Dois anos de desgoverno – a crise de legitimidade

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Por JUAREZ GUIMARÃES*

A defesa do impeachment de Bolsonaro deve organizar a política de resistência e construção de alternativas das esquerdas em 2021.

Após as eleições presidenciais de 2018, realizadas já em um ambiente de colapso democrático na sequência do golpe de 2016, houve um debate sobre como qualificar politicamente o novo governo, como avaliar a sua força e estabilidade e sobre qual caminho estratégico para enfrentá-lo. As divergências aí surgidas estão na base da dificuldade de unidade e de protagonismo nacional das esquerdas, que se manifestou durante estes dois últimos anos e nitidamente nas eleições municipais de 2020. Por isso, longe de ser apenas um exercício retrospectivo, um balanço de dois anos do governo Bolsonaro deve ser capaz de criar um campo de previsão, condicionado e prudencial, sobre sua dinâmica neste ano de 2021 capaz de orientar uma diretriz e um campo unitários de ação das esquerdas brasileiras.

O primeiro erro que se vê em muitos balanços é o de analisar o bolsonarismo e seu governo como um fato dissociado da coalizão neoliberal que o elegeu, que o apoiou num primeiro momento e que continua ainda protegendo o seu mandato criminoso. Isto equivale a lhe retirar o caráter de classe, de ser instrumental a um capital financeiro internacional predatório, de atribuir o bolsonarismo a uma mera perversão política que deveria ser bem compreendida em sua singularidade. Este erro organiza o juízo da mídia neoliberal sobre Bolsonaro, mas é muito frequente em analistas da esquerda.

O segundo erro é o de não compreender que o bolsonarismo é um americanismo, que formou a sua força política em linha direta com o trumpismo nos Estados Unidos, sendo de fato uma força orgânica a ele em seus valores, seu programa, sua linguagem, sua forma de fazer política, seu aparato tecnológico de comunicação, sua pragmática. Sem trumpismo não existiria o bolsonarismo tal como o conhecemos. E é evidente que a derrota eleitoral do trumpismo, o fato de ele não dirigir o Estado ainda mais poderoso do mundo, apesar de manter sua base social e sua potência eleitoral, afeta diretamente a força e a evolução do bolsonarismo.

O terceiro erro seria o de não compreender o que há de singularidade no processo de formação do bolsonarismo, sua capacidade e seus impasses na formação de sua potência de poder. Sua origem ali onde o Estado brasileiro mais estava destruído, no território do crime organizado do Rio de Janeiro, sua aliança com seitas evangélicas que fazem da religião um negócio sórdido de acumulação e fraude, sua ligação orgânica com a máquina de propaganda criminosa de Steve Bannon na campanha eleitoral e sua ancoragem em setores de uma corporação militar que professa abertamente o orgulho de ter torturado prisioneiros políticos, só pôde caminhar ao centro do poder porque contou com a cobertura e omissão das instituições máximas do sistema de justiça brasileiro centralizada em uma dinâmica de Lawfare, em uma operação de guerra contra as esquerdas.

O bolsonarismo não forma uma coalizão estável de poder e provavelmente isto está fora de sua potência de poder: seu caráter de facção o torna permanentemente refém das crises que gera em suas relações políticas. O culto à violência e ao extermínio dos adversários não é, por isso, estranho à sua identidade: o bolsonarismo, na célebre metáfora de Maquiavel, trabalha com pouco consenso e o máximo de força. Isto estreita a sua base social e mina as mediações de uma coalizão política ampla e estável. Ao contrário de Trump, Bolsonaro não tem uma máquina de um Partido Republicano por detrás. E mesmo os “pastores” evangélicos, bem se sabe, são fiéis sobretudo a seus interesses: em uma situação de forte diminuição da popularidade do Bolsonarismo, eles podem mesmo desertar de apoiá-lo, assim como fizeram com outras lideranças políticas, inclusive por um momento, Lula.

