Fique em casa

Morton Schamberg (1881–1918), Vista dos telhados, Fotografia, 1917.
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Por GILBERTO LOPES*

Os Estados Unidos buscam deter a migração centro-americana para o norte.

O secretário de estado Antony Blinken visitou a Costa Rica nos dias 1 e 2 de junho para encontrar a quadratura do círculo: discutir um programa para conter a avalanche migratória centro-americana para os Estados Unidos, no meio de um cenário caótico. As intervenções norte-americanas contribuíram frequentemente para acentuar as tensões e as condições que acabaram por gerar esta onda desesperada.

Na capital da Costa Rica, Blinken reuniu-se com os chanceleres dos países membros do Sistema de Integração Centro-Americana (SIECA) e o chanceler mexicano Marcelo Ebrard. A visita foi mais um passo num esforço ao qual a nova administração norte-americana está dedicando alguns de seus principais recursos. Este é um fenômeno particularmente sensível nos três países do chamado “triângulo do norte” centro-americano: Guatemala, El Salvador e Honduras, cujas relações com os Estados Unidos atravessam momentos diferentes.

No início de abril, foi Ricardo Zúñiga, um diplomata de origem hondurenha encarregado por Biden de lidar com as causas da migração centro-americana, que fez sua primeira viagem à região. Zúñiga visitou a Guatemala e El Salvador, mas não foi a Honduras, seu país de origem. Encontrou-se em Washington com o chanceler hondurenho Lisandro Rosales e outros ministros do governo do presidente Juan Orlando Hernández, cujo irmão foi condenado por narcotráfico e está preso nos Estados Unidos. O próprio presidente foi acusado do mesmo crime num tribunal de Nova Iorque. Em El Salvador, Zúñiga não foi recebido pelo presidente Nayib Bukele. As relações ficaram tensas quando os parlamentares demitiram os membros da Sala Constitucional da Suprema Corte e o Procurador-Geral da República, depois que tomou posse, em 1 de maio, a nova assembleia legislativa (na qual Bukele tem uma maioria de 64 votos entre 84 membros).

Os Estados Unidos expressaram “sérias preocupações” com o que aconteceu e o encarregado de negócios em San Salvador não participou de uma reunião convocada por Bukele para informar o corpo diplomático sobre a natureza do ocorrido. Não há necessidade de destacar a fragilidade absoluta da economia salvadorenha em relação aos Estados Unidos: a moeda em circulação é o dólar, há cerca de três milhões de salvadorenhos vivendo nos Estados Unidos (muitos deles sem documentos), cujas remessas representam quase um quarto do Produto Interno Bruto (PIB) do país.

Na Guatemala, os problemas são diferentes, e, numa conferência virtual com o presidente Alejandro Giammattei em 26 de abril, a vice-presidente norte-americana, Kamala Harris, manifestou sua preocupação com a corrupção e a má governança.  Harris, encarregada pelo presidente Biden de enfrentar o desafio da imigração ilegal na fronteira sul dos Estados Unidos, pretendia visitar a Guatemala e o México nos dias 7 e 8 de junho, apenas uma semana após a visita de Blinken a San José. “Aqui Harris poderá comprovar a grande pobreza que afeta a maioria dos guatemaltecos. Segundo a CEPAL, no final de 2020, a Guatemala teria 21% da população vivendo em extrema pobreza, e 59,9% no nível da pobreza”, disse uma nota publicada no jornal guatemalteco Crónica em 5 de junho.

Fique em casa

Uma atividade diplomática tão intensa só pode ser explicada pelas dimensões do fenômeno na política interna norte-americana. As detenções de imigrantes sem documentos na fronteira com o México dispararam em março, atingindo o nível mais alto em 15 anos, de acordo com dados oficiais. Os agentes norte-americanos do controle fronteiriço com o México estão realizando cerca de 6.000 detenções diárias, um nível sem precedentes, afirmam as autoridades. Entre esses imigrantes – a grande maioria dos quais provém do “triângulo do norte” centro-americano –, o número de menores desacompanhados também registrou um aumento de 100% em um mês.

