Por RUI ABREU*
O caminho seguido por Fernando Haddad e por inerência do governo Lula é o da desistência da disputa política
2024 terminou aquecido pela prisão de um general golpista de quatro estrelas e a discussão política sobre o pacote de corte de gastos. Também o mercado fez saber através de seus braços falantes (mídia corporativa) que sua tolerância de início de mandato (ampliado pela tentativa de golpe neofascista) tinha terminado.
Canais de TV, jornais e portais vocalizaram seus patrões dando continuação ao caminho golpista começado em 2016, exigindo agora a um líder identificado com a esquerda a prossecução de políticas neoliberais. Fernando Haddad alimentou a voracidade dos vampiros apresentando um pacote que castiga a população mais pobre, a base social e política do presidente Lula, o que motivou forte contestação na esquerda e não satisfez o nunca saciável mercado.
Muito menos que uma alusão à obra crítica de Lênin sobre os mencheviques, este nanocontributo de título provocador atenta-se ao momento de meio de mandato de quatro anos da governação Lula, seus acertos, equívocos e o sentido da governação.
Recordar é entender
Por falta de engenho ou porque o percurso da história não lhes confere atualidade, são raros os discursos ou citações que têm a capacidade de nos revisitar, mas há uma que tem ecoado na sociedade brasileira desde que foi proferida em 31 de Agosto de 2016. Refiro-me obviamente ao discurso pós impeachment de Dilma Roussef em que uma passagem em particular tem sido nota de rodapé da história recente do Brasil: “O golpe é contra o povo e contra a nação.”.
O golpe começado em 2016 e que continua até hoje visa transferir renda do trabalho para o capital, ancorando constitucional e legislativamente um modelo cada vez mais neoliberal. Após três mandatos e meio de governações petistas, as elites nacionais e internacionais decidiram que era hora de acelerar a exploração sobre o povo brasileiro, colocando trilhões de reais cativados a políticas sociais, empresas públicas e salários à disposição dos insatisfeitos mercados. A drenagem de recursos da economia brasileira para os bilionários atingia um novo patamar. O banquete dos vampiros tinha mais uma vez lugar.
Logo após o impeachment, o governo de Michel Temer, levando o golpismo à prática, balizou com a P.E.C. do Teto de Gastos a capacidade do Estado executar programas sociais, prover serviços e realizar investimento público. Continuou com a reforma trabalhista que desequilibrou ainda mais as relações de produção criando um mar de precariedade onde horários, salários, planos de carreira e vínculos são cilindrados, disponibilizando para o capital mais uma fatia de riqueza que cabia aos/às trabalhadores/as.
Também a reforma do ensino médio abriu mais mercado na educação e pavimentou a disputa pelo futuro educativo e social, em que a extrema direita é o porta estandarte do atraso, enquanto o capital ocupa mais espaço num setor estratégico da economia e sociedade. Iniciou a reforma da previdência que foi aprovada em novembro de 2019, já no governo de Jair Bolsonaro. Trabalhar com menos condições por mais tempo foram metas perseguidas e alcançadas pelos governos golpistas. Atrelou o preço dos combustíveis ao mercado internacional garantindo lucros astronômicos para os acionistas à conta do esforço do povo brasileiro.
Paulo Guedes dinamitou o funcionalismo público e promoveu a pobreza generalizada da população. A privatização de empresas de setores estratégicos acelerou. Petrobras, Eletrobras e outras empresas de energia engrandeceram o menu dos bilionários, também empresas de abastecimento de água, tratamento de esgotos e de outros serviços públicos foram para as mãos de privados. A santa aliança entre o agro extrativismo e a finança ganhou corpo em recursos públicos cada vez maiores, em lucros cada vez mais dilatados. De 2016 a 2021 a participação dos salários no P.I.B. caiu 13%, passando de 35% para 31% enquanto a participação dos lucros subia de 32,3% para 37,5%.
Enquanto o povo empobrecia aceleradamente, devolvendo o Brasil ao mapa da fome, chegando metade da sua população a um quadro de algum nível de insegurança alimentar, os lucros da banca e agronegócio iam às alturas, os bilionários brasileiros e outros entraram ou subiram na lista Forbes, a Petrobras foi a empresa que mais dividendos distribuiu aos seus acionistas no mundo inteiro. Os vampiros refastelaram-se!
Mas nenhuma destas medidas seria novidade, afinal o golpe promovido pelos bilionários nacionais e internacionais “…era contra o povo, contra a nação.”. Os atores e atrizes também eram sobejamente conhecidas assim como a arquitetura institucional golpista (com supremo, com tudo), a mesma que Bolsonaro viria a questionar tentando um golpe dentro do golpe. E foi num quadro de instabilidade econômica para quem trabalha e institucional para quem dirige que chegamos às eleições de 2022, desta feita sem a prisão injustificada de Lula. A esperança de um povo esmagado pareceu voltar com a liberdade de Lula disputar as eleições. Era preciso fazer o L para mudar o rumo entreguista e de empobrecimento da população que a economia tomava, era preciso fazer o L para conter o rumo fascista que a política tomava. E o povo esperançado em derrotar o golpe fez o L.