Este artigo de balanço do governo Bolsonaro trabalha com uma hipótese central: a de que seu governo aprofundará em 2021 sua condição agônica de legitimidade política. A evolução, o ritmo e o desdobramento político desta tendência central à crise de legitimidade do governo Bolsonaro dependerá, em larga medida, da resposta que as forças de esquerda fornecerem a ela.

Bolsonaro e a coalizão neoliberal

A relação entre a liderança política de Bolsonaro e a coalizão neoliberal passou até agora por seis fases. A primeira delas, que cobre o período de desestabilização do governo Dilma e grande parte do governo Temer, é de convergência no trabalho de combate frontal ao PT e encaminhamento da agenda neoliberal. Esta fase corresponde a uma acumulação inicial de forças do bolsonarismo enquanto fenômeno político.

A segunda fase, durante o primeiro turno das eleições de 2018, é marcada pela disputa sobre quem se posicionaria melhor para derrotar a ameaça de um retorno das esquerdas ao governo do país. Neste período, houve já uma relação orgânica do bolsonarismo com o trumpismo e um primeiro acolhimento por parte de setores das Forças Armadas brasileiras de seu projeto político.

Uma terceira fase, de uma segunda convergência, ocorre já no segundo turno das eleições de 2018, quando todos os partidos da direita, inclusive o PSDB, o DEM e o PMDB, engajaram-se ativamente no apoio à eleição de Bolsonaro. A abstenção de Fernando Henrique Cardoso tinha aí um mero papel simbólico: os principais candidatos do seu partido aos governos estaduais, nas disputas do segundo turno, apoiaram abertamente Bolsonaro. Sem este apoio, Bolsonaro não teria sido eleito presidente.

Abriu-se, então, uma quarta fase, de uma convergência de agendas, na qual os partidos da coalizão neoliberal formaram um apoio midiático, parlamentar e político às reformas neoliberais prioritárias, centralizadas na destruição da Previdência pública. Guardando uma autonomia diante de pautas mais retrógradas, em particular no que diz respeito aos costumes, os partidos neoliberais concentraram-se no apoio à gestão Guedes. Os últimos meses de 2019 foram ainda marcados pela campanha, por exemplo, do grupo Globo e de toda mídia neoliberal em anunciar uma retomada do crescimento econômico do Brasil, inclusive com manipulação de dados, que seria brutalmente desmentida no início de 2020.

O primeiro semestre de 2020, já no contexto da pandemia e de um recrudescimento de uma dinâmica bolsonarista de ataque ao STF e de captura da Polícia Federal e da Procuradoria Geral da República, pode ser caracterizado como uma quinta fase, de um conflito autolimitado entre a coalizão neoliberal e o governo Bolsonaro. A saída de Moro, os conflitos envolvendo a direção do Ministério da Saúde e da Educação, as tomadas de posição do STF e da Câmara Federal, impondo limites aos movimentos mais explicitamente inconstitucionais do governo Bolsonaro, são episódios expressivos desta fase. Chamamos de um conflito autolimitado porque os partidos e a mídia neoliberal, ao mesmo tempo, bloquearam politicamente, na mídia, no STF e na Câmara Federal, um movimento potencialmente expansivo de uma campanha pelo impeachment ou impugnação judicial de Bolsonaro, devido aos seus flagrantes crimes de responsabilidade.

De fato, houve em meados de 2020 uma pactuação de reposição da governabilidade de Bolsonaro, envolvendo diretamente o presidente do STF, a presidência da Câmara e do Senado, a direção dos partidos neoliberais e a mídia empresarial: este, de um lado, recuou em seus ataques direitos ao STF, em suas campanhas olavistas capitaneadas por seus filhos, recompôs uma base parlamentar de modo fisiológico no Congresso Nacional, aprofundou qualitativamente a inserção de quadros das Forças Armadas em seu centro estratégico, trocou o Ministro da Educação; de outro, os partidos neoliberais amorteceram suas críticas ao governo Bolsonaro, em busca de uma recomposição de agenda em torno de reformas neoliberais e novas privatizações.

