Como não fazer história

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Por SEAN PURDY*

Stalin, stalinismo e a historiografia soviética

É até louvável que defensores de Stalin e do stalinismo no Brasil, ao citar algumas fontes de historiadores sérios e profissionais, busquem legitimidade intelectual. É bem melhor do que a fé cega nas fontes stalinistas oficiais ou em charlatões como Ludo Martens, Grover Furr e, no seu livro sobre Stalin, Domenico Losurdo. Por exemplo, Jones Manoel e Marcelo Baumonte do PCB têm citado em vários lugares livros dos historiadores norte-americanos, Robert Thurston e J. Arch Getty. Os dois são sérios e profissionais que se baseiam em estudos rigorosos dos arquivos (tirando algumas citações por Getty de charlatões da atual ultradireita nacionalista na Rússia, algo em que neostalinistas daqui caem facilmente). Em Life and Terror in Stalin’s Russia, de Thurston (1996), e em vários livros e artigos de Getty (por exemplo, Practicing Stalinism: Bolsheviks, Boyars, and the Persistence of Tradition, 2013), ambos argumentam que o stalinismo era uma “ditadura fraca”: o terror, os Gulags e a massiva repressão não foram planejadas desde cima por Stalin e seus braços direitos, mas reações espontâneas aos conflitos intra-burocracia e às ameaças internas e externas ao poder soviético. Eles amenizam, um pouco, o terror de stalinismo, mesmo que nenhum dos autores seja defensor de Stalin ou do stalinismo, nem mesmo comunistas ou marxistas. Os argumentos deles são equivocados e não convincentes; representam uma pequena minoria da historiografia soviética, sejam entre historiadores conservadores anticomunistas, pós-modernistas ou marxistas antistalinistas.

Porém, o problema não é usar Thurston e Getty em si: é arrancá-los do contexto historiográfico, intelectual e político no qual seus estudos surgiram. Isto é: escolher a dedo uns estudos sem considerar o amplo contexto historiográfico no qual foram escritos não é boa prática histórica. O consenso na historiografia soviética depois de 30 anos da abertura dos arquivos (que diferente do que os neostalinistas dizem aqui, não têm transformado nossa visão de Stalin e do stalinismo, mas sim confirmado em grande parte argumentos anteriores) é que, nas palavras de Oleg Khlevniuk, “violência e terror do Estado se transformaram nos métodos fundacionais para resolver todos os problemas socioeconômicos e para manter estabilidade política. Esse fator determinou a escala enorme da repressão” (Top Down vs. Bottom-up: Regarding the Potential of Contemporary “Revisionism”, in Cahiers du monde russe, Vol. 56, 2015).

Três décadas de pesquisas nos arquivos abertos, mostram, sem dúvida nenhuma, na vasta maioria de historiadores, que o terror, a violência, o assassinato em massa através de meios judiciais e extrajudiciais, os Gulags e as reações criminosas à fome foram concebidos, organizados, direcionados e implementados com a aprovação pessoal e explícita de Stalin e seus colaboradores mais próximos. Assassino psicopata, Stalin, porém, trabalhava muito e se envolveu pessoalmente em toda política do terror do fim dos anos 1920 até sua morte em 1953. Pessoalmente, assinou os mandatos de execução de milhares de pessoas inocentes.

É claro que isso não é tudo sobre a historiografia soviética do terror. É importante estudar o papel da burocracia local, regional e nacional, bem como por que a população, em grande parte, aceitou, implícita ou explicitamente, essa política. Mas esses fatores só podem ser estudados no contexto geral da centralização do terror desde cima.

Portanto, citar alguns revisionistas como Thurston e Getty, sem reconhecer e avaliar seus argumentos no contexto amplo de debates historiográficos desde a abertura dos arquivos (gradualmente desde 1990), não é boa prática historiográfica: é incompleta e uma distorção do que historiadores têm interpretado sobre o assunto. Justificar (na época e hoje em dia) assassinato em massa, violência, repressão, a completa falta de democracia e valores socialistas é outra questão, mas é importante enfatizar que os argumentos dos neostalinistas não têm legitimidade na historiografia soviética.

*Sean Purdy é professor do Departamento de História da USP.

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