Por HENRY BURNETT*
Comentário sobre o mais recente álbum da dupla
É assim, de modo um tanto misterioso, que a gravadora Night Dreamer (https://www.nightdreamer.co.uk/) se apresenta, “Direct-to-disc”. Uma consulta ao site explica do que se trata. Músicos são convidados a registrar um álbum ao vivo, gravado diretamente sobre um LP de vinil virgem com sua limitação temporal de 40 minutos no máximo. Uma espécie de “De volta para o futuro” fonográfico, porque o processo lembra os registros de 100 anos atrás em duas direções complementares: artística e técnica.
Tecnicamente estamos falando de equipamentos de última geração, cabos, microfones, mesas, fones de ouvido etc., mas isso, digamos, na superfície. No texto de apresentação a designação é simples, para quem entende do riscado: “do microfone Neumann para a prensa Neumann” – a mítica fábrica alemã de microfones. O diferencial é o que não se vê. Gravado no Estúdio Artone, na Holanda (https://www.artone-studio.com/), a gravadora utiliza equipamentos vintage restaurados, como “uma das últimas quatro mesas de mixagem RCA 76D,” e amplificadores Westrex Capitol, “projetados especificamente para os estúdios da Capitol para gravar artistas como The Beatles e The Beach Boys”; não é preciso falar mais nada. Trata-se de uma espetacular loucura de aficionados por som.
Artisticamente, e mais importante, é que o projeto acaba produzindo um retorno à época de ouro das gravações, para dizer o mínimo. Basta lembrar que Night Dreamer é uma homenagem ao álbum homônimo de Wayne Shorter, de 1964, o primeiro que gravou como líder para a mítica Blue Note.
Logo se vê que a ideia é um salto para a época pré-transistor, anterior ao mundo digital, este mundo da música chapada, altamente comprimida e com volume de saída cada vez mais alto. Experimente colocar para tocar João Gilberto voz e violão e compare com qualquer faixa da Anitta. Não esqueça de desativar o “controle de volume” do seu serviço de streaming favorito, que tudo nivela para cima indiferente às opções de quem produziu.
Agora imagine ser um dos convidados para gravar nessas condições. Os brasileiros Seu Jorge e Rogê foram. Parceiros de mais de 25 anos, o álbum foi registrado em dois dias e junta à primazia técnica um componente artístico singular, sobretudo para quem acompanha o trabalho solo de ambos. Por lá passaram Seun Kuti, Etuk Ubong, Gary Bartz & Maisha e muitos outros já estão anunciados.
O resultado é, modesta opinião, o melhor disco de suas carreiras, Night Dreamer Direct-to-disc Seu Jorge & Rogê. Esqueça (quase tudo) que eles gravaram até aqui. Vai ser difícil lembrar de “Burguesinha” ouvindo “A força”, por exemplo, um dos pontos altos do disco, escrita em parceria com Rogê. Talvez o projeto não toque em churrasco e balada vip, e a razão parece clara. À essa altura, com suas carreiras nacionais e internacionais consolidadas, o rigor não precisa ser escamoteado. É um disco de amizade, desterro, raízes e deslocamentos, mas é também um disco de valor estético, um álbum na acepção antiga e hoje clássica do termo. Trocando em miúdos, eles gravaram um disco passadista que vai atravessar o tempo, como costuma acontecer com os clássicos.
Se um artista tem a chance de registrar um conjunto de canções dentro de um esquema que promete, como se lê no site, “a leveza da libertação vs. o peso da expectativa”, ou a “confiança na musicalidade bruta vs. a vulnerabilidade da exposição”, a conclusão se dá por antecipação, “é nesses momentos alquímicos de contraste que a essência da expressão pode surgir.”
A voz e a ancestralidade congregadas nas performances de Seu Jorge se impõem na maior parte do disco. Só me recordo de um momento onde o cantor pareceu acanhado ao cantar, foi num especial do Canal Brasil, onde ele duetava com Milton Nascimento, mas o exemplo é covardia. Sua voz é um elemento raro, sobretudo quando interpreta canções de gravidade, como “Saravá” e a citada “A força”.
Ao longo de sua carreira, Rogê, que é mais violonista que Seu Jorge, alterna momentos mais alinhados ao violão de Baden Powell com outros mais próximos do cantor Bebeto. Mas predomina o samba-rock e as letras leves. Seu Jorge já gravou discos excelentes, como Seu Jorge e Almaz (2011) ou The life aquatic – Studio Sessions featuring Seu Jorge (2005), mas o amadurecimento destes álbuns até o mais recente é nítido. Pudesse o cantor se manter nesse patamar, seria difícil prever até onde ele pode chegar.