Esta trégua, com a apropriação dos efeitos massivos e de profundo impacto social do Auxílio Emergencial, proposto pela oposição de esquerda e centro-esquerda, o governo Bolsonaro viu pelo menos uma suspensão de uma dinâmica de crescente impopularidade, muito forte e expressiva desde o início de seu governo, e até mesmo de uma recuperação na margem de popularidade.

Esta quinta fase de um conflito autolimitado, que cobre inclusive o período das eleições municipais de 2020, se expressou através de uma disputa nos primeiros turnos (em geral com resultados negativos para o bolsonarismo) e com uma recomposição de uma dinâmica eleitoral unitária entre bolsonarismo e neoliberais anti-esquerda nos segundos turnos. Em várias capitais, como Porto Alegre e São Paulo, onde a esquerda disputou o segundo turno, a votação final expressa quase que inteiramente a polarização do segundo turno das eleições de 2018, revelando a continuidade da convergência eleitoral da coalizão neoliberal e bolsonarismo.

Inicia-se, então, uma sexta fase em que prevalecerá a delimitação e a disputa da coalizão neoliberal com o bolsonarismo, acumulando forças para uma disputa em 2022, autolimitada na questão central do questionamento da legitimidade de seu mandato. Não se pode descartar uma ruptura da aliança entre a coalizão neoliberal e o bolsonarismo, mas ela não é ainda uma hipótese central e depende do agravamento de sua crise de legitimidade de governo incontrolada em uma dinâmica política aberta na qual outras forças e fatores joguem seu peso.

Esta dinâmica só pode ser melhor pensada se aprofunda-se uma avaliação da relação do bolsonarismo com o programa histórico do neoliberalismo de refundação do Estado brasileiro.

Neoliberalismo, unidade e conflito

Já em sua formação histórica, como documentam Philip Mirowski e Dieter Plehwe em The Making of the Neoliberal thought colletive (Harvard University Press, 2009), o neoliberalismo é uma convergência de uma série de tradições intelectuais e políticas críticas ao socialismo, aos fundamentos republicanos da democracia e ao chamado “liberalismo social” ou “igualitário” ou keynesiano. No mundo contemporâneo, em sua extensão e complexidade, o neoliberalismo converge em coalizões de poder através de várias linguagens políticas diferentes.

A identificação da liberdade com uma ontologia mercantil, que está no centro da identidade neoliberal, pode conviver com desde uma ditadura militar como a de Pinochet até uma democracia liberal na qual os fundamentos da soberania popular estão severamente neutralizados. Já nos anos setenta, analisando o fenômeno da adesão de massas do thatcherismo, inclusive no interior das classes trabalhadoras inglesas, Stuart Hall chamava a atenção para a fusão entre estes valores de mercado e as culturas conservadoras no plano da moral.

Esta fusão já é, de fato, verificável no pensamento original de Hayek como insiste agora Wendy Brown, corrigindo certo unilateralismo de sua interpretação anterior do neoliberalismo. A feminista e marxista Nancy Fraser identificou um neoliberalismo “progressivista”, típico do Partido Democrata norte-americano, isto é, que conjugava a centralidade dos valores do mercado com certos valores anti-patriarcais e anti-racistas. Esta compreensão histórica e conceitual básica do neoliberalismo serve para analisar a unidade e conflito entre a coalizão neoliberal no Brasil e o bolsonarismo.

Esta unidade é, em primeiro lugar, orgânica às classes dominantes, e tem como base a radicalização do programa neoliberal para o qual confluem não apenas o capital financeiro, internacional e nacional, o capital industrial e midiático, do agro-negócio e comercial. Esta unidade se expressão programaticamente na refundação neoliberal do Estado brasileiro através de um rompimento com dimensões centrais das conquistas democráticas e republicanas presentes na Constituição de 1988.

