espectador, aí pela metade da projeção, se interessado mesmo em dar ouvidos aos índios, se sente assim como se a imagem estivesse desviando (com seus apelos de cores, movimentos e formas que se intrometem por trás do entrevistado) a atenção do que mais importa – o texto.

O primeiro trecho da narração, por exemplo, no final do prólogo, depois dos depoimentos de Marçal, Juruna, Darcy Ribeiro e do caingangue Ângelo Kretan, acumula informações importantes: “Cinco milhões de índios viviam na região onde veio a se formar o Brasil, e falavam, mais de mil línguas diferentes (…). Hoje 200 mil índios vivem em algumas poucas reservas. Conservam seu jeito, suas línguas e mitologias, coisas que estão na raiz da aventura humana, anteriores à existência de senhores e escravos, patrões e empregados, ricos e pobres (…). A expansão da sociedade nacional se faz sobre um território imenso. Só numa parte infirma desse território podem vir a ocorrer atritos com os índios (…). A redução das populações indígenas por efeito das doenças, da escravidão, do desengano e da desmoralização que se seguem ao encontro com o civilizado é tão grande que onde existiam 25 índios, depois de um século só existe um”.

Que imagens avançam aí, enquanto o narrador dá esse quadro geral? Ou melhor, o que fazem as imagens aí, enquanto o texto coloca o espectador no meio do problema que o filme irá desenvolver nas três partes seguintes? Vemos índios doentes, isolados, em contato com civilizados, reduzidos a meio civilizados. Os planos correm como suporte do texto, casando-se em alguns momentos em perfeita harmonia com o que o narrador diz, casando-se em outros momentos até com o ritmo da fala do narrador (que lê em tom pausado, sem dramatizar a fala). E então, no instante em que vê e ouve o que está na tela, é possível que o espectador seja mais atingido pelos olhos do que pelos ouvidos e perca uma palavra ou outra. É possível nenhuma imagem de filme possa transmitir a ideia do texto. Nenhuma, a não ser a imagem dele mesmo, as letras no papel:

“O número de índios é portanto muito pequeno, e o que quer que suceda a eles, o que quer que eles façam, não pode afetar o nosso destino nem pode afetar o nosso progresso. Mas afeta a honra nacional. Afeta a nossa capacidade de atuarmos como seres humanos, de estarmos à altura dessa gente, de cuja carne nós nascemos”.

É um risco deixar que o espectador atravesse esta ideia sem se dar a conta exata do que se diz aí, porque todo o filme se organiza a partir deste sentimento. É um risco a imagem colada assim ao som (quase como para cobrir o tempo necessário para a leitura), um risco que o cinema tem corrido não apenas aqui, em Terra dos índios. Um risco que o cinema documentário tem corrido com freqüência, depois da associação de um gravador portátil à câmera de filmar, depois que os recursos sonoros do filme deixaram de ser usados nos documentários só no fundo da imagem (que nos primeiros filmes documentários concentra quase toda a documentação).

Um risco, sem dúvida, mas que Terra dos índios parece correr intencionalmente, para dar voz a quem habitualmente não tem vez. Para dar ouvidos a uma cultura que se expressa de geração em geração pela palavra. Zelito Viana faz mais ou menos assim como sugere Mário Juruna no discurso durante o encontro de caciques no Posto Taunay, em Aquidauana, Mato Grosso, mostrado no filme: “Quando a gente aprende a língua do português, costume do branco, ninguém passa a cara de branco também. Porque a cara continua cara de índio. A cara de branco continua cara de branco. Porque a língua pode mudar, pra poder entender, pra poder discutir, pra poder defender a nosso direito. Porque a cara ninguém passa a cara de branco, nem cara de estrangeiro, nem a cara de português, nem cara de branco. Continua cara de índio”.

Zelito segue mais ou menos o que observa Juruna. Pega a língua do cinema, fala como civilizado, para discutir, para entender, para defender os direitos do índio (e seu próprio direito de se sentir e de atuar como um ser humano), mas seu filme continua com cara de índio. O corpo do filme é o som. As imagens são os adornos corporais.

