Antonio Gramsci e José Carlos Mariátegui

Imagem: Mikhail Nilov
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Por JOHN KENNEDY FERREIRA*

As aproximações das abordagens dos dois pensadores sobre o fascismo

Antonio Gramsci e José Carlos Mariátegui não chegaram a se conhecer, talvez tenham sido apresentados, mas não houve qualquer relação de amizade ou atividade política ou profissional em comum. Mariátegui era um leitor assíduo do L’Ordine Nuovo e, muitas vezes, reproduzia a opinião do semanário e de Gramsci, em seus artigos endereçados aos jornais peruanos (PERICÁS, 2010 p 41). Ambos mantiveram diálogos com personalidades do seu tempo, como Benedetto Croce, Piero Gobetti, George Sorel, Giovanni Amendola, entre outros, o que demonstra a atmosfera de renovação política da época. Penso que será essa atmosfera que permitirá observar as aproximações nas duas abordagens sobre o fascismo.

José Carlos Mariátegui desembarca na Itália em fins de 1919 e por lá permanece até 1923, período em que esteve obrigado, por conta de seus posicionamentos políticos, a ser adido cultural junto a embaixada peruana na Itália. Mariátegui chega no meio do Biennio Rosso, momento em que as classes operárias e camponesas tiveram uma espetacular ascensão, com greves de ocupações de fábricas e de fazendas pela reforma agrária, momento que foi definido pelo Grupo do L’Ordine Nuovo como de dualidade de poder e período revolucionário.

O jovem jornalista e poeta peruano trava intenso contato com a cultura e a política italiana, busca entender a sociedade e a vida in loco. Dessa maneira, tomará contato com as diversas correntes de pensamento e com seus principais protagonistas, o que é revelado nos artigos enviados aos jornais de Lima. Assim, busca mostrar aos peruanos a efervescência da Itália no pós-guerra. Seu contato com o ascendente movimento fascista se dará primeiro pela ação de Gabriele D’Annunzio em Fiume. Sabidamente, Mariátegui foi um admirador do poeta, o que é possível notar na sua primeira abordagem sobre a Constituição de Fiume, nominada de Carta del Carnaro.

D’Annunzio é mostrado como um político criativo e inovador. Mariátegui crê que a Carta Constituinte feita pelo poeta guerreiro traduz uma inovação artística, garante direitos à sociedade e acredita que as corporativas de ofícios representam avanços nas relações trabalhistas. Todavia, um pouco depois, muda sua opinião por compreender a dimensão autoritária e militarista de Fiume. Percebe, inclusive, que o poeta era mais preocupado com sua própria estética do que com a política. Tempos depois, assinalará que “D’Annunzio não é fascista, mas o fascismo é dannunziano” (MARIATEGUI, 2010, p. 291).

Antonio Gramsci se deparará com a questão Fiume entendendo-a como uma das grandes manifestações da perda de legitimidade do Estado Liberal. Mostra o risco de fissura na autoridade central que é desrespeitada pelos soldados, pela burocracia de Estado, pelo comando das forças armadas, por setores expressivos das classes dominantes, colocando em crise a autoridade central. Concorda com Mariátegui sobre o autoritarismo e a aventura de Fiume. Acentua que a burguesia está com o seu domínio sobre o território nacional em xeque e vê o gesto de D’Annunzio como o início da guerra civil: “O governo de Fiume contrapôs-se ao governo central, a disciplina armada do governo de Fiume contrapôs-se disciplina legal do governo de Roma (…) Em Itália, come em todos os outros países, como na Rússia, coma na Baviera, coma na Hungria, é a classe burguesa que desencadeia a guerra civil, que imerge a nação’ na desordem, no terror, na anarquia” (GRAMSCI, 1977, p. 36).