É um disco equilibrado, como os anteriores, mas autoral, o que faz toda diferença e produz o salto. Talvez seja o primeiro disco de maturidade de ambos. Apesar de predominarem os violões, o disco conta ainda com as participações especiais de Chavebeats (baixo e Fender Rhodes), Pretinho da Serrinha (cavaquinho e percussão) e Peu Meurray (percussão). Um disco de amigos, sobre a amizade.
Com quatro das sete canções compostas um dia antes da gravação, surpreende a unidade do material. Segundo Seu Jorge, isso aconteceu em razão do entrosamento de 25 anos entre ele e Rogê.
Embora sem ter tido a oportunidade de ouvir o vinil, não é difícil perceber o primor do som final, mesmo nas plataformas de streaming que não prezam sempre pela qualidade. Uma naturalidade rara, que só podemos comparar com alguns registros de estúdio de João Gilberto ou Gilberto Gil, no mesmo formato, como o já citado João voz e violão ou Gil luminoso.
É curioso escrever que os violões soam com naturalidade, sendo um instrumento de sonoridade tão particular, mas é isso mesmo. Foi preciso voltar atrás para recuperar timbres que se perdem cada vez mais na música digital. Em “Saravá”, faixa de abertura, Peu Meurray toca um tambor criado por ele mesmo, desenvolvido sobre um pneu e que hoje ele ensina a construir em suas viagens pelo mundo. “Foi o tambor que ensinou a cantar/ Foi o tambor que ensinou a viver/ Foi o tambor que ensinou a dançar” diz a canção dele em parceria com Magary Lord e Luizinho do Jeje, a única não assinada por Rogê e Seu Jorge.
“A força” é a mais africana das faixas, evoca os orixás na letra mais bonita do disco, “E vem do céu a força de Obatalá/ E tem justiça na força de Xangô/ E vem do mar a força de Iemanjá/ E vem você com a força do nosso amor”. Percussão de mata, cuíca, violões que remetem a Baden, o momento mais alto do disco, sem dúvida.
“Meu Brasil”, com Pretinho da Serrinha dividindo a parceria, poderia ser classificada como ufanista, mas a pista é falsa. Ninguém pode ser ufanista no Brasil de hoje invocando João Gilberto e Marielle, seria uma afronta aos nossos patrioteiros de porta de STF. Talvez esteja mais próxima de uma canção do exílio. Exaltando essas perdas recentes irreparáveis, mais Dona Ivone Lara e Garrincha, a letra exalta o Brasil que “mora dentro do meu violão”, “descendente também de Zumbi”, um país que escoa sob nossos pés.
Rogê escreveu “Pra você amigo”, uma declaração de amor e amizade, com versos de grande afetividade, “Olha quanto tempo faz/ Que a gente se conhece, irmão/ Tanta coisa que ficou pra trás/ Muita luta e superação / Quando eu mais precisei/ Foi você quem me estendeu a mão”. É a faixa que melhor explica a qualidade do disco, a conexão dos compositores se revela sem meias palavras.
A bela “Caminhão”, primeira parceria dos dois logo que se conheceram, é a mais contida interpretação do disco, vozes sussurradas, violão bossa novista levíssimo, diz “Dê uma chance pra si mesmo e vem curtir esse momento/ No meu peito o sentimento vem de um jeito/ Que eu só penso em dar ele pra você/ Você vem que eu te aceito/ Porque eu sou um caminhão / Vem agora, vem sem medo/ Minha cabeça é a cabine, e a caçamba o coração”.
“Vem me salvar” é a mais romântica, “Fico só sem ninguém/ Se você não vem/ Posso até ficar bem/ Mas com um porém/ Se você só minha for/ Minha flor/ Uma flor só minha”. Interpretada em uníssono, com uma atmosfera primaveril, nela brilha o cavaco de Pretinho da Serrinha.
“Onda carioca”, última faixa do LP, abre com um breve diálogo informal entre os dois, e antes da entrada da voz Seu Jorge manda um “divirtam-se aí rapaziada”. Curioso que essa sugestão apareça justo na última faixa, quase um recado velado aos seus fãs de domingo, à essa altura do disco talvez meio aparvalhados esperando a hora da festa começar, quando ela já está acabando. É a faixa mais leve, um ijexá delicioso, relembrando o Rio de Janeiro que ambos deixaram para trás. “Onda de bater/ Onda de dropar/ Onda de surfar/ Onda carioca atravessa o mar/ Onda liberté/ E égalité/ E fraternité/ Onda carioca atravessa o mar”.
Profundamente conectados à sonoridade brasileira, cercados pelo que há de melhor no mundo global da música, Seu Jorge e Rogê nos fazem lembrar, nos breves 33 minutos que precisamos para atravessar as 7 faixas, de um Brasil possível, para onde confluem (confluíam?) a festa e a história, o ritmo e a dança, a percussão e o violão de rua. Tudo tão perto e tudo ao mesmo tempo tão longe.
*Henry Burnett é professor do Departamento de filosofia da Unifesp.