Notas introdutórias à crítica da ideologia

Imagem: Francesco Ungaro
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Por WÉCIO P. ARAÚJO*

O debate contemporâneo da ideologia na era digital

A gênese ideológica da ideologia: o iluminismo e a revolução francesa

Apesar de alguns estudiosos considerarem um conceito superado, falar sobre ideologia é importante porque se trata de reforçar a compreensão não somente filosófica, mas também sociológica, política, histórica e antropológica de que os seres humanos não se reduzem a um conjunto de condições físicas ou materiais, mas sobretudo são seres dotados de consciência, e que esta consciência se expressa subjetivamente no mundo por meio de ideias que se realizam objetivamente na forma de ações e reações.

Para compreender melhor a questão, mesmo que em nível introdutório, vamos caminhar um pouco ao longo do debate historicamente acumulado em torno deste conceito que veremos ser tão controverso quanto polissêmico. Por isso, desde já ressalto que não tenho a pretensão de esgotar alguma exegese definitiva disposta a corrigir todas as outras; muito pelo contrário, nosso percurso tentará trazer um pouco da pluralidade que envolve as tramas deste conceito chamado ideologia, desde seus primórdios até a atualidade.

Vale ressaltar que não somente na filosofia, mas nas ciências sociais como um todo, é consenso entre especialistas, não existir conceito mais grandioso em ambiguidades como também tão ambíguo em sua grandeza, justamente pela sua história marcadas por divergências, paradoxos, contrassensos e arbitrariedades.

De partida, precisamos considerar que, na sua origem, trata-se rigorosamente de um conceito filosófico formulado com pretensões científicas por intelectuais do início do século XIX, mas que ao longo da história, se pulverizou no senso comum e no imaginário popular do ocidente, e em face disto, normalmente é usado no âmbito do cotidiano para se referir a um ou outro ponto de vista subjetivo, seja de um indivíduo ou de determinado grupo social, seja sobre a vida ou o que haveria antes ou depois dela, ou ainda, produzindo, desde visões de mundo totalizantes até posicionamentos políticos mais específicos.

Isto levou facilmente a ideologia a assumir uma conotação pejorativa. Portanto, gostaria de sugerir pensarmos a ideologia enquanto uma contradição em processo imanente à formação do sujeito moderno e suas formas de vivenciar subjetivamente o conteúdo das relações sociais na experiência da vida em sociedade. Processo do qual, ninguém e nem este que vos fala pode escapar. Como explica o filósofo Terry Eagleton, a ideologia pode ser comparada ao mau hálito, tendo em vista que todo mundo tem em algum momento do dia, mas normalmente a gente só percebe mau hálito nos outros.

O termo ideologia surgiu sob o signo de uma contradição determinante da sociedade moderna, a contradição estabelecida entre entre razão e liberdade. Na linha do tempo, o conceito de ideologia emerge no contexto histórico do iluminismo francês. Isto já nos coloca um aspecto importante: a ideologia ao mesmo tempo que define e traduz o mundo humano em ideias, também é definida pelo seu tempo. Essa história começa em 1804, quando o filósofo francês Destutt De Tracy cunhou o termo na sua obra chamada Élémens D’Idéologie [Elementos da Ideologia] (De Tracy, 1817), com a intenção de propor uma ciência que, segundo ele, se trataria de um exame científico da natureza das ideias.

De Tracy tentou, sob o espírito newtoniano dominante à época, empreender uma teoria das ideias em oposição à metafísica. Neste sentido, Tracy foi inspirado pelo paradigma teórico fundado pelo iluminista francês Éttiene Bonnot de Condillac [1715-1780], um filósofo que em sua teoria acerca das ideias, formulou uma espécie de síntese entre, de um lado, os métodos de Francis Bacon e René Descartes, juntamente com a física de Isaac Newton e a revolução científica causada pela sua obra Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, de 1687 e, de outro, a filosofia empirista de John Locke. Tal definição apresentada por De Tracy carregava a pretensão de esclarecer cientificamente a base material do pensamento, segundo ele, “livre de ilusões”. A essa “ciência das ideias” ele denominou de “Ideologia”, concedendo-lhe um sentido unicamente positivo, de acordo com o espírito científico da sua época.