Com a ascensão das massas proletárias e camponesas, o Estado liberal burguês italiano se viu obrigado a diversas ações defensivas e foi, aos poucos, perdendo o controle sobre a sociedade. Para evitar a revolução socialista, os governos dos presidentes do Conselho de Ministros, Francesco Nitti e Giovanni Giolitti, tiveram que fazer concessões econômicas e políticas que os colocaram em desacordo com a sua própria classe e, ao mesmo tempo, impulsionaram um clima anárquico que possibilitava a ação de grupos paramilitares coadjuvantes à coerção do Estado. O avanço das forças proletárias e camponesas exauriram as instituições liberais deixando em aberto duas possibilidades: ou a reconstrução do país por meio de uma Revolução socialista ou a restauração mediante uma violenta reação.

No período que residiu na Itália, Mariátegui, escreverá quatro artigos tratando especificamente dos socialistas italianos (As forças socialistas italianas, A cisma socialista, O partido socialista e a Terceira Internacional e A política socialista na Itália). Nos artigos, mostra uma conjuntura tensa e revolucionária, salienta que as indecisões e as disputas internas realizadas entre as principais correntes – maximalista, colaboracionista e a comunista – criaram indecisões que bloquearam a capacidade de ação e fermentaram a cisma. Como um observador agudo, repara que a ação ficou limitada e as tensões internas impediram um melhor desempenho, seja no parlamento ou fora dele.

Perceberá que a inibição e fissura das forças socialistas deixaram em aberto a ação: As duas alas são consequentes com suas respectivas apreciações do momento histórico. A diferença dessas apreciações é o que as separa. É lógico que aqueles que consideram que é o momento da revolução se oponham a que o socialismo se ocupe de outra coisa que não acelerá-la. E é lógico que aqueles que consideram o contrário queiram que o socialismo cruze os braços negativamente ante os problemas os problemas presentes que não afetam a uma classe, mas a todas, principalmente, às classes trabalhadoras (MARIÁTEGUI, 2010, p. 70).

Se a preocupação de Mariátegui é de um jornalista socialista que estava em seu “mezanino privilegiado”, a de Gramsci é a de um dirigente que travou importante batalha junto ao PSI para que esse pudesse se comportar à altura da conjunta revolucionária. O Biennio Rosso foi marcado por contradições de grandes proporções no cenário internacional e nacional: grande crise econômica, desvalorização da moeda, inflação, perda de poder de compra do salário, desemprego em massa e aumento da exploração dos trabalhadores, que alcançou níveis insustentáveis, contribuindo para as tensões sociais se multiplicaram, com manifestações, greves e duras lutas camponesas.

As lutas proletárias aconteceram em toda a Itália, com greves econômicas, greves contra a repressão, greves para não transportar armas aos exércitos brancos antibolcheviques e a mais importante de todas, a ocupação armada das fábricas de Turim contra o locaute patronal. Aqui nascem os Conselhos de Fábricas, que se tornam uma tática geral que se espalha em vários ramos produtivos. Os Conselhos assumem a produção, a disciplina do trabalho e a vigilância armada das fábricas.

O movimento era, em grande parte, espontâneo e incorporaram os bairros proletários e as famílias dos trabalhadores. Os governos liberais, em profunda crise, não conseguiam governar e, por seu turno, as classes trabalhadoras, cada vez mais confiantes da possibilidade material da transformação social da sociedade, disseminavam o sentimento de realizar história e o socialismo. Na perspectiva dos trabalhadores e suas principais lideranças, se não conseguissem realizar a revolução e o socialismo, uma repressão semelhante a que abatera as revoluções na Baviera e na Hungria, se repetiria na Itália. Gramsci revelou a percepção sobre esse momento em artigo publicado, no L’Ordine Nuovo, em 08-05-1920: “A fase atual da luta do classes, na Itália, é a seguinte: ou a conquista do poder político, por parte do proletariado revolucionário para passagem dos modos de produção e de distribuição que permitam uma recuperação da produtividade; ou tuna tremenda reação por parte da classe proprietária e da casta governativa” (GRAMSCI, 1977, p.133).

