Quatro décadas com Lula

Andrej Jemec, vermelho escuro vermelho, 1979
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Por LUIZ MARQUES*

Comentário sobre o livro recém-lançado de Clara Ant

Clara Ant acaba de lançar Quatro décadas com Lula: o poder de andar junto (Autêntica). Trata-se de uma viagem pela história política do Brasil, onde a figura de Lula adquire uma centralidade. O depoimento aborda a trajetória de uma “judia, boliviana e divorciada”, que desde cedo optou pelo “socialismo com liberdade” sob a influência do trotskismo. A arquiteta se coloca na posição de coadjuvante do mestre de cerimônias, nos quarenta anos que desfilam pelas páginas do livro. Lê-se lugares, situações, personagens, derrotas, vitórias – existências em cruz. Para encarar o desafio memorialístico, a escritora procede qual Cecília Meireles no poema Excursão: “Estou pensando o que pensava / nesse tempo a minha vida / … itinerários antigos, / que nem Deus nunca mais leva”.

Nos séculos XVIII e XIX, o amor, o casal e a família ocupavam o plano principal. A amizade era valorizada, porém, não estava em evidência. O século XX, com guerras mundiais e Holocausto, guerras de libertação nacional, frias, quentes, híbridas e manuais de tortura, ditaduras sangrentas e desaparecimentos, mostrou que os valores da amizade são ainda mais invocados quando injunções da atmosfera política limitam a possibilidade de expressão do afeto, nos enlaces interpessoais. Clara Ant arrola adversidades enfrentadas no movimento estudantil e sindical, na luta das mulheres e na construção do Partido dos Trabalhadores (PT). A coragem e a ternura constroem seus sonhos.

A relação com o sindicalista Luiz Inácio da Silva, que adiante incorporaria o apelido Lula ao nome de batismo, iniciou sob o regime militar que eclipsara a nação nas casernas, e foi posta à prova pelos inúmeros obstáculos encontrados nas lutas e caravanas para conhecer o Brasil, que não aparece na TV. Aquele dos sem-terra, sem teto, sem água, sem comida e sem dignidade, que se acha nas periferias urbanas, nos campos, nos sertões, na beira dos rios, nas florestas – e semáforos.

O relato tece o relacionamento em uma nova dialética. Situa-se no ambiente de “desformalização dos rituais do privado” típicos da sociedade contemporânea, como observou o sociólogo alemão Norbert Elias, de um lado. De outro, remete ao enredo da formalização dos gestos que acompanham os atos de um verdadeiro estadista. A capa do livro, em questão, elaborada por Diogo Droschi sobre uma imagem do fotógrafo Ricardo Stuckert, é muito emblemática. Resume o espírito da alentada escrita, e deixa explícito o lugar de cada um sob a lente do futuro. Todos com papéis relevantes.

A ilustração da capa mostra Clara Ant com o rosto encoberto, num cochicho ao ouvido de Lula, já na Presidência. Traz ao fundo o mapa-múndi. Estão ali, em preto e branco, as dimensões privada e pública no exercício cotidiano da amizade peculiar entre combatentes unidos pela força de ideais utópicos, embora em trincheiras diferentes da práxis em favor do povo. A lealdade, a confiança, o comprometimento e a afetuosidade sobressaem. Em simultâneo, o enquadramento destaca a enorme importância de Lula – ator exponencial no teatro político nacional e internacional. A foto conversa.

 

Não há fórmulas

Do slogan de 1982, “Vote no três que o resto é burguês”, até o pacto social de 2002 que procurava unir o trabalho e o capital produtivo foram vinte anos de aprendizados, os quais tornaram Lula e o PT símbolos de uma sociedade com mais igualdade e justiça social. Quem pregava a linearidade, com a ilusão dos iluministas (ou “iluminados”), esbarrou em rupturas e comunhões que trouxeram caminhos alternativos, para além dos esquemas fossilizados sobre as transformações sociopolíticas.