Dois para a frente, dois para trás
Eleito numa frente ampla, Lula personalizava o alento de mudança de vida do povo que os governos golpistas tinham tornado mais difícil. Destacavam-se de uma campanha meio pastosa (própria de frente ampla) propostas como combater a fome, revogar o teto de gastos, isenção de imposto de renda para quem ganha até 5 mil reais, acabar com o P.P.I. nos combustíveis, propor nova legislação trabalhista e tributária; no discurso era ainda defendida a recuperação do controlo público de empresas estratégicas e a ampliação do Bolsa Família com mais 150 reais por filho/a. A estes objetivos viriam a juntar-se duas exigências que as notícias de Janeiro de 2023 demandavam: extirpar o golpe neofascista e terminar o multissecular genocídio dos povos originários.
Sobre este último havia muitas esperanças com a criação do Ministério dos Povos Originários, promessa eleitoral cumprida formalmente pela presidência, mas que no seu desempenho tem deixado muito a desejar, repetindo-se os casos de abuso, retirada de terras e morte dos povos originários sem um envolvimento maior da ministra. Já sobre a tentativa de golpe, a escolha de Múcio Monteiro para ministro da Defesa revelou ser um passo no sentido de mais uma anistia política e judicial dos golpistas fardados do costume. Dois maus ministérios com maus resultados.
No campo dos acertos destacam-se a recuperação de vários programas sociais como o Auxílio Gás e Farmácia Popular e a ampliação de outros como no caso do Bolsa Família. Este aumento efetivo da capacidade de consumo das famílias mitigou o problema alimentar, retirando mais de dez milhões de pessoas da situação de insegurança alimentar grave, encaminhando o Brasil para fora do mapa da fome.
A condução dessas políticas só foi possível num quadro de apaziguamento fiscal em que o déficit foi desconsiderado (2,2% oficial em 2023) e a P.E.C. de transição de R$ 145 bilhões foi retirada do mesmo cálculo. Os salários reais cresceram pouco mas cresceram e o P.I.B. vai atingir perto de 3,5% em 2024. É necessário realçar que estes acertos só foram alcançados fora da lógica da austeridade fiscal. Se somarmos a P.E.C. de transição mais o déficit oficial de 2023, daria um déficit total de 3,5% aproximadamente, o que é substantivamente diferente do objetivo de déficit zero para 2024 inscrito no Arcabouço Fiscal.
Dentro das muitas insuficiências governativas provocadas pela relação de forças e pela falta de iniciativa para a alterar, o Arcabouço Fiscal revelou-se a pior política econômica que o governo desenvolveu neste mandato. Nele arquitetou-se um novo teto de gastos que de acordo com o ministro Fernando Haddad será incompatível com os compromissos sociais: os assumidos constitucionalmente com a educação e a saúde, mas também as políticas de subsídios e apoios sociais.
Para defender as metas traçadas no Arcabouço Fiscal para 2024, o Ministério da Fazenda apresentou um pacote misto em que a proposta de isenção do imposto de renda para quem ganha até 5 mil reais apareceu como a grande novidade positiva fez-se acompanhar de vários cortes na área social: B.P.C., abono salarial e a valorização do salário mínimo. Tudo em nome do déficit zero inscrito pelo ministro Fernando Haddad no Arcabouço Fiscal e da visão neoliberal que sustenta uma economia que tem o aumento da desigualdade como objetivo.
Sobre o que seria a segunda pior iniciativa legislativa do governo, só ficando atrás da que a originou (Arcabouço Fiscal), o pacote de corte de gastos sofreu imediatamente as mais pesadas críticas tanto à esquerda como à direita. A extrema direita serviu-se hipocritamente do bom trânsito junto a organizações de pessoas com necessidades especiais para defender a continuação dos critérios de acesso ao B.P.C. enquanto a esquerda alertava sobre o custo social e político de medidas que castigam a base social de apoio do governo.
Também a economia como um todo fica perigada com tais medidas, retirando do ciclo econômico na sua parte consumidora milhões de pessoas que agora estão um pouco protegidas pelos apoios e subsídios estatais. O Arcabouço Fiscal e suas ramificações começam já a destruir o que economicamente foi conseguido nos dois primeiros anos de governação e a longo prazo é instrumento fundamental para a consolidação do golpe de 2016.
A continuidade do golpe neoliberal é a defesa contra o golpe neofascista?
O pacote de corte de gastos trouxe uma discussão à esquerda que parece querer persistir por 2025 e que condicionará a conjuntura política e eleitoral até 2026. Em nome de conter o neofascismo deve o governo ceder aos bilionários tentando isolar a extrema direita? Deve o governo dar continuidade ao golpe, inscrevendo o neoliberalismo ainda mais na legislação, tentando o apoio das elites na não recondução do neofascismo ao poder?