Para impulsionar a luta socialista, Gramsci acreditava que o movimento dos conselhos deveria superar a condição de representação local de fábricas e converter-se em órgãos de autogoverno operário, com eleição de representantes de todos as fábricas, constituindo assim conselhos regionais e nacional. Para que esse movimento acontecesse, o L’Ordine Nuovo deveria contornar a desconfiança que havia no PSI, o qual se encontrava há anos preso a uma lógica burocrática de intermediação entre o capital e o trabalho, assim como vencer a desconfiança dos sindicatos.

Enquanto a direção de Turim apontava a necessidade de autonomia e de autogoverno, as várias frações do PSI viam como movimento espontaneísta, anarquizante, corporativista e desorganizado e, portanto, exigia a subordinação dos conselhos aos sindicatos e ao PSI.

 Gianni Fressu chama atenção para fato de o L’Ordine Nuovo ter assumido um papel inovador enquanto imprensa operária. O periódico traduzia artigos de autores diversos, então desconhecidos na Itália, como Lukács, Zinoviev, Daniel de Leon, entre tantos e, portanto, relacionou-se melhor e criativamente com as várias experiências operárias que aconteciam, como os conselhos operários da Alemanha (FRESSU, 2020 p 87). Isso pode ser visto nesta comparação feita por Gramsci: “A natureza essencial do sindicato é de concorrência, não é o comunismo. O sindicato não pode ser instrumento de renovação radical da sociedade e: pode oferecer ao proletariado burocratas experimentados, técnicos especialistas em questões indústrias de índole geral, não pode ser a base do poder proletário”. (GRAMSCI, 1977, p 43).

A tentativa central consistia em orientar politicamente as massas e lidera-las à revolução. Gramsci conclui, fazendo uma autocrítica, que o L’Ordine Nuovo e a direção socialista de Turim pecaram por ingenuidade e juventude ao não constituírem uma fração nacional com este propósito, além de não construírem um centro de direção urbana em Turim e no Piemonte (Gramsci in Crinache de L’Ordine Nuovo).

Frente ao levante proletário camponês, a direção nacional do PSI e dos sindicatos tiveram que optar por um acordo econômico com o governo Giolitti. Isso trouxe grandes ganhos econômicos à classe trabalhadora, mas levou a uma desilusão com a luta socialista e com o PSI, proporcionando um declínio da atividade de massas e seu afastamento do Partido. Gramsci, em artigo de 10 de julho de 1920, comenta que o PSI estava perdendo o controle sobre as massas trabalhadoras, deixando-as sem rumo e “estas sem guia, serão atiradas, pelo desenrolar dos acontecimentos, para uma situação pior do que as massas proletárias de Áustria e da Alemanha” (GRAMSCI, 1977, p. 169).

Poucos meses depois, já julgando a situação irremediável, sentencia: “Os comunistas são e devem ser frios e calmos pensadores: se tudo está em ruina, é preciso refazer tudo, é preciso refazer o Partido, é preciso, a partir de hoje, considerar e armar a fração comunista como um partido verdadeiro e próprio, como a sólida estrutura do Partido Comunista Italiana que chama adeptos, organiza-os solidamente, educa-os, faz deles células ativas do organismo novo que se desenvolve e se desenvolve até se transformar em toda a classe operária, até se tornar a alma e a vontade de todo o povo trabalhador (GRAMSCI, 1977, p. 233).

Antes uma força motriz significativa na nação italiana, o PSI tornou-se um partido parlamentar vinculado e limitado às instituições liberais do país. Nesse momento, as condições para a ruptura com o PSI e a fundação do Partido Comunista estavam mais que amadurecidas e o congresso de Livorno, de janeiro de 1921, selou esse destino. A crise do movimento socialista contribuiu significativamente para o avanço da reação, possibilitando a passagem de uma posição revolucionária para a guerra civil. O conflito ganhou força primeiramente no campo, por meio do financiamento da Confederação Geral da Agricultura e, em seguida nas cidades, com o financiamento da Confederação Geral da Indústria, ambas criadas em 1920.