Deste esquema de planos determinados pelas declarações dos entrevistados Terra dos índios se afasta só em três breves momentos. O cinema, então pintura corporal mais vistosa, adorno mais trabalhado, objeto mais cuidado para um ritual festivo, se infiltra e toma conta da tela, diz também alguma coisa. O primeiro destes momentos é aquele fragmento tirado de um jornal da televisão. Na tela o espectador pode ver a fração de segundo que precede as imagens que ele habitualmente recebe em seu televisor. O repórter ajeita (enfeita o corpo com adornos e pinturas comuns aos “civilizados”, ternos, gravatas, microfones, barbas e bigodes) antes de entrar no ar. Os dois outros momentos são mais extensos e significativos.

De repente, uma única sobrevivente do grupo Ofaié-Xavante, Dona Maria Rosa, que vive sem ter mais ninguém que entenda sua língua, conversa feliz com sua própria voz registrada no gravador da equipe de filmagem, perguntando (e respondendo às próprias perguntas) onde está o pai, a mãe, os irmãos, lamentando a solidão, e dizendo-se cansada.

De repente, um índio suiá, Weran, narra o ataque a uma fazenda de brancos. E enquanto fala gesticula. Empunha o tacape, representa o ataque. Faz ao mesmo tempo o papel dos índios que se encontravam ao lado dele e o papel dos brancos, assustados, com medo de morrer.

Aí, nestes dois depoimentos colados no trecho final do filme, praticamente depois que as entrevistas já terminaram, a câmera se sente mais livre. Passeia em volta de Dona Maria Rosa (e a certa altura como quem se liberta mesmo depois de longo tempo de liberdade vigiada, esquece o que estava filmando, a índia solitária, e se desvia para a copa bem aberta de uma árvore próxima). Passeia em volta de Weran, curiosa, querendo ver de perto o rosto do índio suiá, atenta ao menor dos seus gestos. É como se, depois de uma longa conversa, movida enfim por um impulso emocional, a câmera estivesse inclinada a atuar como gente quase, a viver na natureza, a defender sua natureza, assim como faz Weran.

Na cena final de Uirá o espectador salta de um cenário real para uma paisagem mágica, a morada de Maíra. Na cena final de A lenda de Ubirajara acontece o inverso, o espectador salta de um cenário de ficção para uma paisagem real, a esplanada dos ministérios em Brasília, um índio na beira da calçada. Em Ajuricaba repete-se de certo modo o final de Uirá, o bandido morto transforma-se no guerreiro índio, o guerreiro índio transforma-se em operário. No final de Terra dos índios, embora a ação permaneça sempre igualmente para uma paisagem mágica, com o índio Weran narrando, através de um cinema que faz com o próprio corpo, sua disposição para a luta, a disposição do índio para lutar em defesa de seu direito de se sentir um ser humano.

Certas imagens se mostraram especialmente eficazes para expressar uma forma de resistência e luta neste período em que a censura batia bem forte, e por isto, de modo mais ou menos inconsciente, estas soluções apareceram num filme e em outro e em outro ainda. Em 1972, o civilizado francês comido num ritual antropofágico anunciava que os iguais a ele viriam vingar a sua morte e destruir os inimigos. Nos filmes seguintes (os iguais vieram mesmo) os índios reafirmam sua disposição de continuar lutando.

Estas histórias que tomaram o índio como assunto mostram mais claramente uma atitude presente em boa parte da produção cinematográfica de então. Mostram os reais objetivos que orientaram até a filmagem de histórias que nada têm a ver com as dos exemplos analisados aqui, ajudam a perceber os impulsos que fizeram o nosso cinema dos anos 1970 de um modo geral: um pouco desta sensação de viver acorrentado e amordaçado; um pouco da sensação de que o homem comum é uma força em permanente transformação; um pouco da sensação de que é preciso comer o agressor duas vezes – comer primeiro a sua técnica e devorá-lo depois numa grande festa antropofágica coletiva.