O desafio para os Estados Unidos é convencer os centro-americanos a ficarem em casa. Em 2015, o então presidente Barack Obama pediu ao Congresso um bilhão de dólares para programas de desenvolvimento nos três países – ao qual chamou de Alliance for Prosperity – para o enfrentamento das causas da violência e da falta de oportunidades, que promovem a imigração. Não funcionou. Primeiro, o Congresso reduziu o montante para 750 milhões de dólares. Mas não era um problema de recursos, mas de ideias.

 Mariana Alfaro publicou um artigo sobre o assunto no The Washington Post em 1 de junho. “Falei com a representante democrata para a Califórnia, Norma Torres”, afirmou. Ela é a única centro-americana no Congresso. “Torres disse-me que os Estados Unidos têm buscado, repetidamente, promover programas de desenvolvimento na região, e a verdade é que temos muito pouco para mostrar”, disse ela. “Não se pode confiar nos governos, pelo que outras alternativas devem ser buscadas, como a colaboração com o setor privado e as organizações sem fins lucrativos”, acrescentou Torres.

Biden tinha contatado 12 grandes corporações norte-americanas, incluindo Microsoft, Mastercard e Nespresso, para propor-lhes o investimento na região. Torres pensa que a ideia poderia funcionar e as empresas parecem entusiasmadas. O The Wall Street Journal anunciou que a Microsoft tinha planos para facilitar o acesso à internet a três milhões de pessoas na região até julho do próximo ano e criar centros de formação digital para jovens e mulheres.

O Mastercard pretende incorporar cinco milhões de pessoas da região ao sistema financeiro e dar a um milhão de micro e pequenas empresas acesso ao banco digital. A fabricante de iogurte Chobani está disposta a promover programas de incubação para produtores locais na Guatemala; e a Nespresso, uma unidade da Nestlé, planeja comprar café de El Salvador e Honduras, com um investimento regional de pelo menos 150 milhões de dólares até 2025.

Cortina de fumaça

É difícil entender como estes programas trarão oportunidades e desenvolvimento para a população dos três países. Tudo parece ser muito mais uma oportunidade de negócio para as empresas.

Em meados de maio, enquanto ainda se discutiam alternativas em Washington, a vice-presidente Harris declarou que haveria poucos progressos se a corrupção na região persistisse. Essa foi a razão principal pela qual os esforços se voltariam agora para o setor privado e para a sociedade civil.

Mas a utilização política do tema da corrupção teve efeitos devastadores na região. O exemplo mais dramático foi o do Brasil, onde esta ferramenta foi utilizada para retirar o então candidato favorito à presidência da república, o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, condená-lo e colocá-lo na prisão mediante o abuso de instrumentos jurídicos, utilizados por juízes cúmplices, coniventes com fontes judiciais e empresas norte-americanas. O instrumento também foi utilizado no Equador e na Bolívia e em outros países da região, com os mesmos efeitos políticos desestabilizadores. Também não é difícil prever que, do ponto de vista econômico, a proposta será transformada num novo instrumento de extração de riqueza da região, agravando as estruturas que acabam forçando seus cidadãos a migrarem seguindo a rota da riqueza.

O plano de Biden para a América Central não é mais do que uma cortina de fumaça, disse Aviva Chomsky, coordenadora do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade Estatal de Salem, em Massachusetts, num artigo publicado no The Nation em 1 de abril. Em sua opinião, a essência do plano é que milhões de dólares serão utilizados para reforçar as capacidades militares e policiais nesses países e assim proteger um modelo econômico baseado no investimento privado e na exportação de lucros. Em vez de solidariedade com a América Central, promove, na verdade, o velho modelo de desenvolvimento econômico”. “O modelo que Washington continua promovendo”, disse Aviva Chomsky, “baseia-se na ideia de que se os governos centro-americanos puderem atrair investimento estrangeiro através de infraestruturas melhoradas, redução de impostos e leis ambientais e trabalhistas menos rigorosas, o ‘livre mercado’ promoverá o investimento, o emprego e o crescimento econômico, que (em teoria) impedirão as pessoas de pensar na imigração como primeira opção”. Mas, adverte, a história centro-americana demonstrou, repetidamente, que ocorreu exatamente o contrário.

