Edgard Carone

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Por LINCOLN SECCO*

A trajetória de um historiador marxista na USP

“Edgard Carone” – Desenho de Vera Lucia Amaral Ferlini

Depois de décadas de trabalho dedicado à história republicana do Brasil, Edgard Carone foi considerado um historiador démodé, determinista e que operava um marxismo mecânico que substituiu a subjetividade da classe operária pela ação do Partido Comunista. O fato dele ter coletado documentos sobre o cotidiano, a circulação de livros e as ideologias; de ter estudado o anarquismo, o trabalhismo e o queremismo pouco importava para retirá-lo do ostracismo[i]. No século XXI a crise de 2008, a reaparição do fascismo e a pós verdade levaram à retomada da tradição marxista.

Os anos de formação de Edgard Carone (1923-2003) foram marcados pelo seu ingresso no curso de História e Geografia da FFCL da USP, mas também pela adesão do seu irmão, Maxim Tolstoi, ao marxismo. Maxim foi organizador da Juventude do Partido Comunista do Brasil (PCB) nos anos 1930 e acabou preso na onda repressiva do Estado Novo. Edgard não o imitou e se definiu sempre como um companheiro de viagem dos comunistas. Enquanto Maxim tinha contatos no círculo de Caio Prado Júnior e dos membros do PCB paulista, Edgard ligou-se a Antonio Candido, Paulo Emílio Sales Gomes, Azis Simão, Pasquale Petrone e outros intelectuais que o influenciaram. Foi através desses vínculos que ele se tornou primeiramente um socialista democrático.

Carone notabilizou-se já na juventude pela coleção de obras raras sobre a história do Brasil e o movimento operário. Uma parte expressiva da bibliografia que aparece em seus livros provinha dessa biblioteca pessoal. Minhas primeiras lembranças dele remontam aos sebos em que o via carregado de sacolas de livros. Depois, pude trabalhar em sua biblioteca ao lado de sua aluna Marisa Deaecto.

Um resultado de sua bibliofilia é O Marxismo no Brasil – das origens a 1964 que foi publicado em 1986. Como ele próprio declarou em nota introdutória à edição, “a maior parte dos livros recenseados… pertence ao autor”. É uma obra que hoje merece ser “completada”, pois Carone não dispunha da informática para realizar sua pesquisa[ii]. Mas outros bibliófilos marxistas como Pedro Ribas[iii] ou Maximilian Rubel,[iv] não estiveram isentos de lacunas nesta tarefa difícil que é a do deslocamento do eixo habitual da análise da produção para a difusão dos livros. O mesmo se pode afirmar de trabalhos semelhantes sobre Trotski[v] e, especialmente, sobre Gramsci.[vi]

A avaliação que Edgard Carone fez da difusão do marxismo foi pioneira. Muito antes que frutificasse entre nós toda uma gama de investigações em torno da História do livro, ele estudou os processos e os limites culturais da circulação dos livros socialistas. Com exceção de alguns exemplos isolados, como Astrojildo Pereira e Edgard Rodrigues (para a cultura anarquista), ninguém se debruçou com vagar sobre a literatura operária. Foi a partir de Carone e daqueles autores que eu mesmo escrevi A Batalha dos Livros, um esboço de história da esquerda brasileira a partir da circulação dos impressos. Um ex aluno de Carone, Dainis Karepovs, importante bibliófilo e historiador, empreendeu a tarefa de preencher algumas lacunas de Carone, além de estudar as editoras.

Carone também nos legou um pequeno artigo seminal sobre o Manifesto Comunista. No sesquicentenário de publicação[vii] houve ao menos três introduções de grande erudição histórica.[viii] Ao contrário daquela introdução clássica feita por Harold Laski, no centenário da obra, em 1948, estas tangenciaram o problema da difusão e da recepção, mas sem um levantamento próprio.

No Brasil, o prefácio que Edgard Carone preparou para o Manifesto Comunista difere daqueles estudos comemorativos[ix] e se inspira em Bert Andreas, cuja magnífica obra é uma raridade bibliográfica[x]. Mais tarde, alguns textos sobre a trajetória editorial do marxismo comentaram exatamente as mesmas edições que Carone consultou de visu (pois as tinha), sem no entanto sequer mencioná-lo. O desconhecimento revelava o silenciamento sobre a obra de Carone.

