Educação superior – mínimos democráticos, máximos gestionários?

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Por LICÍNIO C. LIMA*

Democracia a menos, e não democracia a mais, é hoje um problema magno nas Instituições de Ensino Superior

Parto, neste esforço de síntese sobre a condição das instituições de educação superior (IES) e da sua governação, da tese de que se encontra em consolidação um modelo institucional de tipo gestionário, altamente formalizado e racionalizado, menos democrático, com menos liberdade académica para professores e investigadores, mas com mais autonomia institucional e de gestão para os gestores de topo e seus assessores, ou “tecnoestrutura”.

Trata-se de uma tendência observável à escala global, certamente com múltiplas especificidades, que ocorre por ação de orientações políticas transnacionais e supranacionais, não independente da reforma do Estado e da introdução de complexos dispositivos de “governação”, granjeando a adesão de vários governos nacionais e, também, de autoridades académicas. Não se manifesta, em qualquer caso, de forma mecânica, independente dos contextos regionais e nacionais, das configurações do Estado e das políticas públicas, nem da ação concreta dos docentes e investigadores.

O cânone gerencialista e a hiperburocratização das IES

Impulsionado pela Nova Gestão Pública, que defende a transferência para o domínio público dos princípios da gestão privada de tipo empresarial, o que designo de cânone gerencialista inclui as seguintes dimensões principais: a cultura e o ethos de tipo empresarial; a defesa da privatização, seja em sentido pleno, seja como modo de gestão a introduzir nas organizações públicas, designadamente através da criação de mercados internos no seu seio; o elogio da liderança individual e da respectiva visão e projeto, como expressão do “direito de gerir”, da livre iniciativa e do empreendedorismo na administração pública; a eficácia e a eficiência definidas segundo a racionalidade económica; a livre escolha, em ambiente de mercado ou quase-mercado competitivo, num quadro de referência que coloca o cliente e o consumidor no centro das opções consideradas racionais; a clareza da missão da organização e a definição objetiva e passível de mensuração dos seus objetivos, escrutináveis através de complexos e rigorosos processos de avaliação e de garantia da qualidade.

As reformas gerencialistas da educação pública, em diversos países, embora com impactos variados e apropriações diversas têm, de acordo com a investigação disponível, destacado um vasto conjunto de dimensões, entre as quais: centralização da formulação das políticas e dos processos de decisão, embora invocando sistematicamente a descentralização, a devolução e a autonomia; a descentralização de certas competências, embora principalmente de carácter técnico e operacional e, frequentemente, financeiro, alargando as fontes de financiamento a entidades privadas e responsabilizando de forma crescente as famílias e os próprios estudantes, em certos países crescentemente endividados; menor relevância atribuída a processos de controle democrático e de participação nos processos de tomada das decisões, bem como crescente desconfiança relativamente a órgãos colegiais, geralmente vistos como fontes de desresponsabilização, de composição considerada numerosa e paralisante, de funcionamento pesado e lento; reforço do poder dos gestores, assessores e outras tecnoestruturas, em prejuízo da influência dos profissionais, professores e investigadores, bem como da comunidade e da diversidade das suas organizações e dos seus interesses, em geral substituídos pela intervenção de representantes restritos dos interessados, pelo controlo dos clientes, pelas parcerias com o poder econômico e empresarial; governação e decisões políticas baseadas na evidência, instituindo formas de regulação de tipo mercantil; reforço das estruturas de gestão de tipo vertical e concentração de poderes no líder formal.

Apresentado e legitimado como uma alternativa de tipo “pós-burocrático”, o gerencialismo revela-se, com frequência, mais gestão para menos democracia, sendo responsável por um aumento exponencial de certas dimensões da burocracia, ou autoridade racional-legal, estudadas por Max Weber, mas também mesmo de dimensões menos racionais e mais coincidentes com a aceção pejorativa e de senso comum.

O exagero dos traços da burocracia resulta numa burocracia radicalizada, ampliada, ou, como prefiro chamar-lhe, numa hiperburocracia (LIMA, 2012), aliás induzida e reforçada pelas novas tecnologias da informação e comunicação, que emergem como uma espécie de nova fonte de controlo centralizado, eletrónico e aparentemente difuso, mas, contudo, poderoso, sempre presente em cada momento e em todos os lugares, isto é, de natureza totalizante e, por vezes, quase totalitária.