Há unidade em cinco dimensões centrais desta refundação neoliberal do Estado brasileiro: uma redução substantiva do grau de soberania do Estado brasileiro frente aos EUA, aderindo a seus interesses geopolíticos internacionais e na América Latina, abrindo o Estado brasileiro a uma dinâmica profunda de relação orgânica e subordinada ao Estado norte-americano; a privatização, por dentro ou por fora, de toda a economia do setor público, incluindo a Petrobrás, os bancos públicos e o que resta das empresas públicas; a destruição dos direitos do trabalho, formada na tradição varguista e enriquecida ao longo de décadas de lutas das classes trabalhadoras, da negociação coletiva, da Justiça do Trabalho e das dinâmicas de representação sindical; a redução a um padrão minimalista de todas as políticas que, de forma parcial e desigual, constituem os núcleos das políticas do Estado do Bem-Estar Social, como o SUS, a educação pública, a Previdência Social e as políticas de assistência social; a quebra das dimensões participativas e de controle social do Estado brasileiro, a redução drástica do sentido democrático dos pleitos eleitorais e a plena mercantilização dos meios de comunicação.

Estas cinco dimensões centrais de unidade convergem para um padrão violento de reprodução das desigualdades patriarcais e racialistas no Brasil. As mulheres e os negros têm não apenas as suas políticas históricas de reparação bloqueadas, mas sofrem brutal regressão neste programa neoliberal de refundação do Estado brasileiro.

Em todas estas cinco dimensões, com suas resultantes patriarcais e racialistas, não se observou até agora nenhuma diferença fundamental entre a coalizão neoliberal e o bolsonarismo. Pelo contrário, convergência profunda. No plano estadual, governos do PSDB, do PMDB ou do DEM praticam, de fato, estas diretrizes programáticas fundamentais.

O acordo fundamental sobre este vasto programa de destruição do que se acumulou de democrático e republicano no estado brasileiro cessa quando se disputa o que colocar no lugar: há decerto – e ignorá-lo seria um erro político importante – uma diferença de regime político entre o proposto pelo bolsonarismo e aquele proposto pela coalizão neoliberal. Ou seja, entre um regime político protofascista militarizado e extremado em suas dimensões coercitivas, e um regime constitucional neoliberal, no qual as forças democráticas e populares aparecem excluídas do pacto de dominação e submetidas a um sistema de desestruturação política e de forte coerção.

Esta unidade programática, orgânica às classes dominantes, e este conflito político central explicam a narrativa complexa das seis fases antes referidas; submetidas às circunstâncias e às indeterminações próprias da política.

Mas um balanço do governo Bolsonaro e de sua dinâmica exigem um esforço central, não aditivo ou complementar, de suas relações internacionais. Como fenômeno de um país da semi-periferia, no qual a adesão aos valores do mercado extrema a subordinação e a perda de soberania, o bolsonarismo tem agora de acertar as contas com o Estado ainda mais poderoso do mundo, que lhe foi uma fonte fundamental de apoio nos dois anos de seu mandato.

Trump, Biden e o futuro do bolsonarismo

Devemos à consciência histórica de Celso Furtado, a compreensão de que a soberania nacional depende fundamentalmente do grau de democratização real do Estado brasileiro, observado que as classes dominantes brasileiras tendiam historicamente a uma consciência liberal cosmopolita e sem um projeto de nação. Ora, esta compreensão histórica é também uma chave analítica: a desestruturação da democracia brasileira, mesmo em seus limites pós 1988, expõe o Estado brasileiro a um forte recrudescimento da perda de sua soberania, em particular frente aos EUA.

Toda análise da conjuntura brasileira desde o processo de desestabilização da democracia brasileira iniciado de fato desde as eleições presidenciais de 2014 deve incorporar – não como externalidade – a presença forte dos interesses do Estado norte-americano. De fato, Armínio Fraga, indicado para ser o Ministro da Fazenda do presumido governo Aécio Neves, é um homem mais de Wall Street do que da Avenida Paulista. Esta forte presença do Estado norte-americano e de sua rede de poder econômico financeiro já está fartamente documentada nas relações da Operação Lava- Jato com o Departamento de Estado norte-americano pela tradição democrática jurídica brasileira.