Ele também tratou da literatura de direita, como “A Coleção Azul”, e ainda escreveu os artigos “Literatura e Público”[xi] e “Notícias sobre ‘Brasilianas’, artigos acerca de formas de organização editorial e ideológica que surgem na Revolução de 1930.

Ao lado de sua bibliofilia marxista, pode-se dizer que entre dois temas oscilou a produção de Edgard Carone: a revolução brasileira e a História econômica.

 

História da República

A obra de Carone é essencialmente narrativa. Ele primeiro montava uma bibliografia, coletava os documentos, narrava a evolução política e analisava as classes sociais, sua posição econômica e as ideologias. Na análise econômica Carone dá atenção inicialmente aos produtos agrários, tônica de nossa vida material: Café, Açúcar, Borracha etc e depois Indústria, Finanças e Imperialismo. A indústria ganhará maior relevo depois de 1930.

O estilo era seco, direto, sem rodeios até surpreender o leitor com uma frase dura que sintetizava a condição trágica de nossa história. Seu método foi apreendido em obras anteriores ao marxismo uspiano e na convivência com amigos socialistas e comunistas. O método só se desvenda dentro da própria narrativa. Carone era avesso a introduções teóricas.

De acordo com a pesquisadora Fabiana Marchetti que escreveu uma dissertação na USP sobre Carone: “Quando analisamos o livro Revoluções do Brasil Contemporâneo, concluímos que o autor trabalhava com a ideia de revolução em duas dimensões:  revolução, no singular e as revoluções no plural. Em cada uma delas se manifestava uma concepção, sendo que “a revolução” tratava de fato de um processo mais profundo e complexo que englobava todas as outras convulsões sociais e processos políticos considerados como revolucionários”[xii].

Segundo Marchetti, no livro A República Velha II –Evolução Política o termo “revolução” aparece 143 vezes e “exército” 113 (são as maiores ocorrências no vocabulário que ela selecionou). Não por acaso, dois termos associados ao momento da escrita da obra: uma ditadura instaurada pelo Exército em 1964 mediante o que sua cúpula militar denominou ser uma revolução.

Carone buscava estudar como aspectos econômicos, geográficos, culturais e sociais encontravam sua síntese política numa cadeia de eventos. Sua periodização obedeceu ao critério dos conflitos sociais: de 1889 a 1894, governos militares; de Prudente de Moares a Afonso Pena (1894-1909) é o fastígio do regime, em que o predomínio de São Paulo e Minas Gerais é absoluto. Isso não quer dizer que não haja conflitos, mas eles são latentes e intra regionais. Os “abalos intermitentes” constituem nova fase com Hermes da Fonseca e Wenceslau Braz (1910-1918): há um equilíbrio catastrófico, momentâneo de forças oposicionistas e situacionistas, civis e militares. Rebeliões sociais e de sargentos e marinheiros se fazem acompanhar também da intervenção do exército a favor de algumas oligarquias oposicionistas.

Por fim, o “período das contestações” vai de Epitácio Pessoa (1919) à Revolução de 1930. Agora, o fracionamento das oligarquias (reação republicana e, ao final, Aliança Liberal), em sentido inter estadual e não apenas intra, vai se combinar ao novo fenômeno tenentista. Esse período havia sido denominado por ele em Revoluções do Brasil Contemporâneo como “Revolução Ascendente”[xiii].

 

Historiador das Lutas de Classes

            A posição objetiva e subjetiva das classes sociais foi perscrutada em seus livros e se tornou fundamental para sua interpretação da Revolução de 1930. A documentação selecionada por ele permitia indagar o ideário burguês e sua auto representação social; o cotidiano dos diversos grupos sociais (condições de moradia, profissão, alimentação etc); a visão que a burguesia tinha da população brasileira; os limites das propostas liberais; o temor de que o espírito intermitente de revolta se consolidasse de forma revolucionária[xiv]etc.

O mesmo ele fez em relação à classe média que se restringia a organizações efêmeras como as ligas de inquilinos e consumidores (1922) ou contra a carestia e à defesa do voto secreto e da honestidade. É muito difícil caracterizar a ação da classe média porque ela não assume formas organizativas permanentes. Limita-se a manter um protesto por problema imediato. Carone mostrou na documentação o imediatismo, o caráter não mediado da reflexão daquela classe e sua propensão a explicações simplistas dos problemas sociais.