Dentre as dimensões teoricamente associáveis à hiperburocratização, podem referir-se: a substituição da liderança colegial pela liderança unipessoal, a que, em certos casos, falta a perda do caráter eletivo para se aproximar do que Weber designou por “burocracia monocrática” ou de um só chefe; a centralização e concentração de poderes de decisão; o regresso à organização em linha, à maior hierarquização e à divisão do trabalho entre gestores e académicos; a crescente relevância do saber pericial de adjuntos e assessores, das instâncias especializadas na prestação de serviços técnicos; a obsessão pela eficácia e eficiência, pela escolha ótima e pela performance competitiva; a centralidade dos processos de gestão da qualidade, de avaliação e de mensuração, sob inspiração neopositivista (rankings, avaliação externa, testes estandardizados, padrões, etc.); os processos de centralização informática e de taylorismo on-line, com a difusão de novas categorias mentais, reproduzidas sem disputa, e de conceitos mais ou menos naturalizados.

Chama à atenção o recurso às novas tecnologias da informação e comunicação, ao serviço de processos de prestação de contas, avaliação e garantia da qualidade em ambientes competitivos e à escala internacional. Francisco Ramirez (2013) observou como as práticas de prestação de contas, avaliação, produção de rankings e até dos relatórios anuais dos professores, nas universidades americanas, têm contribuído para acentuar a imagem da Universidade como um ator organizacional formal.

Os processos de isomorfismo educacional assentam na procura de novas bases de legitimação, tais como regras estandardizadas, internacionalização, diferenciação, rotinas avaliativas, comparações internacionais, de que resulta uma IES racionalizada e performativa, uma IES empreendedorista, que aquele autor associa a fenômenos de “intensificação da racionalização”.

Hibridismo institucional

A retirada de certas organizações públicas da esfera estatal restrita e das tradicionais lógicas tutelares e de controle hierárquico, introduzindo novas formas de orientação para o cliente, mercados internos, orçamentos competitivos, contratos firmados com base em resultados a atingir, corresponde genericamente ao que há muito foi designado como uma forma de “reinvenção” do governo e da administração pública.

Em Portugal, tende a coincidir com a “ascensão do gerencialismo”, visível a partir de meados da década de 1990. A criação de organizações de feição, ou ao estilo, empresarial, a adoção de um ethos competitivo e de um ambiente de negócios, associadas à ideia de inovação e de reforma organizacional nos moldes do setor privado representa, hoje, uma orientação considerada racional.

Esta é uma das razões pelas quais as IES têm sido descritas através de uma linguagem de tipo predominantemente industrial e econômico, representando as organizações educativas públicas como se estas operassem no livre mercado e fossem dotadas do mesmo tipo de autonomia que as organizações do setor privado. A criação de novos modelos jurídico-institucionais, do tipo fundação pública com regime de direito privado, a par de outras parcerias entre o público e o privado, como alternativas à universidade/politécnico-instituto público, representa mais uma configuração de tipo híbrido já não de tipo estatal, mas ainda de natureza pública; adotando o direito privado em várias áreas de atuação, mas referenciando-se ao direito público noutras; furtando-se a certas injunções micro normativas governamentais e da administração central, mas não deixando de responder perante a tutela política; gozando de certas prerrogativas e liberdades em termos de gestão financeira e patrimonial, mas continuando sujeita à ação do Tribunal de Contas e ao Plano Oficial de Contabilidade para o Setor da Educação, por exemplo.

O hibridismo deste “novo tipo de instituição”, como tem sido designado pelo legislador em Portugal, é não apenas visível nas formas complexas de articulação entre Estado, mercado e sociedade civil, ou ainda nas balizas cada vez mais fluidas entre público e privado, mas também no que concerne ao modelo de governação adotado, especialmente o de tipo fundacional.

Em Portugal, após as recomendações apresentadas pela OCDE (2006) e a aprovação do novo regime das instituições, aprovado em 2007 pelo XVII Governo, instituiu-se uma alternativa de tipo fundacional. O regime fundacional consagrou um conselho de curadores (composto por cinco personalidades nomeadas pelo governo, sob proposta da instituição), bem como a possível adoção do regime individual de trabalho para novos profissionais a contratar no futuro, a possível nomeação de diretores de faculdades e departamentos, a significativa concentração de poderes no reitor/presidente, tal como o reforço das competências de outros órgãos unipessoais.

São exemplos significativos da adesão a lógicas gerencialistas e a modos de funcionamento considerados típicos do setor privado. É neste contexto que o reitor ou presidente emerge como um chief executive officer (CEO), ou diretor-geral, dotado de uma visão, de um projeto, de uma equipe de gestores de topo e intermédios, assessorado por uma tecnoestrutura da sua confiança; deve ser-lhe reconhecido o “direito de gerir” a instituição com amplas margens de liberdade, responsabilizando-o pela sua ação, designadamente por meio de novos mecanismos de prestação de contas e da ação fiscalizadora do conselho de curadores e do conselho geral. Daí resulta uma considerável concentração de poderes de tipo unipessoal, sendo débeis os pesos e contrapesos institucionais, justificados pela procura de sustentabilidade em ambiente competitivo.

Mas essa busca de sustentabilidade em ambiente competitivo apresenta limites éticos e políticos, culturais e educacionais que não podem ser ignorados. E por isso o determinismo económico, a pura adaptação ao ambiente competitivo e a procura de uma sustentabilidade subordinada ao paradigma gestionário poderão corroer as bases das IES e precipitar uma crise, sem precedentes, situação em que os princípios da sustentabilidade competitiva revelariam os verdadeiros limites das lógicas da rivalidade e da emulação, ou daquilo a que poderia, então, chamar-se uma competitividade insustentável e corrosiva.

Nesse contexto, se cada vez mais funcionais e melhor adaptadas ao ambiente, socialmente e normativamente imersas – mais do que politicamente e axiologicamente inscritas –, as IES já não nos servirão para nada e serão, seguramente, substituídas por outras organizações mais eficazes e eficientes, verdadeiramente mercantis e funcionais, certamente mais fiáveis, produtivas e obedientes; talvez por agências do capitalismo académico, ou por empresas do conhecimento, da formação e da inovação, produtoras de conteúdos, ideias, bens, serviços e artefactos.

Erosão da gestão democrática

Numa síntese bastante precisa, Vital Moreira (2008, p. 131), um dos defensores da reforma do ensino superior de 2007, depois de convocar o racional da Nova Gestão Pública, afirmou: “[…] diria que teremos menos órgãos, menos eleições, menos colegialidade, maior participação externa, mais responsabilidade perante o exterior. Se alguma coisa vai mudar profundamente com a reforma é claramente o sistema de governo”.

Foi essa, de um ponto de vista formal, a situação encontrada através da análise dos primeiros estatutos de quinze instituições universitárias e de um terço de institutos politécnicos que publiquei em 2012. As estruturas organizacionais e de gestão evidenciaram opções claras de maior centralização interna e de concentração de poderes executivos nos reitores e presidentes, sem precedentes na história portuguesa do ensino superior em democracia.

Deste ponto de vista, o ensino superior em Portugal parece ter sido definitivamente inscrito num quadro mais geral de reformas onde avulta a tendência para um padrão de gestão institucional de tipo hiperburocrático: centralização, estruturas verticais de poder, estandardização, racionalidade instrumental, competência técnica e meritocracia, poder da tecnoestrutura, mensuração, competitividade interna.

Emerge, atualmente, uma nova e mais poderosa categoria de gestores institucionais que, embora continuando a ser recrutados entre académicos, têm condições para assumir uma ruptura com a cultura académica. É uma ruptura com os valores da colegialidade e do poder académico democráticos, a favor de um ethos gestionário, combinando um mínimo de representatividade académica (legitimação democrática) e uma crescente valorização do poder da tecnoestrutura (legitimação técnica), constituída por altos funcionários especializados.

Em qualquer dos casos, procura-se libertar a gestão institucional da cultura e da influência dos académicos. Reitores e presidentes têm agora um novo papel de intermediação entre o Estado e o mercado, entre as exigências dos stakeholders e as reivindicações dos académicos e de outros trabalhadores; eles são, ainda, uma espécie de novos “elos-de-ligação” entre a academia e a gestão, entre o Conselho Geral e as unidades e subunidades de gestão.

Na reforma portuguesa, o cânone gerencialista não atingiu ainda o vigor que revelou noutros países, especialmente nas suas vertentes mais mercantis e ligadas à reforma neoliberal do Estado. Mas é impossível não notar a sua influência crescente, para além dos sinais que foi revelando ao longo da última década. É a ideologia gerencialista que, neste momento, suporta um complexo processo de hibridização, já apontado noutros países: um processo resultante da presença simultânea de dimensões de democracia (em processo de perda e de resistência nas instituições) e de dimensões de expertise (em processo de reforço nas instituições).

Em Portugal, à influência da colegialidade e da gestão democrática herdadas da revolução de 1974 (Universidade da Constituição), bem como à mais recente força do cânone gerencialista e da cultura empresarial (Universidade Gestionária), há que acrescentar o poder de uma burocracia estatal, centralizada e hierárquica (típica de uma Universidade Governamentalizada).

O que fica claro na reforma portuguesa é que nunca antes a colegialidade democrática e os valores académicos foram tão questionados e desafiados como neste momento, com base num quadro de racionalidade gestionária e num projeto de modernização e europeização. O regime de Salazar-Caetano revelou igualmente desconfiança e combateu a liberdade académica e a gestão democrática, mas fê-lo com base numa ideologia política não democrática.

Contudo, no presente, o incremento da autonomia institucional, de que tanto se fala, poderá resultar, paradoxalmente, num reforço do poder dos gestores e das tecnoestruturas que os apoiam, sem garantir maior liberdade, seja para académicos seja para estudantes. Pelo contrário, pode mesmo vir a assegurar o controle dos gestores sobre um trabalho acadêmico mais ou menos alienado, ou subordinado.

Mínimos democráticos, máximos gestionários?

 O relatório da OCDE (2006) sobre a educação superior em Portugal revelou-se bastante influente na reforma de 2007, mesmo admitindo que algumas recomendações importantes não foram adotadas, ou foram seguidas parcialmente e sem carácter obrigatório para as instituições: a generalização do estatuto de fundação pública de direito privado; a nomeação dos reitores ou presidentes; a nomeação dos diretores das faculdades e dos departamentos; a maioria de membros externos no órgão máximo de governo das instituições; a perda do estatuto de funcionário público para o pessoal docente e não docente; a não aplicação das regras da contabilidade pública às instituições.

Contudo, a OCDE revelou-se muito mais influente quanto a outras propostas adotadas no Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (Lei n.º 62/2007): perda de influência dos órgãos colegiais, predominantemente remetidos para a condição de órgãos consultivos; concentração de poderes executivos no reitor ou presidente; presidência do conselho geral por um membro externo; reforço das lideranças individuais nas unidades e subunidades; redução do número de órgãos de governo e deliberação; redução do número de académicos participantes em órgãos de governo. Em geral, a reforma adotou uma conceção “empreendedora” de instituição de ensino superior.

Adotou ainda um novo paradigma de governança e gestão, recomendado pela OCDE (2006), embora o governo tivesse, inicialmente, preferido colocá-lo como alternativa apenas para as instituições que reunissem certas condições, designadamente de financiamento próprio: a fundação pública sob direito privado, aí introduzindo o conselho de curadores. Esta solução foi defendida, nos últimos anos, por vários políticos portugueses e antigos ministros da educação, uma vez que o padrão colegial foi representado como um obstáculo à gestão eficaz do líder individual (Crespo, 2003) e à ação das “lideranças fortes, quase sempre assentes nas características natas do líder” (Grilo, 2005, p. X-XI).