Mariátegui enfatiza que os governos Nitti e Giolitti enfrentavam uma correlação de forças que o impossibilitam de apresentar uma política repressiva naquele instante. Naquela conjuntura, foi fundamental a manutenção e conservação da sociedade burguesa. Isso implicava fazer concessões aos socialistas e aos trabalhadores como medida para tomar fôlego para a reorganização do Estado ( MARIÁTEGUI, 2010, p. 102). Noutro momento, ele observa que após os recuos “As classes burguesas aproveitam o fenômeno ‘fascista’ para sair de encontro à revolução. (… As forças conservadoras estão seguras de frustrar definitivamente a revolução, atacando-a antes que se ponha em marcha à conquista do poder político” (MARIÁTEGUI, 2010, p. 148).

O jovem poeta entendia o fascismo como um movimento das classes sociais conservadoras que queriam manter o Estado capitalista. Agiam de modo ilegal visando a sua preservação contra as correntes socialistas, que buscavam destruí-las. Ele compreendia que o fascismo “não era um partido; é um exército contrarrevolucionário, mobilizado contra a revolução proletária, num instante de febre e de belicosidade, pelos diversos grupos e classes conservadoras” (MARIÁTEGUI 2010, p. 179).

Por sua vez, Gramsci frisa que o processo de reação estaria intrinsecamente ligado ao próprio desenvolvimento do capitalismo italiano, incapaz de estabelecer um regime liberal estável e uniforme. A incompetência dos liberais solidificou-se em um estado corrupto e autocrático que, essencialmente, criava as bases para o questionamento de si próprio: “Estado italiano, através do exame da guerra, revelou finalmente a sua intima essência: o Estado de Polichinelo, e o domínio do arbítrio, do capricho, da irresponsabilidade, da desordem imanente, geradora, cada vez mais, de asfixiantes desordens” (GRAMSCI, 1976, p 301). Essa essência desorganizada e anárquica traduz um modelo atrasado, onde não se tem uma burguesia nacional desenvolvida, com um projeto claro e lúcido de país, com ideias e ideais espraiados a toda a sociedade. Gramsci nota que as relações se dão entre pequenos interesses e grupos locais, consolidando um hiato entre a realidade e a vocação burguesa do Estado.

Esse processo foi desnudado pelo fim da Primeira Grande Guerra, que trouxe à tona a desorganização social, política e econômica do Estado liberal italiano. A inquietação das classes médias, preocupadas com a sua proletarização, começou a mostrar força antes mesmo da ascensão fascista, em fins de 1919, em um ataque da pequena burguesia nacionalista-monarquista contra deputados socialistas. Gramsci percebe que a pequena e média burguesia poderia ser usada pelos capitalistas como esteio para enfrentar os trabalhadores.

Ele observa que, durante a guerra, as camadas intermediárias foram colocadas no controle do Estado e que a desmobilização da guerra estava deixando-as sem o salário e o status que possuíam antes: “A guerra pôs em relevo a pequena e média burguesia. Na guerra e pela guerra militarizou-se o aparelho capitalista de governo econômico e de governo político: a fábrica tornou-se um quartel, a cidade tornou-se um quartel, a nação tornou-se um quartel. Todas as actividades de interesse geral foram nacionalizadas, burocratizadas, militarizadas. Para activar está monstruosa construção, o Estado e as associações menores capitalistas fizeram a mobilização em massa da pequena e média burguesia”. (GRAMSCI, 1976, p. 85).

Da mesma forma, Gramsci observa que o aparelho burocrático do Estado estava passando por modificações e as classes pequena e média burguesas, que exerceram o seu controle, viam-se ameaçadas pela ascensão proletária e camponesa. Em sua análise, a pequena burguesia perdera toda a sua importância no setor produtivo, especializando-se como classe política no cretinismo parlamentar. A reação frente à ascensão proletária e sua adesão ao fascismo eram uma manifestação de seus interesses atrelados aos interesses do grande capital. (GRAMSCI, 1976, p. 236).