Para ele “a pequena burguesia imita os movimentos de outras classes”[xv]. As classes médias sequer podem impor uma visão de mundo própria por largo período, carentes que são de programa estratégico. Sua mundividência, registrada na literatura dos anos 1920-1930, é contra o improviso, a indisciplina e o Estado liberal; exige a direção do povo inculto por intelectuais; defende a ordem, o anticomunismo, o civilismo[xvi], voto secreto e retorno ao ideal republicano e constitucional das origens. Sua filosofia é primária. Em São Paulo ela tenta constituir organismos perenes como o Partido Nacionalista de São Paulo, ligar-se a movimentos nacionais como a Liga Nacionalista (1917) e o Partido da Mocidade (1925), mas eles fenecem.

A inflação, tarifas protecionistas, o imposto de consumo, o alto custo da industria nacional (vista como artificial) e o câmbio desvalorizado conduziam as camadas médias a se juntarem ao proletariado e à população marginalizada em protestos urbanos. Além da revolta mais conhecida contra a vacinação obrigatória no Rio de Janeiro em 1904, houve uma série de protestos urbanos civis e militares em todo o país. Em São Paulo e Santos, por exemplo, contra o aumento de preços do bonde, de trens urbanos, do preço da “carne verde” (fresca) etc. Os protestos usavam depredações, queima de bondes e trens, comícios e grupos formados espontaneamente nos diversos bairros[xvii]. Mas a tática sem um programa esgotava-se em si mesma.

O exército é outro grupo analisado por Carone e indispensável para sua explicação de 1930. A  instituição tornou-se paulatinamente a expressão política das camadas médias urbanas. No entanto, Carone não perdeu de vista sua dimensão organizacional. Para ele, havia uma dialética entre hierarquia e política que se resolve até 1916 pelo comando de alguns membros da alta oficialidade que imprimem à instituição uma orientação. Ou seja, o exército não é “político” (no sentido partidário) em si, mas age assim pelos seus líderes.

Floriano Peixoto e seus seguidores conferiam maior unidade de ação ao exército[xviii]. Já Deodoro e seu sobrinho Hermes da Fonseca agiam mais por interesses particulares, sem um programa que interessasse o exército como um todo. Em 1915-1916 com a ação dos sargentos pelo parlamentarismo, contra a corrupção e aumento do soldo, o exército político apresenta sua primeira fissura entre a alta oficialidade e o restante da tropa. Isso se tornou constante com o tenentismo em 1922.

Ao contrário da tática violenta, a ideologia que moveu os tenentes foi centrista e moderada. Depois de 1930 eles se adaptaram às realidades locais de muitas formas, mais ou menos ligadas às oligarquias.  Como representantes das classes médias, eles não conseguiram criar organizações permanentes e a revolução de 1932, para Carone, assinalou seu declínio diante do exército hierárquico, pois a direção das operações bélicas passou às mãos da alta oficialidade e os tenentes não conseguiram mais galvanizar os meios militares. Por fim, as eleições de 1933 assinalaram o retorno vitorioso das oligarquias ao poder. O exemplo analisado por Carone foi o clube 3 de outubro (1930-1935) que se manteve pela ligação com a máquina do governo provisório.

O tenentismo nasceu em 1922 como apêndice da Reação Republicana, nome dado à campanha dissidente de Nilo Peçanha. Mais tarde, o tenentismo chegou ao poder ao lado de outra dissidência oligárquica: a Aliança Liberal. E deixou de existir em 1935. Ao seu lado, o exército político tradicional não deixou de atuar. A junta que tentou apossar-se do poder antes da chegada de Getúlio Vargas ao Rio de Janeiro em 1930 foi um exemplo.

O tenentismo foi a forma de existência dual do exército político entre 1922 e 1935. Posteriormente, a iniciativa voltou a ser exclusivamente da alta oficialidade. Para Carone, Goes Monteiro foi exemplar das vicissitudes do tenentismo. Membro do exército político tradicional, traiu a hierarquia e tornou-se aliado dos  tenentes em 1930-1933. Progressivamente afastou-se deles em nome da hierarquia, tramou para se tornar presidente, articulou um golpe para si mesmo, até que em 1937 apoiou outro golpe que garantiu a continuidade de Vargas como ditador.

O Exército, dividido em tendências, tende a se unificar depois de 1935 a pretexto do perigo comunista anunciado oficialmente no preâmbulo da Constituição de 1937. Ele se torna o garante dos grupos agrários no poder e, agora, também de certa representação de interesses industriais (a aproximação do empresário Roberto Simonsen com o governo é característica disso). Muitos militares ocupam postos administrativos, mas pode-se repetir uma afirmação irônica de Edgar Carone: “apesar das diferenças, a similitude com o passado é grande. É que a história não se repete exatamente como no passado”[xix]. A ênfase irônica está no advérbio.

 

O Estado Compósito

As classes dominantes foram estudadas por Carone em função do peso econômico de suas frações e ideologia. Os industriais jamais se apresentaram com ideologia própria. Morvan Figueiredo da Fiesp tem a mesma concepção regionalista, liberal e federalista que as classes agrárias. Sua ação era corporativa, como no momento em que ataca os direitos das mulheres a salário igual ao dos homens em 1939. Para Carone:

“Até 1930, o poder político está nas mãos das classes agrárias, seu domínio sendo total e ascendente, passando dos órgãos municipais aos do Estado, deste ao plano federal. Mesmo que haja divisões de grupos agrários, existe um partido único em cada Estado, e a oposição é expulsa dos partidos republicanos (…). A burguesia não tem papel político e vive subordinada ao sistema, enquanto as outras classes sociais são marginalizadas do processo político”.

Apenas na fase final da República Velha surgiram alternativas, mas tardias, como o Partido Democrático de São Paulo e o Partido Liberal do Rio Grande do Sul. O que a revolução de 1930 alterou?

“Após 1930 vai haver modificação do domínio quase linear agrário. Estas classes continuam preponderantes, mas agora se dividem e subdividem, o que as enfraquece; proletariado e  classes médias disputam o poder e se organizam em partidos, mas eles também se enfraquecem politicamente devido a suas divisões profundas. Por sua vez a burguesia continua subordinada às oligarquias rurais…”[xx].

Para o autor, em 1930 o sistema político de domínio oligárquico total cede lugar a “governos compósitos”. O sistema anterior estava baseado no domínio local e estadual dos fazendeiros; e nacionalmente no predomínio dos grandes Estados (São Paulo e Minas Gerais). O novo sistema é mais complexo: as classes médias e operários passaram a ter mais liberdade de ação, apesar de sua derrota; houve a ascensão do Rio Grande do Sul; as classes agrárias se dividiram; o exército tradicional tornou-se mais coeso e interventor e surgem os  integralistas. Trata-se de um jogo de forças diferente.

Por fim, os de cima não buscam o consenso. Carone não nutria ilusões nas camadas dominantes, pois “a falta de tradição de classe e a incapacidade criadora e pragmática das classes dirigentes tornam prescindível a necessidade de criar valores e basear sua ação sobre eles, pois as oligarquias mandam e são obedecidas”[xxi].

Vimos que Carone entendeu 1930 como um momento (enquanto uma categoria dialética) em que forças tradicionais se rearranjaram, incorporaram ou dominaram novos grupos e, por fim, criaram uma situação de equilíbrio instável de tensões e acomodações. Carone manteve a ideia de simbiose ideológica entre classe média e tenentismo, mas também captou a natureza organizacional e corporativa das tensões militares. Dir-se-ia que ele aprofundou a leitura marxista de Werneck Sodré, sem retroceder às teses liberais que posteriormente recusaram os vínculos de classe dos militares.

No plano ideológico, o federalismo, o coronelismo, o liberalismo e o positivismo fazem as vezes de ornamento de formas pragmáticas em que os valores são vagos e apenas encobrem divergências secundárias em torno da disputa pelo poder. Isso explica a grande unidade burguesa sob o anticomunismo e, em outros momentos, a divisão na disputa pelo governo.

Carone fez essas análises sem recorrer a uma conceituação prévia (populismo, estado de compromisso etc), preferindo encontrar as contradições sociais nos acontecimentos. Como historiador, ele tornou as conjunturas inteligíveis pela narrativa dos fatos. Enquanto marxista, ele observou as rupturas possíveis e os interesses das classes. Assim, o Estado pós 1930 trazia elementos de uma evolução anterior, mas foi nas disputas concretas das personagens históricas que aquele processo tomou um sentido revolucionário que definiu um antes e um depois.

 

A Crítica Oculta

A leitura de Carone era feita na USP simultaneamente a outra muito mais influente. Na mesma universidade Boris Fausto fez um estudo de 1930 situado ideologicamente no interior do liberalismo paulista, contra o comunismo e o “populismo” e rejeitando a identidade de classe média do tenentismo.

A obra de Boris Fausto teve inspiração política segundo o próprio autor: “minha insatisfação com a ideologia do PCB”. Seu alvo explícito era Nelson Werneck Sodré. Ele quis escrever uma monografia detalhada, mas a “opção viável foi escrever um pequeno texto interpretativo, tratando de destruir (…) a interpretação do episódio de 1930 como a chegada de uma nova classe ao poder”[xxii].

Carone tinha uma concepção diferente de alguns historiadores comunistas atacados por Fausto, embora não oposta. Por suas simpatias iniciais pela Esquerda Democrática, Carone também era independente e não se filiou ao PCB. Apesar dessa diversidade de vínculos intelectuais ele adotou um marxismo típico de  sua geração e não criticava o partido, o que lhe custou caro academicamente.

Cotejado com alguns importantes historiadores renovadores que surgiram nos anos 1970, Carone sobressai pelo peso da pesquisa empírica e abordagem da diversidade regional da história republicana. Novos historiadores escreveram livros com pouca pesquisa documental, já que seu norte investigativo era a metodologia e não os acontecimentos, enquanto Carone buscava a síntese. Em geral leram o processo a partir de São Paulo e do Distrito Federal.

Fausto concluiu que, apesar de fricções, houve complementaridade entre burguesia industrial e classes agrárias em 1930. Quanto à ideia de revolução, ele considerou que ela não se encaixava num modelo definido por ele como a alteração nas relações de produção (na instância econômica) e substituição de uma classe por outra (na instância política). Isso não aconteceu no Brasil. O colapso da hegemonia da “burguesia do café” não conduziu outra classe ao poder. Não  houve ascensão política da burguesia industrial e nem das classes médias e sim um “vazio de poder” preenchido por um “Estado de compromisso”[xxiii].

Outra corrente interpretativa, essa de matriz libertária, criticou o PCB, mas não propriamente a historiografia e sim o discurso dos comunistas de 1928 a 1930. Posteriormente projetou no PT o ser social de sua crítica. Para ela, a oligarquia não tem existência objetiva: era um fantasma para criar falsas divergências de interesse no interior das classes dominantes. O Partido Democrático só teria criado um espaço de legitimação para uma ideia de revolução. Logo, 1930 não é encarado como um fato, mas base de um discurso elaborado sob o prisma do vencedor. Para de Decca e Vesentini o elemento empírico “1930” tornou-se um lugar vazio, interditado, não discutido. Construí-lo como uma revolução, um marco divisório, foi uma operação ideológica dos vencedores. Mas nada justificaria a escolha de um marco que interrompe e anula o processo revolucionário em sua integridade[xxiv], no qual havia outras ideias de revolução em disputa.

Criava-se na virada da década de 1970 um consenso político sobre o Estado Novo como regime totalitário gerado pela Revolução de 1930; a CLT como legislação fascista; o trabalhismo e o comunismo como fenômenos da era populista;  por fim, o sindicalismo existente até então como pelego. O historiador Ítalo Tronca resumiu aquelas posições.

Para Tronca “revolução de 30” foi a “construção mais bem elaborada do pensamento autoritário no Brasil”. Havia a partir de 1928 várias concepções de revolução em jogo e ele apresenta nítida preferência pelos anarquistas. O PCB foi apresentado como o “vencedor entre vencidos”, manipulador e aliado ao governo para impedir que a contradição entre o capital e o trabalho emergisse na arena política. O autor acusou o partido de ser centralizador, burocrático e lutar pelo controle de sindicatos, “em outras palavras, o fundamental é que, naquele período, a classe estava sendo manipulada também por aqueles que se diziam seus únicos representantes”[xxv].

