O apartheid na Palestina

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO*

Em Bruzundanga, violações de Israel contra os palestinos não se discutem

Em setembro do ano passado, às vésperas da abertura da Assembleia Geral da ONU, Lakhdar Brahimi, antigo enviado especial do secretário-geral da ONU e membro do grupo The Elders, criado por Nelson Mandela, apelava para que a Assembleia investigasse “o aprofundamento do regime de supremacia israelense sobre milhões de palestinos, que tem sido reconhecido por cada vez mais observadores como um regime de apartheid”.

Brahimi lembrava que, com a anexação e expansão de seu controle absoluto sobre toda a Palestina, Israel nega o direito inalienável do povo palestino à existência e soberania em sua própria terra. Consolidando, assim, um sistema de governo de discriminação, segregação e desigualdade institucionalizada, por meio de leis e políticas, em toda a Palestina histórica. Concluía dizendo que esse sistema atende à definição de apartheid da ONU.

Mapa do apartheid de Israel contra palestinos

Essa caracterização das práticas de Israel contra os palestinos como apartheid não é nova. Até líderes israelenses, como os antigos primeiro-ministros Ehud Barak e Ehud Olmert, alertaram que o Estado judeu se arriscava a se tornar um Estado com apartheid, a menos que negociasse com os palestinos. Em 2006, o ex-presidente Jimmy Carter fez a mesma análise com o seu livro Palestine: Peace Not Apartheid. Bem recentemente, as respeitáveis ONGs israelenses Yesh Din e B´Tselem recorreram igualmente à definição de apartheid.

Em maio de 2021, um relatório da Human Rights Watch (HRW), baseado numa investigação de dois anos e em duas décadas de trabalho em Israel e nos territórios ocupados, chegou à mesma conclusão de que o crime contra a humanidade de apartheid é cometido pelo governo de Israel. Ao usar o termo apartheid a HRW afirma simplesmente aplicar o direito internacional contido na convenção de 1973 sobre o apartheid e no estatuto de Roma, do Tribunal Penal Internacional. Três elementos concorrem para tal crime: a intenção de um grupo racial de dominar um outro, uma opressão sistemática e a perpetuação de certos atos desumanos.

Agora chegou a vez da Anistia Internacional (AI), tendo como nova secretária-geral Agnès Callamard, antiga relatora especial da ONU sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias. A AI acaba de publicar o relatório “O apartheid de Israel contra os palestinos: um sistema cruel de dominação e um crime contra a humanidade”, baseado numa análise de cinco anos do direito civil israelense, que governa 2 milhões de palestinos com nacionalidade israelense, e o direito militar, que governa os restantes 4 milhões na Cisjordânia e Gaza.

Agnès Callamard afirma que “o relatório revela a verdadeira extensão do regime de apartheid de Israel. Quer vivam em Gaza, em Jerusalém Oriental e no resto da Cisjordânia, ou em Israel, os palestinos são tratados como um grupo racial inferior e sistematicamente privados de seus direitos. Descobrimos que as políticas cruéis de segregação, expropriação e exclusão de Israel em todos os territórios sob seu controle claramente equivalem ao apartheid.

Como em todas as falas e relatórios mencionados aqui, o objetivo principal deste artigo é relembrar que a comunidade internacional tem a obrigação de agir, deixando de tolerar Israel como um estado membro da ONU acima das obrigações do direito internacional.

Diante do relatório, houve acusações imediatas de antissemitismo do governo israelense, afirmando que a “linguagem extremista” (sic) da Anistia derramará combustível no fogo do antissemitismo” e pode levar à violência contra os judeus em todo o mundo. “A Anistia não é uma organização de direitos humanos, mas apenas outra organização radical que ecoa propaganda sem verificar seriamente os fatos”, afirmou Yair Lapid, ministro das Relações Exteriores. “Em vez de buscar a verdade, a Anistia ecoa as mesmas mentiras compartilhadas por organizações terroristas”. Apesar dessa reação histérica, como caracterizou o jornal israelense Haaretz, o relatório da Anistia Internacional visa o atual governo de Israel e não a população israelense, nem contesta a existência do Estado de Israel.

E aqui, em Bruzundanga? Ao contrário dos grandes jornais impressos e cadeias de televisão no mundo, aqui a grande imprensa foi discretíssima sobre o relatório da Anistia Internacional, privilegiando opiniões favoráveis a Israel. O mesmo silêncio tumular se ouviu nas Universidades, nas organizações de direitos humanos. A questão das violações dos direitos humanos dos palestinos simplesmente não existe em Bruzundanga.

*Paulo Sérgio Pinheiro é professor aposentado de ciência política na USP; ex-ministro dos Direitos Humanos; relator especial da ONU para a Síria e membro da Comissão Arns. Autor, entre outros livros, de Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil, 1922-1935 (Companhia das Letras).

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • O que significa dialética do esclarecimento?cultura maleta 19/09/2024 Por GILLIAN ROSE: Considerações sobre o livro de Max Horkheimer e Theodor Adorno
  • Armando de Freitas Filho (1940-2024)armando de freitas filho 27/09/2024 Por MARCOS SISCAR: Em homenagem ao poeta falecido ontem, republicamos a resenha do seu livro “Lar,”
  • UERJ afunda em um Rio de crisesUERJ 29/09/2024 Por RONALD VIZZONI GARCIA: A Universidade Estadual do Rio de Janeiro é um lugar de produção acadêmica e orgulho. Contudo, ela está em perigo com lideranças que se mostram pequenas diante de situações desafiadoras
  • América do Sul — uma estrela cadenteJosé Luís Fiori 23/09/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A América do Sul se apresenta hoje sem unidade e sem qualquer tipo de objetivo estratégico comum capaz de fortalecer seus pequenos países e orientar a inserção coletiva dentro da nova ordem mundial
  • A ditadura do esquecimento compulsóriosombra escadas 28/09/2024 Por CRISTIANO ADDARIO DE ABREU: Pobres de direita se identificam com o funk ostentação de figuras medíocres como Pablo Marçal, sonhando com o consumo conspícuo que os exclui
  • Fredric Jamesoncultura templo rochoso vermelho 28/09/2024 Por TERRY EAGLETON: Fredric Jameson foi sem dúvida o maior crítico cultural de sua época
  • Coach — política neofascista e traumaturgiaTales-Ab 01/10/2024 Por TALES AB´SÁBER: Um povo que deseja o fascista brand new, o espírito vazio do capitalismo como golpe e como crime, e seu grande líder, a vida pública da política como sonho de um coach
  • Uma carreira de Estado para o SUSPaulo Capel Narvai 28/09/2024 Por PAULO CAPEL NARVAI: O presidente Lula vem reafirmando que não quer “fazer mais do mesmo” e que seu governo precisa “ir além”. Seremos, finalmente, capazes de sair da mesmice e ir além. Conseguiremos dar esse passo adiante na Carreira-SUS?
  • Direito dos trabalhadores ou lutas identitárias?Elenira Vilela 2024 30/09/2024 Por ELENIRA VILELA: Se ontem dizíamos “Socialismo ou barbárie”, hoje dizemos “Socialismo ou extinção” e esse socialismo contempla em si o fim de toda forma de opressão
  • Hassan NasrallahPORTA VELHA 01/10/2024 Por TARIQ ALI: Nasrallah entendeu Israel melhor do que a maioria. Seu sucessor terá que aprender rápido

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES