O culto das trevas

Bill Woodrow, Prata, 1994.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por TARSO GENRO*

A maldade e o negacionismo de Olavo de Carvalho: a quem as suas ideias serviram, o que decorreu delas

Nietzsche é apontado na história da filosofia moderna, não sem contestação, como filósofo da Alemanha nazista. Sobre Alfred Rosemberg, filósofo do senso comum do nazismo, não paira esta dúvida, pois este assassino em série semeou – no “homem comum” alemão – a convicção que o povo judeu deveria ser eliminado sem piedade, como animais levados a um matadouro. Sobre Heidegger, que serviu conscientemente a Hitler, a discussão permanece: através de alguns dizendo que o seu oportunismo político (que lhe permitiu ser nomeado Reitor da Universidade de Friburgo por Hitler) não anulou a sua “genialidade filosófica”; contrapostos a outros que lhe julgam um amoral devotado ao banditismo nazista. É discutível, mas aqui o governo bolsonariano teve o filósofo que mereceu, com um psicopata fixado nos orifícios anais, aceito pela grande imprensa como um colunista de elevado saber político.

Penso que Heidegger, místico e irracionalista, foi um enganador cuja elaboração lhe permitiu ser um aderente do nazismo, “frio e dramático, sem um pingo de humor; (proponente de) abstrações (tolas) e torção de ideias”, que não raro serviam para as mais diferentes interpretações dos seus discípulos” (“apud” Moreno Claros). Seria imprudente, porém, dizer que ele era inculto e ignorante como Rosemberg e que não tinha habilidades formais para tentar montar um “sistema” filosófico que, ao fim e ao cabo, desmoralizou-se na história universal. A derrota do nazifascismo e a força dos julgamentos de Nuremberg liquidaram aquele totalitarismo, que agora tenta se reerguer. Heidegger, todavia, se foi um filósofo, não foi um ser humano minimamente respeitável, pois suas ideias interferiram na história para forjar o mal da guerra e a barbárie do Holocausto.

Faço este apontamento rápido para sustentar que a “grande questão” sobre o dito professor Olavo de Carvalho, recentemente falecido de uma doença que ele dizia não existir, não é se ele foi um filósofo, ou não, mas sim a quem as suas ideias serviram, o que decorreu delas, que conteúdos ele emprestava a sua militância intelectual e qual a consequência, na vida das pessoas comuns, do que ele elucubrou na sua bizarrice, capacidade de manipulação e mentiras em série, que expelia nas suas verves diárias. Montaigne e Gramsci, mostraram com suas obras vidas que uma filosofia, seja qual for seu sentido, não tem importância se não se integra de alguma forma à vida das pessoas. Neste sentido, Olavo foi eficiente: deu uma bandeira aos idiotas e organizou o sentido do ódio para os seus profetas intermediários.

Refiro-me, por exemplo, a duas macroafirmações do talvez astrólogo Olavo, que rodam o mundo e integram-se à vida de milhões, que mostram a sua maldade intrínseca – semeadora da ignorância e da morte – que têm importância histórica e merecem ser estudadas. Refiro-me a sua admissão medieval de que a terra pode ser plana e que a vacinação é uma conspiração “globalista”, para impor uma dominação totalitária sobre o cotidiano das pessoas. A formação desta ideologia, travestida de uma filosofia popular, não é apenas uma ingenuidade psicótica, mas uma complexa formulação sobre a totalidade do mundo e uma estratégia de construção do futuro como revivescência medieval.

O livrinho panfletário Manual do perfeito idiota latino americano, publicado há 25 anos, não foi uma aberração porque seja um livro de direita ou porque ataque os que chama de simpatizantes da “ideologia marxista” ou de “idólatras contumazes do fracasso” ou, ainda, por autoconsiderar-se “um dos livros mais sérios do mundo”. É uma aberração porque é falso, desrespeitoso, ofensivo com pessoas de esquerda e de direita, desde que sejam sérias e não aceitem as suas bobagens semi-ilustradas, que identificam apenas num campo do pensamento político – sem qualquer rubor – “os verdadeiros responsáveis pelo retardamento econômico, social e cultural” da América Latina.

Os autores do livro são Plinio Mendoza (colombiano), Carlos Alberto Montaner (cubano) e Vargas Llosa (peruano), que procuram mostrar que até aquela época os idiotas venceram e que certamente um dia chegariam figuras como Macri, Sebastian Piñera e Bolsonaro, para nos salvar. Chegaram e pioraram e os verdadeiros idiotas surgiram das suas tocas. A tese central da obra, a três mãos, é que sequer existe uma responsabilidade compartilhada sobre as mazelas latino-americanas, como inclusive colocam cientistas políticos liberais sérios, que identificam – mais além do “estatismo” e do “nacionalismo” – (pedra-de-toque da sua histeria elitista) outros componentes do atraso social e econômico latino-americano, cuja responsabilidade é das classes privilegiadas.

Somos herdeiros da dominação colonial-imperial, que deixou por aqui as misérias morais e sociais que conhecemos, tais como a ideologia escravocrata das classes “superiores”, o genocídio dos autóctones, democracias oligárquicas e concentrações da propriedade da terra e da renda, em níveis brutais. O livro do trio “liberal” foi, de certa forma, precursor do “filósofo” falecido, que seguidamente apelava para o ânus alheio (ou para o próprio), para encerrar um debate político ou filosófico. Não demos importância, à época, ao panfleto de Vargas Llosa e seus amigos, pois ele estava sendo lido apenas por aspirantes ultraliberais, obscuros executivos do “mercado”, jornalistas aderentes, professores medíocres e sem brilho, das Universidades menores, embora divulgado amplamente pelo que se chama de “grande imprensa”.

A maldade e o negacionismo de Olavo, na verdade, é a contrapartida “científica” (panfletária) ao livrinho de “ciência política” que versou sobre os “idiotas latino-americanos”, que são aqueles que se comprometem com a vida, com a igualdade e as liberdades políticas, com a ciência e com razão iluminista. Simples assim: não importa se, no futuro – mais particularmente numa provável época de trevas – Olavo de Carvalho vá ser respeitado como um filósofo, porque até Rosemberg o foi na época do nazismo. O que importa agora é como vamos evitar que isso aconteça, derrotando os seus fanáticos nas próximas eleições e restaurando a vigência da Carta de 1988, para que os negacionismos e o culto político da morte sejam jogados na lata de lixo da História.

*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Alexandre de Lima Castro Tranjan Paulo Capel Narvai João Carlos Loebens Luis Felipe Miguel Leonardo Avritzer Ricardo Abramovay Carlos Tautz João Lanari Bo Anselm Jappe André Singer Antônio Sales Rios Neto Luiz Bernardo Pericás João Paulo Ayub Fonseca Igor Felippe Santos Lucas Fiaschetti Estevez Valerio Arcary Berenice Bento Michael Löwy Eleonora Albano Armando Boito Luiz Marques Bernardo Ricupero Ronald León Núñez Elias Jabbour Luiz Werneck Vianna Michel Goulart da Silva Ricardo Musse Osvaldo Coggiola Marjorie C. Marona Luís Fernando Vitagliano Jorge Branco Ronald Rocha José Dirceu Annateresa Fabris Leonardo Boff Eliziário Andrade Daniel Costa Carla Teixeira Marcelo Guimarães Lima Heraldo Campos Vanderlei Tenório Andrew Korybko Manchetômetro Leonardo Sacramento Tarso Genro Paulo Martins Luiz Renato Martins Dennis Oliveira Vladimir Safatle Matheus Silveira de Souza José Costa Júnior Samuel Kilsztajn Luciano Nascimento Tales Ab'Sáber Walnice Nogueira Galvão Francisco de Oliveira Barros Júnior Ricardo Antunes Denilson Cordeiro João Adolfo Hansen Ronaldo Tadeu de Souza Bruno Fabricio Alcebino da Silva Benicio Viero Schmidt José Micaelson Lacerda Morais Lincoln Secco Daniel Afonso da Silva Gabriel Cohn Salem Nasser Milton Pinheiro Bruno Machado Claudio Katz Jean Pierre Chauvin Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Leda Maria Paulani Boaventura de Sousa Santos Mário Maestri Rubens Pinto Lyra Érico Andrade Airton Paschoa Lorenzo Vitral Vinício Carrilho Martinez Yuri Martins-Fontes Marcelo Módolo Marilia Pacheco Fiorillo Marcos Silva Fernando Nogueira da Costa Julian Rodrigues José Raimundo Trindade João Carlos Salles Marcus Ianoni Ladislau Dowbor Gilberto Maringoni Renato Dagnino Slavoj Žižek Mariarosaria Fabris Plínio de Arruda Sampaio Jr. Alexandre Aragão de Albuquerque Ari Marcelo Solon Chico Whitaker Gerson Almeida Liszt Vieira Paulo Sérgio Pinheiro Sergio Amadeu da Silveira Maria Rita Kehl Jorge Luiz Souto Maior Flávio R. Kothe Francisco Fernandes Ladeira Atilio A. Boron Jean Marc Von Der Weid Andrés del Río Thomas Piketty Kátia Gerab Baggio Alexandre de Freitas Barbosa Gilberto Lopes Eugênio Trivinho Caio Bugiato Sandra Bitencourt Marilena Chauí Francisco Pereira de Farias Ricardo Fabbrini Eduardo Borges Luiz Roberto Alves Luiz Carlos Bresser-Pereira Antonio Martins João Feres Júnior Everaldo de Oliveira Andrade Fábio Konder Comparato Alysson Leandro Mascaro Bento Prado Jr. Dênis de Moraes Rafael R. Ioris Priscila Figueiredo José Machado Moita Neto Juarez Guimarães Henry Burnett Luiz Eduardo Soares Rodrigo de Faria João Sette Whitaker Ferreira Paulo Nogueira Batista Jr Fernão Pessoa Ramos Eleutério F. S. Prado Remy José Fontana Tadeu Valadares Antonino Infranca Celso Frederico Michael Roberts Afrânio Catani Flávio Aguiar Valerio Arcary Daniel Brazil Marcos Aurélio da Silva Manuel Domingos Neto André Márcio Neves Soares Henri Acselrad Otaviano Helene Paulo Fernandes Silveira Chico Alencar Celso Favaretto Eugênio Bucci José Luís Fiori José Geraldo Couto

NOVAS PUBLICAÇÕES