Esta crença no “líder executivo eficaz”, que retoma uma tradição consensualista e eficientista das teorias da gestão, desde a Teoria das Relações Humanas na década de 1930, com Chester Barnard, passando pela Gestão por Objetivos e pela obra de Peter Drucker, tem contribuído, em vários países, para retirar importância ao governo académico, à colegialidade e à gestão democrática, e também às subunidades onde os académicos se organizam.

O Conselho Geral passou a ser o órgão máximo, embora muito diminuído em termos de participação e representação democráticas face ao anterior Senado Universitário. É composto por quinze a trinta e cinco membros, integrando professores e investigadores (necessariamente mais de metade dos membros), compreendendo estudantes e, eventualmente (mas não necessariamente), funcionários não docentes, e ainda pelo menos 30% de membros externos cooptados, um dos quais será o presidente do órgão (artigo 81º).

O Conselho Geral, sendo o órgão máximo de governo, a quem cabe eleger o Reitor, aprovar as alterações dos estatutos, apreciar os atos de gestão do Reitor, ou Presidente, e do Conselho de Gestão, e propor iniciativas para o bom funcionamento da instituição, não interfere no governo e na gestão quotidianos, que cabem ao Reitor (subsistema universitário) ou ao Presidente (subsistema politécnico). São estes os verdadeiros líderes das instituições, concentrando um numeroso conjunto de competências (artigo 92º), parte das quais atribuídas ao Senado Universitário na legislação anterior. O Senado Acadêmico, de criação facultativa, é agora um órgão de natureza consultiva, desaparecendo ainda a anterior Assembleia deliberativa.

Conclui-se que a liderança individual ganha grande centralidade em termos de governo, até mesmo no caso da maioria das competências exercidas pelo Conselho Geral, as quais são de aprovação dos mais importantes planos e documentos estratégicos das instituições, mas sempre sob proposta do Reitor ou Presidente, órgão a quem compete a “condução da política da instituição” (artigo 85º, nº 2). Compete-lhe também a nomeação dos membros do Conselho de Gestão (órgão executivo), bem como a sua presidência.

Garantida, em termos mínimos, a participação na “gestão democrática das escolas”, esta categoria constitucional não chega sequer a ser nomeada na Lei, concedendo protagonismo aos conceitos de autonomia de gestão, consórcio, fundação, qualidade, entre outros. Por outro lado, nada na Lei de 2007 garante a eleição dos diretores das unidades e subunidades, nem sequer a obrigatoriedade da existência de órgãos colegiais representativos das faculdades, departamentos, centros de investigação etc.

A lei apenas admite a sua existência e, nesse caso, atribui-lhes a competência para eleger o diretor. Mas os diretores de faculdade, ou de departamento, deixam de ser apenas presidentes de órgãos colegiais, para passarem a ter o estatuto de órgãos uninominais, com competências próprias reforçadas, não sendo mais eleitos pela totalidade do pessoal docente, investigador e não docente da respetiva unidade ou subunidade.

A estrutura legalmente instituída é bastante rígida, ao contrário do que é afirmado na Lei de 2007, apenas concedendo às instituições a possibilidade de optarem por pequenas variações morfológicas quanto aos órgãos de governo, sendo bastante mais aberta no que concerne aos órgãos de carácter consultivo. O grau de liberdade institucional e de escolha das estruturas de gestão apenas se revela maior no caso de as instituições optarem pelo estatuto de fundação. Nesse caso, porém, não há garantias de colegialidade, de gestão democrática e de eleição de alguns gestores a nível intermédio; não se encontrando legalmente impedidas, não representaram uma prioridade para o legislador, que não lhes atribuiu carácter obrigatório.

A análise dos estatutos aprovados pelas quinze universidades públicas e por um terço dos institutos politécnicos públicos existentes em Portugal revelou exatamente o impacto do novo padrão de governação, bem como as consequências nas suas estruturas de gestão. Apesar das distintas formas de receção institucional da Lei de 2007, sobretudo no que concerne à opção pelo estatuto de fundação (apenas em três instituições numa primeira fase), registaram-se opções estruturais bastante semelhantes.