Num instante em que o governo se constituía como uma coisa à parte, como outro país dentro do país, e que orientado só pelo instinto de sobrevivência vigiava e censurava, o herói popular aprendeu a falar uma linguagem incompreensível pelo poder ou a se expressar pelo silêncio. A comunicação direta entre as pessoas passou a ser possível apenas numa esfera mágica, numa realidade/outra diversa daquela imposta pelo poder. E assim, de quando em quando, a câmera de filmar se deteve sobre personagens rebeldes que ficam quase todo o tempo mudos em cena (como o Lacraia de Chuvas de verão, de Carlos Diegues); ou sobre o rosto de personagens que reclamavam angustiadas: “me deixa falar” (como a Felicidade de Mar de rosas, de Ana Carolina); ou sobre rebeldes marcados para morrer desde a primeira cena, exatamente porque falavam demais (como o Quéro de Barra pesada, de Reginaldo Farias, ou o personagem título de Lúcio Flávio, o passageiro da agonia, de Hector Babenco).

Ou então sobre os personagens que podem falar, sobre esta parcela da população que tem acesso ao poder, para através deles revelar a condição de vida dos personagens empurrados para o fundo da cena – como Coronel Delmiro Gouveia, de Geraldo Sarno, que retrata as pessoas comuns, o povo trabalhador como diz um dos personagens, enquanto conta a história de um empresário. Na cena final Zé Pó, o migrante empurrado pela seca e pela falta de trabalho no campo para a Fábrica da Pedra, homem do campo que se adaptou ao trabalho na fábrica, olha para o espectador e pensa em voz alta.

A fábrica de Delmiro acabara de ser destruída e jogada nas águas do São Francisco, e o operário pensa que tudo se fez sem consultar o povo trabalhador. Mandaram construir a fábrica, mandaram destruir a fábrica. E pensa ainda que se um dia as fábricas pertencerem ao povo trabalhador, que trabalha como as máquinas e pensa também, ninguém poderá mais mandar fazer ou desfazer assim. Seu rosto está na tela, sua voz está na tela, mas ele não fala. O espectador ouve o pensamento de Zé Pó. Ali por perto, vigilante, está o poder, representado pelo industrial inglês que comprou a fábrica para destruí-la. O espectador ouve o pensamento de Zé Pó, que ainda não pode se transformar em palavras ou em ação.

Numa certa medida, todos estes filmes – os que falam do índio e os que falam de personagens mudos perseguidos até a morte ou impedidos de agir – se preocupam em traduzir para o espectador o som do que foi censurado, silenciado. Mostrar o silêncio como uma língua estranha, que o poder não compreende nem pode censurar, o silêncio como uma forma de reação. E ao mesmo tempo, todos estes filmes procuram traduzir a sociedade em que o espectador está vivendo como uma tribo envolvida num amplo ritual de antropofagia. Como Uirá, como o índio massacrado pelo colonizador branco, o espectador vai sendo comido pelo poder. Como os tupinambás, como os índios que comem o francês, o espectador se prepara para devorar o poder. Recebe o poder em casa, como um hóspede, aprende com ele o manejo do canhão e deixa que ele vá aprendendo os hábitos da floresta.

“De fato, em nossa sociedade os homens se devoram uns aos outros”, disse Joaquim Pedro de Andrade pouco depois de realizar Macunaíma, em 1969, abrindo, de certo modo, o sentimento que tomaria conta da década de 70. “Todo consumo é redutível, em última análise, ao canibalismo. As relações entre as pessoas, as relações sociais, políticas e econômicas, são ainda bastante antropofágicas. Quem pode come o outro, por interposto produto ou diretamente, como nas relações sexuais. A antropofagia se institucionaliza e se disfarça. Os novos heróis, à procura da consciência coletiva, partem para devorar quem nos devora, mas são fracos ainda. Mais numerosamente, enquanto isso, o Brasil devora os brasileiros”.

Aí, neste período em que a censura agia de maneira mais forte, em que o governo se armava contra as pessoas governadas, em que o poder se constituía como mecanismo independente, com exigências próprias, e montava um sistema de segurança contra todos nós, que éramos a coisa inculta, aí, neste período, nada representava melhor o quadro social do que as relações quase reciprocamente antropofágicas entre índios e colonizadores – tal como a questão começou a se desenhar em Como era gostoso meu francês: brancos colonizadores comendo-se entre si para ver quem comiam mais riqueza dos índios, índios tupinambás comendo um colonizador branco.