Em bom abono da verdade, o sistema que se consolidou política e ideologicamente no Brasil nas últimas décadas é neoliberal. O neoliberalismo está ancorado cada vez mais na legislação brasileira e a conduta dos poderes legislativo e judicial na defesa dos interesses dos bilionários é insofismável, já a do executivo dá sinais contraditórios. Mesmo elegendo um governo que fosse todo de esquerda seria difícil mudar o viés econômico da governação. Mas um governo que procure melhorar as condições de vida da classe trabalhadora tem que inevitavelmente confrontar os limites do sistema, mesmo que no final só sejam aprovadas no congresso medidas liberais. Só falando verdade se pode disputar a opinião da maioria social a conquistar. Só assim pode haver alteração da relação de forças.
Infelizmente o caminho seguido por Fernando Haddad e por inerência do governo Lula é o da desistência da disputa política, tendo o ministro da fazenda mentido desbragadamente ao povo brasileiro na apresentação do pacote de corte gastos. O pacote é mau e traz cortes imediatos para o povo (de tal forma que o presidente Lula vetou parte do projeto após contestação), já as melhorias só este ano serão debatidas no congresso e caso sejam aprovadas (o que não acredito) entrarão em vigor apenas em 2026.
O powerpoint era inequívoco nos cortes a efetuar. Gráficos ilustravam quanto o salário mínimo iria perder na sua valorização, quadros afirmavam o aperto nas regras de acesso aos benefícios. Afinal, o ministro Fernando Haddad preferiu falar com a Faria Lima, foi uma apresentação feita para o mercado. No mesmo sentido, o presidente Lula fez uma comunicação nacional apresentando Gabriel Galípolo como o novo presidente do Banco Central em que garantiu que seria a presidência com mais autonomia que o Banco Central já teve.
Claramente o presidente fala para o mercado tentando apaziguar o apetite bilionário dos vampiros. A estratégia de fulanização da discussão sobre o Banco Central, colocando Campos Neto como a personificação da política de juros extorsivos tem seus dias contados com a nomeação de Gabriel Galípolo. Foi uma oportunidade perdida para discutir sobre a função do Banco Central, se defende os interesses públicos da população ou os interesses privados dos bilionários. Esperemos que a maioria indicada pelo governo para a direção do banco central mude a política de juros, porque se Galípolo continuar a mesma política não restarão argumentos ao governo.
A deriva liberal do governo sofre contestação até dentro dos partidos que o apoiam. A esquerda da esquerda partidária começa a oferecer crítica e caminho alternativo nas discussões internas do PT e PSOL e até candidaturas à liderança partidária com proposta econômica diferente. Infelizmente não se prevê força suficiente nesse movimento e a inflexão da proposta da política econômica neoliberal parece improvável. Para mais, existe uma avaliação equivocada dos resultados das eleições municipais que colocam o encosto à direita como resposta ao desaire eleitoral, solução essa ainda mais inflamada pelo estado de conclusão dos processos judiciais dos golpistas neofascistas.
Entretanto o neofascismo não dorme e vai fazendo seu trabalho de formiguinha doutrinadora com disciplina bolchevique, aquele que nos tem faltado. Igrejas e polícias, com o apoio dos políticos locais, vão edificando o neofascismo de baixo para cima, ganhando a população para visões cada vez mais violentas sobre a população pobre, trabalhadora e na sua maioria negra.
Mas as elites neoliberais vão chancelando todo esse caminho, validando figuras como Tarcísio de Freitas como candidato presidencial, corroborando a política genocida sionista de Israel e seu alimentador E.U.A. e ainda referindo Javier Milei como exemplo econômico a seguir. Quem apoia o genocídio em gaza não terá problemas de consciência ao ver um pobre sendo atirado de uma ponte por um policial. O padrão Netanyahu estabelece o nível de violência na ofensiva do capital sobre o trabalho pelo mundo inteiro. A burguesia brasileira aplaude os resultados.
Ficarão muitos aspetos da governança para analisar, em particular na política internacional que tem relação gravitacional com a nacional, mas essa ficará para uma próxima breve reflexão. Para já fica a consideração que o golpe de 2016 deu volume ao neofascismo e que a continuidade dele só levará a uma de duas situações num futuro próximo: a recolocação do neofascismo no poder reforçado pelo fracasso econômico governativo da “esquerda” ou o surgimento de um movimento dentro e/ou fora dos partidos da base do governo que tensionem a governação para a esquerda e que confronte os limites neoliberais do sistema, evitando que Lula e seu governo sejam a continuidade do golpe, o tal que é contra o povo e contra a nação.
*Rui Abreu foi autarca eleito pelo Bloco de Esquerda em Oeiras e Lisboa.
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