Segundo o filósofo britânico Terry Eagleton, em seu livro intitulado Ideologia (1997), a “ciência das ideias” veio para ser considerada a base da educação e da moral pautadas no ideal iluminista francês que apregoava a razão como o principal instrumento para alcançar o sonho iluminista no esteio político do idealismo revolucionário. Neste contexto, entre 1794 e 1815, a Ideologia dominou inconteste a paisagem intelectual francesa. Paul Ricoeur, no seu livro A ideologia e a utopia (2015, p. 18), explica que “Era, por assim dizer, uma filosofia semântica cuja tese principal era que a filosofia não tem a ver com as coisas, com a realidade, mas com as ideias”. Afinal, para Destutt De Tracy, “A mais preciosa das invenções humanas é a capacidade de expressar suas ideias” (1817, p. 418).

Conforme narra o sociólogo chileno Jorge Larrain, em seu livro The Concept of Ideology [O Conceito de Ideologia](Larrain, 1984), foi com Napoleão Bonaparte que o termo adquiriu o sentido negativo que perdura até hoje. O imperador francês, inicialmente teve como aliado o grupo de Destutt De Tracy, autodenominado de “ideologistas” (do francês “idéologistes” – que podemos traduzir como “cientistas das ideias”). Este grupo atuava obviamente para consolidar os propósitos políticos napoleônicos no campo da educação e da ciência, sob o projeto de construção do Instituto da França.

Porém, por conta de os intelectuais reunidos neste grupo não aceitarem os excessos do seu autoritarismo, Napoleão se revolta e acusa a sua própria elite intelectual e filosófica de serem doutrinadores sob a alcunha pejorativa de “ideólogos” (do francês “idéologues“). Àquela altura, todo intelectual que manifestasse opinião crítica ao governo napoleônico era acusado de fazer “doutrinação ideológica”. Assim, os ideólogos rapidamente tornaram-se seus inimigos, e o próprio conceito de ideologia, ironicamente ingressou no campo político e suas disputas ideológicas. De modo mais amplo, significava dizer que o liberalismo político e o republicanismo estavam em conflito aberto com o autoritarismo bonapartista.

Para além do debate francês, e já no século XX, Karl Manheim, na obra Ideologia e Utopia (1976), esclarece que o conceito de consciência foi o caminho tomado pela filosofia alemã para mais tarde fomentar uma crítica da ideologia (Ideologiekritik), mesmo que não de maneira deliberada. Este caminho permitiu superar a concepção particular de ideologia parida no debate francês ainda fortemente ligado ao empirismo inglês, rumo a uma concepção totalizante, aos níveis noológico e ontológico. Para compreender melhor esta questão, Mannheim (1976, p. 91-101) aponta que “o primeiro passo significante nesta direção consistiu no desenvolvimento de uma filosofia da consciência”, sobretudo a partir de Immanuel Kant (1724-1804).

Contudo, ele destaca que “A própria palavra ‘ideologia’ não possuía de início nenhuma significação ontológica; não incluía nenhuma decisão quanto ao valor das esferas diferentes de realidade, uma vez que originalmente denotava apenas a teoria das ideias.” (Manheim, 1976, p. 97-98). Por sua vez, é sabido que Destutt de Tracy leu Kant, e que o esquema kantiano causou muito incômodo no francês, embora alguns especialistas defendam que De Tracy não parecia ter compreendido muito bem a revolução copernicana promovida pela filosofia kantiana – para saber mais sobre essa questão, há um excelente texto publicado nos Cadernos de Filosofia Alemã da USP, de autoria do pesquisador brasileiro Pedro Paulo Pimenta, intitulado “Os antípodas franceses de Kant (2012).

Do idealismo alemão à polêmica de Karl Marx

Com o idealismo alemão, sobretudo em Kant, a crítica da realidade ganha uma formulação que dá centralidade ao sujeito que percebe, assumida em um itinerário descolado da superstição e da teologia. Assim, o esforço filosófico kantiano realiza no plano da razão, aquilo que os franceses realizaram na política com a guilhotina. Não obstante, a filosofia alemã entrou para a história com a sua “filosofia da consciência”, que se tornou um marco monumental para o desenvolvimento do pensamento ocidental erguido como uma filosofia crítica que busca pensar filosoficamente a questão da liberdade enquanto um valor universal que se justifica unicamente na e pela razão, sem mais recorrer a subterfúgios teológicos.

Neste campo, podemos identificar aspirações em comum entre franceses e alemães, embora nestes a questão se apresenta de maneira inteiramente distinta da maneira por meio da qual os “ideologistas” tentaram cravar a sua “ciência das ideias” – cabe ressaltar que não podemos reduzir a contribuição francesa a Destutt De Tracy, tendo em vista, por exemplo, os estudos de Francis Bacon (1521-1626), que com sua teoria dos ídolos é considerado um precursor da ideologia enquanto crítica da superstição.