Um determinado entendimento da política trabalha esta participação dos EUA nestes acontecimentos relevantes da história brasileira a partir de teorias conspirativas ou como mera expressão de interesses econômicos corporativos. Mas se a política é arte das mediações e também das indeterminações, seria preciso entender melhor conceitualmente estas relações entre as classes dominantes brasileiras e os centros de poder político e econômico do neoliberalismo no plano mundial.

O método de Gramsci de estabelecer graus de organicidade entre direção e força política é aqui fundamental. Este método permite “internalizar” a influência do Estado norte-americano na política brasileira sem simplificar ou saltar mediações nacionais dos fenômenos e, principalmente, sem perder a complexidade e indeterminação dos acontecimentos políticos.

O PSDB, centrado em São Paulo, em seu poder financeiro, industrial e suas relações com o agronegócio, sempre manteve relações históricas com o Partido Democrata norte-americano, bem como com a sua intelectualidade e suas redes de poder. O bolsonarismo, por sua vez, como já se anotou extensivamente é orgânico ao trumpismo e suas redes de poder. Se estamos certos nesta consideração, o Partido Democrata, então no governo do Estado norte-americano quando da desestabilização do governo Dilma, e Donald Trump, então no governo do Estado norte-americano quando da ascensão do bolsonarismo, através de suas mediações e redes de poder, fizeram parte orgânica da direção do Estado brasileiro desde o governo Temer.

Se o neoliberalismo se revela programaticamente de forma mais nítida pela centralidade conferida à ocupação dos centros de poder econômico do Estado, Meirelles (com sua carreira formada no Bank of Boston), Ministro da Fazenda de Temer, e Ilan Goldfajn (ex-economista chefe do Banco Itaú), presidente do Banco Central de Temer, e Paulo Guedes, Ministro da Fazenda de Bolsonaro, (especulador financeiro e fundador do Banco Pactual, um vero “Chicago boy”) e Roberto de Oliveira Campos Neto (da linhagem de Roberto Campos e vindo do Banco Santander), presidente do Banco Central de Bolsonaro, evidenciam esta organicidade destes governos com os poderes da finança internacional e nacional. Não deixa de ser notável que, frente ao desastre econômico do governo Bolsonaro, o presidente de seu Banco Central foi escolhido em 2020 o melhor Presidente do Banco Central do ano pela revista britânica The Banker, vinculada ao Financial Times.

É a partir desta organicidade entre a coalizão neoliberal brasileira e o Partido Democrata norte-americano e entre o bolsonarismo e o trumpismo, que se deve incorporar a dimensão contingencial da política. Pois a ascensão de Temer, a partir da campanha de desestabilização liderada pelo PSDB, coincidiu com a eleição de Trump nos EUA e o governo de Bolsonaro coincide com a derrocada de Trump da direção do Estado norte-americano. Houve, então, aí, pelas contingências da política, duas disjunções.

O que nos interessa aqui é pensar como a disjunção Biden-Bolsonaro afeta o governo deste último. A hipótese central deste artigo é que esta disjunção afeta fortemente a legitimidade do governo Bolsonaro: ele deixa de ser parte orgânica e subordinada ao Estado norte-americano e perde a sua âncora geopolítica. Seu destino passa a ser puramente objeto de um cálculo político por parte da coalizão neoliberal e até mesmo por parte das Forças Armadas brasileiras, a esta altura muito subordinadas à direção do Estado norte-americano.

Se isto for verdade, a autolimitação da coalizão neoliberal em proteger o mandato inteiro de Bolsonaro, como revela o artigo de Fernando Henrique Cardoso neste início de 2021, pode ser revista diante de uma agudização da crise de legitimidade do governo Bolsonaro e de alguma hipótese de controle político, “por cima”, sobre sua substituição. Mas esta hipótese está, decerto, na indeterminação da política.

De fato, a posição da coalizão neoliberal brasileira em relação ao bolsonarismo tem sido mais ambígua do que a posição do próprio Partido Democrata em relação ao trumpismo. Lá o Partido Democrata confrontou Donald Trump com um pedido de impeachment, majoritário na Câmara Federal, e desde o início delimitou-se de suas políticas. Aqui, como vimos, o PSDB e DEM mantiveram relações de forte convergência com o bolsonarismo e ainda protegem o seu mandato do impeachment.