“Para mim o Francês é um importante ponto de partida” – disse Nelson Pereira dos Santos pouco depois de realizar Tenda dos milagres, em 1977. “Foi uma tentativa de procurar na antropologia um ponto de apoio para compreender a realidade do Brasil de forma mais generosa, mais aberta. O importante era sair dali sem um esqueminha preparado – sem uma equação onde pudéssemos encaixar uma realidade rica, controversa – para poder chegar a um resultado preciso. Quando se aplicam esquemas e eles não dão certo ficamos de mal com o Brasil e com as pessoas, sem se dar conta de que o erro está na equação, e não na realidade. Eu acho que vem do Francês esta coisa de fazer um processo de descolonização que vem de dentro, muito mais no campo da emoção do que no campo de uma pesquisa distanciada”.

A ideia do ritual antropofágico (que se institucionaliza e se disfarça, como lembra Joaquim Pedro) e a ideia do homem comum como uma força da natureza, que não morre e se transforma sempre, é a base de dois outros filmes de Nélson: O amuleto de Ogum, 1974, e Tenda dos milagres, de dois anos depois. No primeiro, o herói popular, Gabriel, o garoto com o corpo fechado e protegido pelo amuleto, renasce depois de assassinado pelo bandido. No segundo, o herói popular, Pedro Archanjo, renasce também depois da morte. Ou melhor, continua vivo mesmo depois de ter morrido em algum momento da década de 40, quando liderava a luta contra o fascismo. Vivo no corpo (melhor: na cabeça) das pessoas comuns. Vivo em especial naquelas pessoas comuns na última cena do filme desfilam fantasiadas de índio para comemorar a independência da Bahia.

*José Carlos Avellar (1936-2016) foi crítico de cinema, jornalista e gestor público. Autor, entre outros livros, de O cinema dilacerado (Alhambra).

Publicado originalmente na revista Cinemais, no. 28, março de 2001.

 

Nota


[i] Zelito Viana retomou pouco depois o índio como personagem central de uma ficção. Avaeté, semente de vigança (1985), que como contou em Retrato do artista quando fervente por dentro, depoimento a Cinemais número 23, maio/junho de 2000, nasceu do livro Os índios e a civilização de Darcy Oliveira. “A história tinha ficado na minha cabeça. Uma história terrível, a realidade é pior do que está no filme. O cara massacrou os índios não para tomar a terra deles, mas para espantá-los – entende? – só para espantar os índios. Veja o nível de loucura que chega a briga do latifúndio no Brasil: os índios chegaram perto da terra dele e ele dizimou uma aldeia para espantar, para os outros não chegarem ali perto. Os índios não estavam nem na terra deste ainda!”. Pouco antes Sylvio Back retomara o índio como tema central de seu documentário República Guarani (1982), sobre o “projeto religioso, social, econômico, político e arquitetônico sem equivalência na história das relações conquistador-índio” criado por jesuítas com índios guarani – filme impulsionado pelo sentimento de que “trezentos e cinquenta anos depois, ainda mantido o indígena na condição de inferior é possível identificar uma nostalgia daqueles tempos”. Mais recentemente Back voltaria ao tema em Yndio do Brasil (1995), “colagens de dezenas de filmes nacionais e estrangeiros – de ficção, cine-jornais e documentários – para revelar como o cinema vê o índio brasileiro desde quando foi filmado pela primeira vez em 1912” de acordo com o texto de apresentação do filme. A grafia especial do título, yndio escrito assim, com o y de Sylvio Back, parece uma clara indicação de tom semelhante aos anos 70 (colocar-se, de certo modo, dentro do universo do índio, tomar o universo do índio para falar do seu próprio universo de homem branco vítima de mecanismo semelhante ao que oprime o índio): ou seja, falar em tom pessoal e poético. Back organiza sua colagem usando à maneira de um texto de narração uma série de oito poemas. Um deles, O outro, é também uma tradução / atualização do sentimento dos anos 70: “Montaigne: índio é feliz. / Sertanista: índio quer neocid. / Custer: índio bom é índio morto. / Posseiro: índio morto é bom porto. / Pastor: índio é sátrapa. / Exército: índio é apátrida. / Raoni: índio quer carabina. / Caiapó: índio quer concubina. / ONG: índio quer nação. / Garimpo: índio quer aluvião. / Igreja: índio quer hóstia. / Índio: branco é sósia”.

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