Para resumir essa verdadeira Odisseia de maneira mais didática e direcionada para a crítica da ideologia na contemporaneidade, vejamos os três estágios enumerados por Karl Manheim em Ideologia e utopia (1976), no sentido de compreender os pilares dessa “filosofia da consciência”, que representa muito bem o peso da contribuição alemã para o debate que podemos identificar como a protoforma da crítica da ideologia, que mais tarde ficou conhecida na Alemanha como Ideologiekritik. Primeiramente, a jornada começa, como vimos, com Kant, a partir de uma crítica de bases noológica e epistemológica, tomando como fundamento a existência de princípios puros e apodíticos, depurados da experiência empírica e assentados na sua teoria do conhecimento formulada na Crítica da Razão Pura.

Em segundo lugar vem Hegel (1770-1831), que tomou como seu ponto de partida a postulação kantiana de que as determinações conceituais do sujeito pensante não podem ser conhecidas como aquelas do próprio ser. Precisamente nesta situação criada por Kant, é que Hegel atuará de forma crítica no sentido de dar continuidade à tarefa da filosofia crítica a partir de um ponto nevrálgico à formulação kantiana: a filosofia transcendental. Hegel resgatará a compreensão kantiana da “razão” como “identidade do sujeito e do objeto”, numa busca que foi de ambos em resolver a grande questão do seu tempo: a aporia entre razão e liberdade.

Tudo isto sob o intuito de cumprir a tarefa prometida pelo idealismo alemão de criar uma filosofia do sujeito de ordem ao mesmo tempo prática e crítica. Ambos acreditavam ter que resolver o estatuto da razão na sociedade moderna, com o propósito de estabelecer bases racionais para a defesa da liberdade. E para isto, apostaram em uma crítica da própria razão, sob a perspectiva do sujeito situado na esteira do Iluminismo e da modernidade. Em uma de suas brilhantes entrevistas, o filósofo brasileiro Paulo Arantes (1992) nos traz uma síntese da contribuição hegeliana, ao dizer que “Em Hegel, a consciência, ao mesmo tempo em que é uma fábrica de ideologias, é a crítica dessas ideologias, porque ela corrige a si mesma. Ela é a sua própria medida. […] Portanto a ideologia e a falsa consciência não são inteiramente falsas, há um momento de verdade que é inconsciente e obscurecido, porque há uma relação de poder e de dominação na ideologia, [mesmo no] impulso do autoengano, [e] da racionalização […]. De sorte que o conceito de Ideologia por assim dizer confia numa verdade substantiva que existe, e é expressa por ideias, que por sua vez são eminentemente práticas. Por isso a ideia que está embutida na ideologia é a que Kant tinha em mente, que é sempre ideia da razão, e necessariamente prática, pois tem a ver com sua realização ou não no mundo”.

O terceiro estágio surge com Marx e sua concepção ontológica da consciência encarnada na história, que culminou naquilo que ele denominou ainda em 1844, como o “ser social” (gesellschaftliche Wesen), no sentido da existência de uma essência humana socialmente determinada e culturalmente condicionada, questão que me muito deve à concepção hegeliana de formação social (Bildung) enquanto base para, contra qualquer essencialismo de natureza escolástica, afirmar uma ontologia social encarnada no solo real da história. Mais tarde, juntamente com Engels, consolidaram esta concepção na noção de práxis, contrapondo-se à antropologia humanista do filósofo alemão Ludwig Feuerbach (1804-1872).

A crítica de Marx e Engels afirmará contra o sensualismo feuerbachiano do homem e seu gênero como “objeto sensível”, o indivíduo enquanto “atividade sensível”, isto é, como um ser histórico e social que existe somente à medida que se autoproduz não apenas de maneira consciente, mas sobretudo como atividade consciente objetiva (práxis) por meio do trabalho e de toda sociabilidade construída historicamente a partir deste, que tem na modernidade, tem sua forma totalizante no conceito de capital. A partir de então, chegam à uma crítica social que anuncia a divisão da sociedade em classes antagônicas, na qual a classe econômica dominante se apropria do Estado, fazendo deste uma instância essencialmente ideológica e, portanto, situando a ideologia no campo da dominação social sob a perspectiva da luta de classes.