Bolsonarismo, facção e popularidade

Ao definir o bolsonarismo como expressão de uma facção – não faltam elementos para caracterizá-la inclusive como um facção criminosa – , estamos identificando a sua identidade de oposição uma interesse público democraticamente constituído ou a uma vontade geral majoritária livremente expressa. Mas isto não quer dizer que ele não possa conquistar, em certas situações de crise e instabilidade, uma condição de massas e, contingencialmente, majoritária.

Apesar de ser orgânico, não se pode por um sinal de identidade entre trumpismo e bolsonarismo. O primeiro é expressão de um poder imperialista, o segundo é um fenômeno de atualização da colonialidade do poder. O primeiro construiu-se por dentro do sistema político, adonando-se do Partido Republicano; o segundo mantém uma relação fluída com o sistema político partidário brasileiro; o primeiro vem das margens dos capitalistas sem lei e o segundo do crime organizado no Rio de Janeiro. De fato, a resiliência política do bolsonarismo parece mais frágil do que o do trumpismo.

Uma facção pode ganhar adesão massiva se expressar certos valores que respondem a incertezas, sentimentos e esperanças típicas de uma época de crise. Pode ser inclusive majoritária se, em determinados momentos críticos, parece expressar possíveis saídas de uma crise política aguda em relação a uma crise de valores de civilização. Pode formar um bloco de poder duradouro, como Hitler e Mussolini, se consegue cimentar interesses políticos de classe variados em uma coalizão de poder, valendo-se da utilização massiva da força e de algum grau de consentimento passivo.

Trabalha-se aqui com a noção de que o bolsonarismo tem uma vocação massiva (responde a certos valores racialistas e patriarcais, reacionários) ainda de expressão minoritária, mas ampla na longa história de continuidades políticas do Brasil, tem dificuldades fortes de ser majoritário (o segundo turno das eleições de 2018 sendo um momento excepcional de convergências) e carece de um plano para formar um bloco histórico duradouro de poder (isto estaria no plano do possível se Trump continuasse à frente do Estado norte-americano).

Em relação ao importante campo de indagações posto por André Singer – a possibilidade do governo Bolsonaro estabilizar uma base de massas a partir do impacto do Auxílio emergencial – , a resposta está muito focada nos estreitos limites colocados pela sua dura gestão neoliberal macroeconômica. Estes conflitos de gestão fiscal entre Bolsonaro e Guedes, muito presentes no ano de 2020, tendem a se reproduzir neste ano de aprofundamento da crise social.

Como vem demonstrando William Nozaki, em uma série de artigos, a cúpula militar consolidou-se como o núcleo do governo Bolsonaro, ampliando a sua ocupação em cargos estratégicos, (8450 militares da reserva e 2930 militares da ativa) e, principalmente, estabelecendo nele uma ação estratégica de construção de poder. Esta militarização central do governo Bolsonaro é outra diferença importante em relação à experiência do governo Trump e certamente complica, no terreno democrático, a solução de uma eventual crise terminal do governo Bolsonaro.

Pelo seu caráter de facção, pelos valores e interesses fortes que mobiliza, o bolsonarismo sofre certamente de uma dinâmica dialética forte entre popularidade e impopularidade. Isto é, a passagem de uma condição de popularidade para uma condição de impopularidade tende a ser rápida.

Isto foi anotado pelos analistas de pesquisa no primeiro semestre de 2019, observando que ele já constituía em poucos meses de governo um recorde de impopularidade. Esta dinâmica de impopularidade crescente sofreu certa suspensão no início do segundo semestre de 2019, com um forte apelo midiático em torno ao início da recuperação econômica do Brasil, foi retomada nos inícios de 2020 e sofreu uma suspensão e uma inversão na margem sobretudo devido ao massivo e historicamente inédito fluxo de renda do Auxílio emergencial para dezenas de milhões de brasileiros em processo de precarização e pauperização. Diante do volume e amplitude do benefício – mais de 250 bilhões a 68 milhões de brasileiros –, apropriado pelo governo, embora proposta pelas oposições, o que espanta não é que a impopularidade de Bolsonaro não tenha crescido mas que a sua popularidade tenha tão pouco se recuperado.