“Não há fórmulas para obter sucesso político. O que se aplica a determinado momento histórico pode não se aplicar a outro. A construção de um país democrático depende da disposição e da percepção de seus atores para conduzir o país, a vida da população e instituições. Depende também da munição dos adversários”, assinala Clara Ant. Essa foi a vantagem do PT, ao não reproduzir os modelos oligárquicos de organização. “O PT é um partido de novo tipo”, conforme definiu o sociólogo franco-brasileiro Michael Löwy, logo depois da promissora e festejada fundação (1980).

Aos olhos de Clara Ant, Lula recende “astúcia” na acepção do historiador estadunidense John D. French, autor da contextual biografia do dirigente. Vide o episódio entre o filho de Dona Lindu e o “Cavaleiro da Esperança”, Luís Carlos Prestes. Em um debate no Sindicato dos Químicos/SP, em que ambos participavam, o lendário comunista demorou-se na descrição sobre como organizar um partido político. Finda a explanação, Lula perguntou-lhe: “Se o senhor sabe tão bem como deve ser um ‘partido dos trabalhadores’, por que não faz um?” A prática do destemido metalúrgico cobrava as abstrações teóricas mecanicistas, sem correspondência orgânica com as classes laboriosas.

Outro episódio ocorreu quando Tarso Genro foi empossado ministro da Educação e pediu para apresentar a sua equipe. Ao entrarem no gabinete presidencial, Lula observou com atenção cada assessor, para então provocar: “Em uma categoria de trabalhadores com predominância de mulheres, você, Tarso, só tem assessores homens?”. De novo, a sensibilidade lulista se impunha para uma concatenação, antes em termos político-partidários, agora em termos de gênero.

Ainda. Numa das primeiras inaugurações do programa Minha Casa, Minha Vida, Lula demonstrou irritação ao verificar que os apartamentos não tinham uma varanda: “E se o casal brigar? Tem que ter um lugarzinho para se isolar. Ou mesmo se precisar soltar um pum”. Em todos os momentos, o cotidiano procurava uma intersecção com as conquistas em curso, sem presunção. Clara Ant atribui isso ao que os aborígenes australianos designam dadirri, um “escutar profundo” sobre as carências dos semelhantes. Os políticos tradicionais, demagógicos, não costumam cultivar essa virtude.

Na abertura do século XXI, com o PT & aliados sob comando dialógico de Lula no Executivo, Clara Ant se detém nas ações governamentais desenvolvidas em meio aos ataques da mídia, a serviço das finanças. Era difícil para uma nação com mais de 350 anos de escravidão, nas costas, aceitar um operário no Palácio do Planalto que não fosse para pintar as paredes e fazer consertos. “Cada ação do governo foi direta ou indiretamente marcada pela experiência e cicatrizes que Lula acumulou em seus caminhos”. Apesar de passagens assim soarem como “culto à personalidade”, a leitura no conjunto enfatiza os coletivos, e “o poder de andar junto” como promotor de mudanças.

Sem sectarismo e sem nenhuma bazófia de partido, são reconhecidas as contribuições do governo de Fernando Henrique Cardoso. “Poucas, dispersas em alguns Ministérios e de pequeno alcance, mas não desprezíveis. O Bolsa Escola, o Vale Gás e o início do financiamento da agricultura familiar foram algumas das mais importantes, mas que eram insuficientes para constituir uma rede ampla e consistente de proteção social, de antemão limitada pelo ajuste fiscal imposto pelo liberalismo”.

Merece menção especial as expectativas despertadas pela descoberta do pré-sal, que poderia gerar recursos para a saúde, a educação, a tecnologia, a qualificação da mão de obra e a industrialização do país. “A construção de refinarias permitiria baratear os combustíveis, e a preservação de uma parcela de conteúdo nacional possibilitaria a multiplicação de empresas e empregos no Brasil”. Isso dá uma pálida ideia do mal lesa-pátria após a traição do vice decorativo, o impeachment de uma presidenta honesta e o fatiamento da Petrobrás e do próprio pré-sal, aprofundados pelo genocida.