Marx e o debate marxista

Mais uma vez, o filósofo Paulo Arantes nos ajuda a compreender este processo – na mesma entrevista supramencionada (Arantes, 1992) –, ao explicar que “[…] a matriz da ideia de crítica da ideologia é o idealismo alemão, até porque ele mesmo é a transposição (não deliberada, é claro) do funcionamento real desse processo social de produção da ilusão. O primeiro a se dar conta desse novo âmbito material da Crítica foi Hegel. A fonte de Marx, a ideia de crítica da ideologia, é a ideia de reflexão tal como ela aparece na Fenomenologia do Espírito. O que faz a consciência, segundo Hegel? Ela se ilude também, ela é uma fábrica de ideologias. Mas ela se distingue pela seguinte peculiaridade: a reflexão. Essa reflexão vai reaparecer em Marx, só que de maneira a um [mesmo] tempo fantasmagórica e real […]. É o capital que se refere a si mesmo, o fetiche do fetiche. Ele funciona como se fosse uma consciência: valoriza-se a si mesmo, refere-se a si mesmo, mede as suas quantidades, etc.”

Ainda no campo marxista, sobretudo em sua fase acadêmica contemporânea, cabe ressaltar que o debate em torno da ideologia se divide inicialmente entre, de um lado, uma perspectiva gnosiológica, dentro da qual podemos citar, desde Hans Barth, autor do clássico Wahrheit und Ideologie [Verdade e Ideologia] (Barth, 1974), passando pelo Kurt Lenk, famoso pelo ensaio Ideologie – Ideologiekritik und Wissenssoziologie [Ideologia – Crítica da ideologia e sociologia do conhecimento] (Lenk, 1964), até o Paul Ricoeur de Hermenêutica e ideologias (Ricoeur, 2013); e de outro lado, a perspectiva ontológica filiada ao marxismo de inflexão lukacsiana e seus desdobramentos posteriores, que se recusa a reduzir a concepção marxiana da ideologia somente aos manuscritos d’A Ideologia Alemã (Marx; Engels, 2007), mas, ao contrário, leva em conta o quadro teórico global elaborado por Marx no seu itinerário intelectual como um todo, de acordo com a leitura do filósofo húngaro György Lukács – por motivos óbvios, não é possível aprofundar tão densa discussão nesta breve exposição, porém, a brasileira Esther Vaisman traz uma contribuição bastante esclarecedora no seu artigo, A ideologia e sua determinação ontológica (Vaisman, 2010).

Não obstante, além das obras supracitadas, podemos ainda acrescentar alguns trabalhos primorosos e muito didáticos, escritos pelos brasileiros Leandro Konder, com o título A questão da ideologia (1984), e Michel Löwy, com Ideologias e Ciência Social: elementos para uma análise marxista (2008).

A Teoria Crítica e o debate contemporâneo da ideologia na era digital

Para o fechar este epítome, gostaria de trazer a questão da ideologia no arco teórico da Teoria Social Crítica, de modo que nos permita pensar o atual estágio de desenvolvimento da sociedade capitalista na era digital deste século XXI. Nesta direção, podemos destacar, ainda no século passado, a concepção geral acerca da ideologia encontrada na análise de Theodor Adorno e Max Horkheimer acerca da Indústria Cultural, com destaque para os ensaios que compõe a Dialética do Esclarecimento (1985). Também encontramos algumas formulações importantes no crítico de cinema Bill Nichols, na obra Ideology and the image (1981) [Ideologia e imagem].

Não obstante, o estado da arte deste debate também não pode ignorar o filósofo francês Guy Debord, com a sua obra Sociedade do espetáculo (1997), assim como um expoente vivo da Escola de Frankfurt, Christoph Türcke, do qual destaco a obra intitulada Sociedade excitada (2014). Neste escopo, campo de pesquisa ao qual me dedico atualmente, encontramos a importância que adquire a questão da imagem e da tecnologia no debate da ideologia, e como isto traz elementos novos para o debate historicamente acumulado, sobretudo em tempos de Indústria 4.0 e da digitalização algorítmica da vida social.

De acordo com a pesquisa que venho desenvolvendo, trata-se de incorporar a ideologia na formulação crítica de uma ontologia do sujeito na era da imagem digital, o que pode ser formulado inicialmente em poucas palavras: em uma sociedade imagética digitalizada, as ideias e as práticas sociais decorrentes destas ideias aparecem como uma enorme coleção de imagens regidas pela digitalização algorítmica.