Ele reconheceu que o PCB criou um fato ao introduzir o proletariado no jogo político. Para os grupos dominantes foi conveniente reconhecer somente um partido que restringia a classe trabalhadora à luta eleitoral, enquanto afastava os anarquistas que se recusavam a aceitar o embate no campo escolhido pela burguesia. Ao final do processo houve uma “dupla supressão das vozes dos dominados”. Por um lado, os vencedores de 1930 suprimiram a atuação do bloco operário camponês, animado pelo PCB; por outro lado, o PCB auxiliou a burguesia a ocultar a memória dos anarquistas e a reforçar a estrutura de dominação.

Salvo por uma coletânea de Hall e Pinheiro ou como fonte, Carone não foi considerado um interlocutor válido naquele debate. As condições mudaram. O que era uma nova historiografia já tem quase meio século; o novo sindicalismo encarou pragmaticamente a defesa da CLT; e Lula e o PT passaram a valorizar a era Vargas.

 

Conclusão

Carone não tinha uma escrita elegante. Não participava de muitos debates fora dos meios comunistas, não escrevia artigos teóricos e metodológicos, da mesma forma que não comentava muitos brasilianistas estadunidenses ao falar do Brasil. Tinha erudição literária e conhecia profundamente a história do país. Não gostava do PT e, nos anos 1990, estava mais próximo do PC do B, em razão da desorganização momentânea do PCB, naquela época. Recordo-me de vê-lo ao lado de Paula Beiguelman em debates nos sindicatos. Ainda assim, o Núcleo de Estudos d’O Capital do PT o homenageou. Intelectuais do PCB e de outras tendências fizeram-lhe uma homenagem na Unesp, campus Marília.

Ele foi de uma geração em que os estudos acadêmicos não estavam profissionalizados, não integrou grupos de pesquisa, preferiu o contato dentro dos círculos de amizade intelectual antigos, dos sindicatos e do Partido Comunista. Ele viveu a transição para a especialização acadêmica. Estava associado também a outros que eram silenciados, como Nelson Werneck Sodré e, em alguma medida, Jacob Gorender.

Com o fim da chamada Nova República surgiu a oportunidade de se operar uma síntese que negue e conserve parte daquela crítica social liberal dos anos 1980, expurgada de seus exageros panfletários e idealistas e do seu reducionismo cultural. A revalorização da experiência anarquista sempre foi fundamental, basta lembrar da obra escrita nos anos 1950 pelo historiador e memorialista comunista Everardo Dias.

Mas cabe recuperar o legado de pesquisas seminais que inseriam a classe operária na totalidade das relações de produção e levavam em conta aspectos subjetivos e objetivos. Afinal, na sede do sindicato e nas lutas públicas do partido (comícios, greves, escolas de samba, esportes, piqueniques, clubes de xadrez etc) transcorria uma parte significativa da experiência da classe trabalhadora, como anúncios de empregos, reclamações trabalhistas, apoio jurídico, colônia de férias, festas, cursos, aquisição de livros e jornais, debates e almoço de domingo.

Após o fim da União Soviética, a historiografia marxista manteve-se firme nos anos seguintes. Resistiu à avalanche pós moderna e reafirmou a objetividade do conhecimento histórico com Florestan Fernandes, Emilia Viotti, Anita Prestes, João Quartim, Wilson Barbosa, Marly Vianna, Nelson Werneck Sodré, Jacob Gorender, Paula Beiguelman e Edgard Carone[xxvi]. A volta do fascismo leva à revalorização daqueles que o combateram e o venceram.

*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê).

 

 Notas


[i]Entre as exceções na USP que não deixaram de dar valor aos estudos de Carone e Werneck Sodré encontramos Emilia Viotti nos anos 1980. No século XXI, Marcos Silva trabalhou pela redescoberta na USP do historiador Nelson Werneck Sodré.

[ii]Outro de seus alunos, o também bibliófilo de esquerda Dainis Karepovs realizou esse trabalho (ainda inédito).

[iii] Pedro Ribas, La introducción del marxismo en España (1869-1939). Madrid: Ediciones de La Torre, 1981.