 

Ecce homo

Quanto mais Clara Ant avança nas façanhas coordenadas por Lula, mais ela se recolhe à coxia. Intencionalmente desloca os holofotes do palco para o presidente. Em ocasiões, o tom é de balanço oficial, por exemplo, ao listar as Conferências Nacionais incentivadas pela participação social, responsáveis por expor diretrizes para as políticas públicas democráticas e inclusivas. A leitura que flui como um romance, rico de informações.

Depois de deixar a presidência, com 87% de aprovação popular, Lula recebeu milhares de convites para atividades públicas e centenas de títulos Honoris causa de renomadas universidades brasileiras e estrangeiras. Recusara receber as homenagens durante os mandatos. Adversários propagaram um preconceito. Por não ter o título de curso superior, dizia-se que seria incapaz de governar. Provou ser capaz, primeiro, para depois autorizar os prêmios em uma cascata impressionante – Ecce homo.

No final, surgem linhas sobre o encarceramento injusto e a transcrição de um bilhete a Lula: “Querido amigo. Por ironia hoje estamos geograficamente distantes. Mas quero que você saiba que hoje também é o dia em que me sinto mais perto de você do que em todas as décadas que a gente se conhece. Sinta-se fortemente abraçado. Clara Ant”. Na dor, a amizade se agigantou nas almas. Era 7 de abril de 2018. Data de uma ignomínia: a prisão do maior presidente da história da República.

O discurso proferido no Sindicato dos Metalúrgicos, em São Bernardo, é uma peça de oratória que entra para as atas dos grandes estadistas, como Péricles (Atenas), Churchill (Reino Unido), Gandhi (Índia), Evita (Argentina), Havel (Tchecoslováquia), Mandela (África do Sul). Uma multidão em silêncio parou para ouvi-lo entre lágrimas, suspiros, abraços, inconformidades e resiliências.

“Não adianta tentar acabar com as minhas ideias, elas já estão pairando no ar e não tem como prendê-las. Não adianta tentar parar os meus sonhos porque, quando eu parar de sonhar, eu sonharei pela cabeça de vocês. Não adianta achar que tudo vai parar no dia que o Lula tiver um infarte. É bobagem porque o meu coração baterá pelo coração de vocês, e são milhões de corações. Não adianta eles acharem que vão fazer com que eu pare. Eu não pararei porque não sou mais um ser humano. Eu sou uma ideia. Uma ideia misturada com a ideia de vocês”. A vigília por 580 dias, defronte ao prédio da Polícia Federal, em Curitiba, foi uma epopeia sem paralelo. Foi a lembrança insistente, incômoda, de que a justiça morrera ao condenar um inocente. A energia chegava à cela.

“Querida Clara. A saudade é imensa. Espero logo estar de volta. Vou ser candidato, e o Brasil vai voltar a ser feliz. Beijos, Lula”. Cumpriu a promessa em 30 de outubro, do corrente, ao derrotar o representante do atraso neofascista e neoliberal, que fincara raízes na Terra brasilis. “O mundo precisa do presidente Lula da Silva”, comentou com alívio o premiê da Espanha, Pedro Sánchez, exprimindo o contentamento de democratas nos hemisférios Norte e Sul. Vencemos as trevas.

O livro de Clara Ant reatualiza a noção sartreana de engagement, que não se confunde com o voluntarismo das atitudes subjetivas em face das estruturas da realidade, nas condições concretas da luta de classes. Os processos de realização supõem sujeitos de ação organizados na sociedade, para promover a síntese entre a esfera do social e a esfera do político.

Para mudar o destino do povo brasileiro, que elegeu Lula para um terceiro quadriênio na Presidência, a autora revisita o projeto de transformação – a muitas mãos e mentes – com a força da empatia, da experiência e de um programa para romper os grilhões da opressão e da exploração, da financeirização e da desindustrialização, com controle democrático do excedente social. Rumo ao socialismo com liberdade. Juntos.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

Referência


Clara Ant. Quatro décadas com Lula: o poder de andar junto. Belo /horizonte, Autêntica, 2022, 400 págs.

 

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