Essa relação entre ideologia e imagem tem seu principal ponto de inflexão ainda no século XX, em uma situação na qual a ideologia parecia ter chegado ao seu fim após a crise dos discursos políticos e correntes ideológicas que dominaram as disputas políticas até a primeira metade do século XX. Isto levou o sociólogo Daniel Bell, em 1960, a afirmar precipitadamente em seu livro, já desde o título, O Fim da Ideologia (1980). Todavia, um pouco antes de Bell, por volta do final dos anos 1950, Adorno e Horkeimer irão argumentar que a ideologia está cada vez mais esvaziada de sentido e voltada para uma linguagem operacional no mundo das imagens, mas isso de modo algum significaria o seu fim ou o seu enfraquecimento.

Muito pelo contrário, enquanto no passado a ideologia ocorria principalmente através de discursos, de narrativas e princípios argumentativos sobre como era a realidade e como deveria ser; na atualidade, com a chegada de tecnologias cada vez mais sofisticadas em reproduzir o real em sons e imagens, a ideologia passou a ter como objeto a própria experiência do real vivenciada por meio de formas imagéticas.

Segundo Adorno e Horkheimer (1985), a capacidade tecnológica dos veículos da Indústria Cultural produzirem a sua versão da realidade, transformou esta versão em “A Realidade”. Este processo, em grande medida, teria tornado supérflua a lógica argumentativa, e assim, por meio da imagem o real se torna “ideológico” e a ideologia se torna o próprio real digitalizado sob a gestão algorítmica, como se a ideologia tivesse realmente desaparecido.

Nesta direção, analiso essa problemática sob o signo de uma contradição, que pode ser resumida da seguinte maneira: a imagem digital se tornou a forma social determinante e o principal conduto de passagem por meio do qual os indivíduos enquanto sujeitos sociais e políticos, vivenciam o conteúdo da experiência social de maneira ideológica, embora aparentemente desprovida de ideologia. É nesta chave de leitura que ganha sentido dizermos que em uma época na qual predomina a digitalização algorítmica das formas de os indivíduos vivenciarem o conteúdo das relações sociais, as ideias aparecem como uma enorme coleção de imagens.

Por sua vez, sob a digitalização algorítmica quase que da totalidade do conteúdo das relações sociais em formas imagéticas deste conteúdo ser vivenciado na experiência social, o fato de as ideias aparecerem como uma enorme coleção de imagens coloca uma situação na qual a concepção clássica de ideologia baseada em princípios argumentativos que compõem um “discurso lógico”, e por assim dizer, “ideológico”, se torna ultrapassada diante da modelagem subjetiva do real por meio de uma linguagem imagética completamente imediatista e aligeirada. Neste contexto, práticas analógicas como ler e pensar criticamente se tornam atividade penosas, quando não raro, dispensáveis.

Conforme detalhei em artigo que publiquei há pouco tempo atrás (Araújo, 2021), assumo como bases ontológicas de uma crítica social desta problemática, a investigação e exposição ordenada dos caracteres fundamentais do ser que a experiência revela de modo repetido e constante, por meio das contradições entre estabelecidas entre essência e aparência, determinadas pela negatividade dialética situada nas mediações constituintes do processo de formação do sujeito enquanto substância viva do ser.

Afinal, como defende Hegel na Fenomenologia do Espírito, “a substância viva é o ser, que na verdade é o sujeito” (2008, p. 35). Portanto, esta substância não diz respeito a algum essencialismo engessado em pressupostos metafísicos descolados da realidade social, mas, ao contrário, trata-se de uma essência historicamente determinada e socialmente condicionada que se manifesta no sujeito enquanto indivíduo em sociedade em sua formação cultural. Trata-se de uma ontologia do sujeito, que em larga medida ancora-se naquilo que explica Hegel ao dizer que “[…] tudo decorre de entender e exprimir o verdadeiro não como substância, mas também, precisamente, como sujeito.” (2008, p. 34).

Assim, é preciso compreender a relação entre ideologia e tecnologia como determinante no processo de formação do sujeito na era digital. Este sujeito é modelado pelas características que constituem o seu ser na experiência da vida em sociedade, historicamente determinada e culturalmente condicionada – por isto se trata de uma ontologia encarnada. E neste ponto, a imagem digital é o elemento determinante em tempos de digitalização algorítmica.