O investimento estrangeiro veio para a região ansioso para aproveitar as terras férteis, os recursos naturais e a mão de obra barata. Uma forma de desenvolvimento que explorou as plantações de banana e café no século XIX, bem como outras formas mais modernas posteriormente, que acabaram alimentando as revoluções dos anos 80, especialmente na Nicarágua e em El Salvador, e também a atual onda de migração, em busca de melhores condições de vida.

Há quase um século, um notável escritor costa-riquenho, Vicente Sáenz, analisou em dezenas de páginas as relações econômicas e políticas da América Central com os Estados Unidos. Sáenz lembrou-nos que, entre 1927 e 1929, os países produtores centro-americanos exportaram 36 milhões de cachos de bananas para os Estados Unidos, produzindo um lucro líquido de 50 milhões de dólares na época. Mas a United Fruit pagava aos países produtores um centavo de dólar por cacho exportado: 360.000 dólares, que era repartido entre Honduras, Guatemala, Nicarágua e Costa Rica. Quando a Guatemala tentou cobrar mais pelas suas bananas, os Estados Unidos organizaram um golpe militar que pôs fim ao governo de Jacobo Arbenz, em 1954; golpe que está na origem do sistema político profundamente desorganizado e corrupto do país até os dias de hoje, que mantém a população indígena marginalizada e empobrecida e sustenta uma distribuição injusta da riqueza.

Aviva Chomsky recorda que os Estados Unidos passaram os anos 1980 tentando esmagar a exitosa revolução nicaraguense e os movimentos armados contra os governos de extrema-direita de El Salvador e Guatemala, e que “os tratados de paz dos anos 1990 puseram fim aos conflitos armados, mas nunca resolveram as profundas diferenças sociais e econômicas que lhes deram origem”. De forma alguma puseram fim à pobreza, à repressão e à violência, diz ele.

Aliança vital

Moisés Naim, membro destacado do Carnegie Endowment for International Peace, um conservador venezuelano, queixou-se da atenção excessiva ao problema migratório na fronteira com o México, dizendo que as coisas não estavam indo bem no resto da América Latina. “Se perguntar à equipe de Biden sobre sua agenda no hemisfério, a resposta obtida começará – e frequentemente terminará – com a fronteira sul dos Estados Unidos”, diz Naim. Na sua opinião, a migração dos países do triângulo do norte da América Central está longe de ser o maior desafio que a América Latina representa para os interesses de Washington.

Os dois gigantes da região – Brasil e México – estão, na sua opinião, nas mãos dos populistas, abertamente contrários a qualquer forma de controle do poder. No Peru, dois “abomináveis candidatos” disputavam o poder nas eleições de 6 de junho; enquanto no Equador, um presidente neoliberal, que Naim considera “centrista” (com quem simpatiza), enfrentará um congresso muito fragmentado que não lhe permitirá governar.

 Na Colômbia, onde os governos de direita desencadearam uma onda incontornável de assassinatos de líderes sociais e o protesto social tomou as ruas há mais de um mês, Naím vê o perigo de um candidato da “extrema-esquerda” derrotar aqueles que transformaram o país no aliado mais confiável dos Estados Unidos na região. Uma aliança que Blinken chamou de “absolutamente vital” numa reunião com sua colega colombiana, Marta Lucía Ramírez, que viajou para Washington no meio da crise em seu país para buscar o apoio da administração norte-americana.

Ricardo Zúñiga tinha dito, após seu giro pela América Central, que os Estados Unidos não pretendiam impor seu modelo à América Central, mas apoiar os países da região na criação de “sociedades seguras, prósperas e democráticas”. Mas Blinken pôs as coisas em seu devido lugar. Avisou, em San José, que os Estados Unidos só levantariam as sanções impostas a países como a Nicarágua ou a Venezuela se esses governos mudassem de rumo e orientassem suas políticas em favor da democracia. A mesma política, encorajada pelos setores conservadores da oposição que, tanto na Venezuela como na Nicarágua, batem às portas de Washington em busca de intervenções que facilitem a conquista de seus objetivos e que acabem, a longo prazo, abrindo caminho para a desesperada migração para o Norte.

*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor de Crisis política del mundo moderno (Uruk).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

 

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