Além disso, as classes médias prometiam realizar uma revolução como alternativa ao socialismo e ao capitalismo. No entanto, Gramsci vê que, na verdade, sua ação deletéria em relação ao Estado liberal e suas instituições, visa, no final das contas, a sua preservação. Ele também destaca que as classes dirigentes cometeram um erro histórico ao abrir mão de seu Estado e suas instituições, ao seguir a liderança da pequena burguesia (GRAMSCI, 1976, p. 237).

Gramsci compreendeu que, no pós-guerra, o capitalismo entrou em crise em nível internacional, levando a uma interrupção das forças produtivas e tornando o Estado incapaz de dominá-las. Nesse cenário, o movimento fascista e as camadas médias surgem como uma interpretação e solução violenta para a crise. Gramsci salienta: “O que é o fascismo, visto em escala internacional? É a tentativa de resolver os problemas da produção e da troca através de rajadas de metralhadora e de tiros de pistola.” (GRAMSCI, Itália e Espanha).

O fascismo atuava, portanto, na escala nacional, tentando resolver os problemas históricos da sociedade por meio da violência. Era, ao mesmo tempo, uma forma da pequena burguesia manter-se ativa no cenário político. Gramsci já havia observado, em sua crítica ao nacionalismo de Enrico Corradini, o perigo representado por um ideal nacional que se sobrepunha à realidade das classes sociais e ao interesse de todos. Pois, na verdade, esse era o interesse do grande capital. Ele lembra que a ideia de uma nação proletária que enfrentaria nações imperialistas decrépitas, se afirmaria por meio das conquistas de mercado e da guerra e com o sacrifício do sangue e bem-estar dos proletários. (GRAMSCI, 1977 p. 91).

Mariátegui, por sua vez, empenhado em compreender a lógica do fascismo, observa nas palavras dos líderes fascistas a ausência de um programa. As ideias dos líderes fascistas são um conjunto de opiniões que se compõem como algo místico, com o intento de formular um ente coletivo acima das classes, dos grupos e indivíduos: a nação. O interesse nacional estaria acima de tudo. De igual maneira, os fascistas julgavam que a política externa seria a extensão das vocações nacionais nos moldes dos impérios, pois, não à toa, tomam emprestadas as saudações romanas utilizadas por D’Annunzio, em Fiume.

O fascismo também reagia à política externa derrotista formulada pelos governos liberais. Seu objetivo era supostamente resgatar o orgulho italiano maculado e reabilitar o moral do soldado que combateu na Grande Guerra e que, então, sentia-se humilhado. A violência do fascismo era vista como uma resposta à violência totalitária dos bolcheviques. Dessa maneira, enquanto os socialistas agiam em nome de uma classe e de seus interesses, os fascistas diziam agir em nome de toda a nação. Na sua retórica, combatiam a todos que se colocavam ao lado da especulação, da agiotagem, do lucro sem trabalho e/ou do interesse particular de uma única classe. Nas ações teatrais e hábeis de Mussolini e nas forças de seus discursos e artigos, publicados no Il Popolo d’Italia, o confuso discurso fascista plasma um sentimento capaz de mobilizar setores descontentes com o liberalismo e com a ação socialista de proletários e camponeses.

Os métodos fascistas são destacados por Mariátegui como sendo a intimidação e a violência por meio da tortura contra os opositores de esquerda e dos liberais. Nesse sentido, são emblemáticos os casos do deputado socialista Giacomo Matteotti, morto pelas falanges, e dos liberais Piero Gobetti e Benedetto Croce. Igualmente, não acreditava na fé de Giovanni Giolitti, na tradição transformista da política italiana, nem que os fascistas se adaptariam ao ambiente parlamentar liberal.

Mariátegui acreditava que a indefinição dos socialistas – em ora crer no parlamento, ora boicotar a câmara legislativa como contraponto a Mussolini – fortaleceria a ditadura. Percebia que aquele era um movimento internacional do capital; não era apenas uma exceção, mas a afirmação de uma reação à Revolução russa e à ameaça da revolução socialista na Itália. A simpatia de Mariátegui pela III Internacional é clara: via na linha de ação do PCI a possibilidade real de luta contra o fascismo. Ao mesmo tempo, salientava que as indefinições do movimento socialista decorreram da adaptação do PSI aos limites do Estado burguês parlamentar. José Carlos Mariátegui deixa claro que o espírito da reação não era afirmação do novo, de uma revolução, mas a defesa incrustada da ordem burguesa e do capitalismo. O espírito do capitalismo e de seus valores era o verdadeiro componente policrômico da religião fascista, como faz lembrar, ao narrar o financiamento das classes burguesas ao movimento.