Diante da crise fiscal do estado brasileiro e das opções neoliberais que continuam a prevalecer no governo Bolsonaro, é possível e provável que se chegue a alguma solução compensatória do fim do Auxílio emergencial, embora em volume e amplitude qualitativamente diversos em 2021.

A tendência provável é, pois, de uma forte retomada da impopularidade do governo Bolsonaro. Não se sabe ao certo o resultado das eleições para a presidência da Câmara dos Deputados e o grau de controle do governo Bolsonaro sobre ela. Mas pode-se dizer que elas terão forte influência sobre como este provável crescimento da impopularidade se relacionará com a institucionalidade em crise da democracia brasileira.

A política do impeachment e a unidade das esquerdas

A tese do “Fora Bolsonaro” foi minoritária no 7º. Congresso do PT e não centralizou a atividade política do PSOL nos dois primeiros anos de governo Bolsonaro, estando de fato muito distante das posições do PC do B, que centralizou a defesa de uma política de alianças das esquerdas que incluísse os principais partidos neoliberais brasileiros, que se opunham frontalmente a uma política de impeachment. No primeiro semestre de 2020, o diretório nacional do PT, o PSOL, o PDT e o PSB e mesmo o PC do B pareciam se mover na direção da tese do impeachment de Bolsonaro, mas uma campanha política nesta direção não foi organizada, tendo o tema praticamente desaparecido nas disputas eleitorais municipais de 2020.

Há, desde o início, razões de ordem civilizatória (o bolsonarismo apresenta publicamente um ataque frontal a todos os direitos humanos, que formam um piso de civilização), de ordem democrática (dezenas de crimes de responsabilidade foram cometidos a partir de um exame minimamente isento da Constituição de 1988), de ordem humanitária (o negacionismo radical no tratamento da pandemia do COVID-19) para indicar que o caminho não é de uma oposição normalizada a um governo democrático do qual fortemente se discorda.

As posições majoritárias do PT, da maioria da bancada federal e do Senado, da metade da bancada do PSOL, do PC do B, do PSB, do PDT em relação às eleições das presidências da Câmara dos Deputados e do Senado, evidenciam toda a ambiguidade das esquerdas e centro-esquerdas em relação a uma política democrática absolutamente necessária de exigência do fim do mandato de Bolsonaro. O cálculo de ocupação de postos na mesa das duas casas do Congresso Nacional em detrimento do lançamento de uma candidatura unificada das esquerdas e centro-esquerdas no primeiro turno traduz bem a subordinação da necessária confrontação democrática do governo Bolsonaro, pública e de massas, a uma oposição que se orienta pelas possibilidades do terreno institucional minado e de alianças que contradizem profundamente o seu próprio programa de resistência ao neoliberalismo.

Este caminho desorganiza a própria identidade, o programa e a unidade necessária das esquerdas. Um programa alternativo ao bolsonarismo só pode se constituir se for alternativo ao da coalizão neoliberal e seu projeto de refundação neoliberal do Estado brasileiro. Se prevalecerem as dinâmicas eleitorais partidárias próprias e o cálculo centrado nas dinâmicas eleitoral e institucional, as esquerdas e centro-esquerdas novamente fatalmente se dividirão.

Sem uma campanha política unitária, ampla e de massas, que faça convergir toda a força potencial da consciência democrática brasileira, a crise de legitimidade agônica do bolsonarismo continuará a ser vivenciada morbidamente como um impasse de gestão do Estado pelas classes dominantes, mas como tragédia para os trabalhadores e o povo brasileiro, dramaticamente expostas na fome, na morte evitável da pandemia, no feminicídio e no recrudescimento da violência racista.

*Juarez Guimarães é professor de Ciência Política na UFMG. Autor, entre outros livros, de Risco e futuro da democracia brasileira (Fundação Perseu Abramo).

 

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