Este processo de formação (Bildung) tem seu movimento estabelecido por meio de contradições situadas no interior deste movimento que forma (e deforma) o sujeito. Tais contradições se estabelecem entre, de um lado, o conteúdo das relações sociais sob a dominação capitalista como sociedade do espetáculo (spectacle) e da sensação (Sensation); e de outro, algumas das formas tecnológicas de os indivíduos produzirem e vivenciarem ideologicamente este conteúdo por meio da imagem digital, sob a gestão algorítmica determinada pela lógica social da mercadoria – leia-se: a lógica da forma valor (Wertform), ou ainda, a lógica de acumulação do capital.

Essa vivência não se reduz ao indivíduo isolado, mas somente ocorre por meio da experiência da vida em sociedade, em suas manifestações sociais e políticas, e por isto carrega determinações essencialmente ideológicas. Neste sentido, por meio da imagem digital, a tecnologia favorece ideologicamente a dominação da lógica social da mercadoria sobre os indivíduos, posto que faz prevalecer a pura positividade do espetáculo e da naturalização de processos que, em seus conteúdos e formas não são naturais, mas, ao contrário, são socialmente construídos. Essa naturalização ocorre justamente por meio de um processo de “harmonização” ideológica desta contradição estabelecida entre conteúdo e forma, que determina a formação de um sujeito deformado (Araújo, 2021) pela racionalidade neoliberal enquanto práticas discursivas contrárias à lógica democrática da cidadania social. Nas formas de vivenciar o conteúdo das relações sociais, este sujeito somente se reconhece pela sua autoimagem digitalizada segundo modelos de subjetividade empresarial. Processo que fortalece a dominação social do capital fictício.

O processo de formação dos indivíduos enquanto sujeitos na e para a experiência social, adquire um caráter de deformação, à medida que se realiza fortemente subjugado as formas tecnológicas de dominação social, de modo que as operações ideológicas ocorrem de maneira mais sutil, complexa e mistificada. Isto significa dizer que este processo ocorre sob um novo sentido da substantivação e da autonomização da própria ideologia consignada à imagem digital sob a gestão dos algoritmos a serviço do processo de acumulação do capital, no qual o próprio indivíduo, sua subjetividade, suas escolhas pessoais e políticas e sua experiência social como um todo passa a incorporar um processo direto de extração de mais-valor por meio da digitalização da vida dos indivíduos, que se transforma em dados rentáveis para empresas especializadas em extração e comercialização de dados.

Conforme analisa Shoshana Zuboff (Zuboff, 2021), todo este processo ocorre sob a gestão algorítmica orientada pela lógica da mercadoria no contexto histórico do neoliberalismo, que deu abrigo ao que a autora (Zuboff, 2021, p. 13) denominou recentemente por “capitalismo da vigilância”, a saber: “Uma nova ordem econômica que reivindica a experiência humana como matéria-prima gratuita para práticas comerciais dissimuladas de extração, previsão e vendas”, de modo que, por dentro do próprio ser enquanto sujeito, a dominação social se estabelece como “destituição da soberania dos indivíduos” (Zuboff, 2021, p. 14).

Resumo da ópera: na sociedade capitalista digitalizada, estamos vivenciando estágios avançados de projeção tecnológica da interação entre realidade e consciência, por meio dos quais a experiência social cada vez mais é subjugada de maneira direta e em tempo real, à lógica da mercadoria como sensação e espetáculo imagéticos enquanto novas formas da ideologia. Na era digital, em que a experiência social está condicionada à digitalização imediata operada pelo smartphone, tecnologias como o touch remodelam à flor da pele e pela ponta dos dedos a vivência prática e cotidiana daquilo que os indivíduos reconhecem como real, de modo que a formação social adquire um caráter de deformação da experiência social em formas imagéticas que são reproduzidas como uma certeza sensível e inquestionável, por meio do toque que une o indivíduo à tela como uma coisa só, tornando a imagem digital uma extensão imagética deste sujeito e do seu ser.

Estamos diante de uma forma de sociabilidade que se expressa na experiência de uma aldeia global de cérebros digitalmente conectados, não raro, de modo que deforma os indivíduos em sujeitos-tela que se tornam matéria-prima viva do capital enquanto trabalho morto. Este conjunto global forma um sistema nervoso virtual que globaliza a dominação social capitalista na e pela passividade do indivíduo online por meio de vínculos eminentemente imagéticos.

*Wécio P. Araújo é professor de filosofia na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Versão ampliada do verbete “ideologia” da Enciclopédia audiovisual de filosofia da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (ANPOF).

Referências


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