Gramsci, por outro lado, observa que o fenômeno de ascenso do movimento e a Revolução comunista é um sinal da renovação internacional da sociedade; e, por seu turno, a reação burguesa se apresenta como a restauração do Estado, com intenção de constituir novas formas de funcionamento da sociedade. Dessa forma, as classes dominantes estariam reorganizando o Estado, no intuito de torna-lo mais resistente às manifestações das classes operária e camponesa. Estado restaurado imporia novos limites aos trabalhadores e às demais classes subalternas, como meio de prevenir contra os processos de organização, tomada de consciência e mobilização do proletariado para ele. “O fascismo é a ilegalidade da violência capitalista, enquanto a restauração do Estado é a legalização dessa violência”.

Mariátegui chega à conclusão parecida: a reação a Revolução Russa seria um fenômeno internacional e mobiliza todos os esforços da burguesia e dos setores reacionários da sociedade. Para ele, o fascismo é “uma milícia civil antirrevolucionária. Já não representa somente o sentimento da vitória. Já não é exclusivamente um prolongamento do ardor bélico de guerra. Agora, significa uma ofensiva das classes burguesas contra a ascensão das classes proletárias” (MARIÁTEGUI 2010, p. 148).

Tanto Gramsci como Mariátegui observam que o programa do Partido fascista não é um corpo doutrinário, uma proposta política. Ambos compreendem que as ideias dos fascistas são melhor representadas noutros partidos conservadores e sua ação centra-se principalmente numa violência cega:

Não existe um partido fascista que mude em qualidade a quantidade, que seja um aparelho de seleção política de uma classe ou de um grupo: existe apenas um agregado mecânico indiferenciado e indiferenciável do ponto de vista das capacidades intelectuais e políticas, que viva apenas porque conquistou na guerra civil um fortíssimo espírito de corpo, grosseiramente identificado com a ideologia nacional. Fora do terreno da organização militar, o fascismo não deu a nada pode dar nada, a até neste terreno o que pode dar é muito relativo (GRAMSCI , 1979, p. 129).

Gramsci chega a fazer um inventário dos crimes dos fascistas, concluindo que tais ações permaneciam impunes pela conivência do aparato estatal, o aliciamento da burocracia e a simpatia e apoio tácito expresso pelo comando dos militares (Gramsci, 1977, p. 335). De igual maneira, Mariátegui identifica a cumplicidade do Estado e dos liberais, que capitularam frente ao fascismo e a sua violência (MARIÁTEGUI, 2010, p. 199).

Após a Marcha sobre Roma, os fascistas chegam ao poder, com Mussolini sendo empossado pelo Rei Victor Emanuele III como presidente do conselho ministerial. Para Gramsci, esse acontecimento significou a vitória dos grandes proprietários agrários sobre o campesinato e o proletariado, ficando a burguesia secundada no comando do Estado, em virtude da crise financeira e industrial. O governo caberá à pequena burguesia, que, “mesmo para a burguesia será difícil aceitar a dura e tirânica dominação dos latifundiários e a demagogia irresponsável de um aventureiro medíocre como Mussolini.” (GRAMSCI, A marcha fascista sobre Roma). Gramsci compreende que o momento será de duras lutas aos trabalhadores e ao PCI; recomenda ao partido a clandestinidade e a concentração na ação conspiratória.