[iv] Rubel, Maximilen. Bibliographie des oeuvres de Karl Marx avec un appendice en Répertoire des oeuvres de Friedrich Engels. Paris: Librairie Marcel Rivière, 1956.

[v] Wolfgang Lubitz, Trostki, Bibliography. München: K.G.Saur, 1982.

[vi] John Cammett. Bibliografia gramsciana, 1922-1988. Roma: Riuniti, 1991.

[vii] Edgard Carone, “A trajetória do Manifesto do Partido Comunista no Brasil”. In: Da direita à esquerda. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1991, pp.93-99. Publicado em Edgard Carone: Leituras Marxistas e Outros Estudos. Org. por Marisa Midori Deaecto; Lincoln Secco. São Paulo, Xamã, 2004.

[viii] Eric Hobsbawm, “Introdução ao manifesto comunista”, in: id. Sobre história. São Paul o: Companhia das Letras, 1998, pp.293-308; Gareth Stedman Jones, “Introduction”, in: Karl Marx and Friedrich Engels, The Communist Manifesto. London: Penguim Books, 2002, pp. 3-187; Claude Mazauric, “Lire le manisfeste”, in Karl Marx et Friedrich Engels, Manifeste du Parti Communiste. Paris: Librio, 1998, pp.7-21.

[ix] [Vários autores], Karl Marx e Friedrich Engels: Manifesto Comunista,150 anos depois. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Perseu Abramo, 1998, pp.43-207; Vários autores, Ensaios sobre o Manifesto Comunista, São Paulo: Xamã, 1998; Osvaldo Coggiola (Org.), Manifesto comuinista ontem e hoje. São Paulo: Xamã/FFLCH, 1999.

[x] Bert Andreas, Le manifeste communiste de Marx e Engels: histoire et bibliographie (1848-1948). Milão: Feltrinelli, 1963. [Edição com apêndice que abrange os anos de 1918 a 1959].

[xi] Edgard Carone, “Literatura e Público”, In: Da direita à esquerda. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1991, pp.37-92. Publicado em Edgard Carone: Leituras Marxistas e Outros Estudos. Org. por Marisa Midori Deaecto; Lincoln Secco. São Paulo, Xamã, 2004.

[xii] Marchetti, F. A Primeira República: a ideia de revolução na obra de Edgard Carone (1964-1985). São Paulo, dissertação de mestrado, USP, 2016.

[xiii]Cabe lembrar que foi Carone quem consolidou nos meios universitários a tradicional divisão entre primeira, segunda, terceira e quarta república. Fê-lo nos volumes de documentação. Nos volumes de interpretação sobre instituições e classes sociais e nos de narrativa da evolução política ele usou os títulos de república velha, nova, Estado Novo e república liberal.

[xiv] Casalecchi, J. E. A obra de Edgard Carone e o ensino da história. São Paulo: Difel, s/d.

[xv]Edgard Carone, A República Oligárquica: Instituições e Classes Sociais, São Paulo, Difel, 1975, p. 182.

[xvi] Carone, Edgard. Da Esquerda à Direita. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1991.

[xvii] Carone, Edgard. A República Oligárquica: Instituições e Classes Sociais, São Paulo, Difel, 1975, p.190.

[xviii] Toda a análise de Carone aqui comentada em: Carone, E. A república Nova (1930-1937). São Paulo: Difel, 1982, pp.381-394. Trata-se do texto “exército e tenentismo”, apêndice escrito em 1973.

[xix] Carone, E. A República Nova (1930-1937). São Paulo: Difel, 1974, p. 394.

[xx] Carone,  E. O Estado Novo. São Paulo: Difel, 1977, p. 143.

[xxi] Id. Ibid., p. 166.

[xxii] Fausto, B. Memórias de um historiador de domingo. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.239.

[xxiii] Fausto, B. A Revolução de 1930. 5 ed. São Paulo: Brasiliense, 1978, p. 113.

[xxiv] De Decca, E. e Vesentini, C. “A revolução do vencedor”,  Contraponto, 1, nov 1976.

[xxv] Tronca, I. A revolução de 1930: a dominação oculta. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 40.

[xxvi] Decerto há muitos outros das gerações intermediárias e mais recentes.

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