Depois de um pequeno período de tentativa de governo parlamentar, a violência fascista volta à tona tendo como principal resultado o assassinato do deputado socialista Giacomo Matteotti, que havia se notabilizado por denunciar a corrupção eleitoral e econômica do governo Mussolini. A morte do parlamentar desencadeou uma imensa onda de revolta e de protesto contra os fascistas. Os parlamentares se retiraram da câmara e fundaram o bloco Aventino. Durante seis meses, o governo fascista esteve à beira de ser derrubado. Mariátegui diz que a “capitulação do liberalismo e da democracia ante o fascismo” foi plena. O jornalista peruano lembra que o fascismo foi armado e financiado pela burguesia, que a imprensa agiu em seu favor. Ademais, o Estado tolerou a violência. A Marcha sobre Roma sofreu pouca oposição e quando Mussolini estava armado e forte, a burguesia concedeu-lhe o governo (MARIÁTEGUI 2010, p. 217).

Com o assassinato de Matteotti a situação mudou, o clamor social fez com que o liberalismo fosse para oposição ao fascismo. Para Mariátegui, o ato criminoso contra Matteotti é equivalente à Marcha sobre Roma. O que mudou de um momento para outro, foi o sentimento na burguesia de que o Estado liberal era mais adequado ao desenvolvimento capitalista do que a proposta de um Estado Fascista, com uma hierarquia e chefes que se assemelhavam aos da Idade Média (MARIÁTEGUI 2010, p. 222).

Gramsci comenta que o governo Mussolini não tem autoridade moral para cuidar do caso Matteotti. Era necessária a queda do governo para que houvesse um julgamento justo; mas como derrubá-lo? Eis a questão central. Afinal, o fascismo fora incentivado e organizado pela burguesia como meio de deter a ação proletária. A burguesia buscava estabilizar o governo fascista. Gramsci mostra que o fascismo tem lógica e interesses internos próprios, que o controle das classes dominantes sobre o fascismo é contraditório. “De resto, não é mais do que a expressão e a consequência direta da tendência do fascismo em não se apresentar como simples instrumento da burguesia, mas em proceder, na série das opressões, das violências, dos delitos, segundo sua lógica interna, que acaba per não ter em conta a conservação do regime atual” (GRAMSCI, 1978, p. 139).

Mariátegui ressalta que a ausência de um programa mínimo entre os partidos opositores do bloco Aventino permitiu a retomada de iniciativa de Mussolini e dos fascistas. Pouco depois do retorno dos deputados ao parlamento, foi instaurada a ditadura fascista com a prisão do então deputado Antonio Gramsci. Mariátegui equivocou-se ao crer que a ditadura fascista seria uma ditadura parlamentar, como outras que já haviam existido na história da Itália.

Após o Congresso realizado na França, em 1926, Gramsci e o PCI passam a defender que o fascismo foi uma forma de solucionar a crise de hegemonia aberta com a Revolução Russa e o fim da Grande Guerra. Isso significa que o fascismo era um movimento capaz de desarticular a esquerda e, ao mesmo tempo, reatualizar o aparelho do Estado. (GRAMSCI, 1978 p 219.)

Preso, o então deputado Gramsci, continua suas análises em seus Cadernos do cárcere, buscando entender o fenômeno do fascismo, empregando conceitos como crise de hegemonia, crise orgânica, cesarismo, guerra de movimento/guerra de posição e revolução passiva.

*John Kennedy Ferreira é professor de sociologia na Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

Referências


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FRESU, Gianni. Antonio Gramsci, o homem filósofo. São Paulo: Boitempo, 2020.

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PARIS, Robert. As origens do fascismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976.

PAXTON, Robert O. A Anatomia do Fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

PERICÁS, Luís. (organizador e tradutor). Prefácio. In: MARIÁTEGUI, José Carlos. As origens do fascismo. São Paulo: Alameda, 2010.

SCURATI, Antonio. M. O filho do século. Rio de Janeiro: Intrínseca Ltda, 2018.

SECCO, L Antonio Gramsci e o Fascismo in https://aterraeredonda.com.br/antonio-gramsci-e-o-fascismo/

TOGLIATTI, Palmiro. Lições sobre o fascismo. São Paulo: Ciências Humanas, 1977.


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