A composição do Conselho Geral variou entre um mínimo de quinze membros (só numa universidade) e um máximo de trinta e cinco membros (em duas universidades). Dois terços das universidades optaram por Conselhos Gerais constituídos entre vinte e vinte e nove membros (a média foi de vinte e cinco membros). Só duas universidades não contemplaram a participação de representantes do pessoal não docente no Conselho Geral, embora em doze, num total de treze, só estivessem representados através de um membro.

O estatuto de fundação não revelou qualquer relação privilegiada com o menor número de membros do Conselho Geral (entre dezanove e trinta e três), nem com a ausência de representação do pessoal não docente. Foi, no entanto, nas três fundações iniciais que mais se concentraram as unidades (faculdades ou departamentos) sem órgãos de gestão próprios e com diretores nomeados ou designados não apenas por eleição, ao contrário do que sucedia com a maioria das outras instituições.

Embora não impedindo, nalguns casos, soluções mais democráticas e participativas em termos de governação, o legislador e outros atores organizacionais vêm preferindo democracia a menos do que correr os riscos daquilo que lhes parece poder ser democracia a mais, o que os conduz à opção por mínimos democráticos. Dessa forma preservam os quesitos democráticos mínimos que são uma exigência constitucional em várias áreas, ao mesmo tempo que adotam procedimentos típicos de uma democracia em crise, formalista, ou de uma pós-democracia, como lhe chamou Colin Crouch (2004).

A pós-democracia é coerente com a adoção de mínimos democráticos, convive bem com a passividade, com a crise de participação e de cidadania ativa, adotando como referência o “espírito empreendedor”, a lógica de concentração de poderes no líder, a promoção da meritocracia. Por isso é adepta do nível máximo de participação mínima, como escreveu Crouch. Não surpreende, em tal contexto, a crise de participação e alguns dos obstáculos que são apresentados a práticas democráticas (como por exemplo a eleição de reitores e presidentes fora de um colégio eleitoral restrito), a forte hierarquização, a emergência de novas formas de controle e escrutínio, certamente reforçadas por fenômenos de subfinanciamento crônico, de precariedade e de desprofissionalização, a indução de uma competitividade desenfreada que se revela inibidora da cooperação e da solidariedade, as formas de governo pelos números que, aparentemente, se impõem, naturalizando certas soluções e despolitizando as IES.

Nota final

A profunda crise da democracia nas IES, que urge superar, é incompatível com as responsabilidades éticas e políticas de organizações educativas e de produção e difusão do conhecimento que levem a sério a democracia cognitiva, a educação democrática como bem público e, desde logo, uma boa parte dos valores que assumem estatutariamente nas suas missões e objetivos, tanto mais quanto sabemos, de há muito, que fins democráticos exigem estruturas, regras e processos democráticos. E por isso, democracia a menos, e não democracia a mais, é hoje um problema magno nas IES.[i]

*Licínio C. Lima é professor catedrático do Instituto de Educação da Universidade do Minho.

Referências


CRESPO, Vítor. Ganhar Bolonha, ganhar o futuro. O ensino superior no espaço europeu. Lisboa: Gradiva, 2003.

CROUCH, Colin. Post-Democracy. Cambridge: Polity Press, 2004.

GRILO, Eduardo M. Prefácio. In: PEDROSA, Júlio; QUEIRÓ, João (Org.). Governar a universidade portuguesa. Missão, organização, funcionamento e autonomia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. VII-XIV.

LIMA, Licínio C. Elementos de hiperburocratização da administração educacional. In: LUCENA, Carlos; SILVA JÚNIOR, João dos Reis (Org.). Trabalho e educação no Século XXI: experiências internacionais. São Paulo: Xamã, 2012, p. 129-158.

MOREIRA, Vital. Estatuto legal das instituições de ensino superior. In: AMARAL, Alberto (Org.). Políticas de ensino superior. Quatro temas em debate. Lisboa: Conselho Nacional de Educação, 2008, p. 123-139.

ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). Reviews of national policies for education: tertiary education in Portugal, 2006. Examiners’ report. Lisboa, 13 dez. 2006. Disponível em: http://www.dges.mctes.pt/NR/rdonlyres/8B016D34-DAAB-4B50-ADBB-25AE105AEE88/2565/Relatório.pdf>

RAMIREZ, Francisco O. World society and the university as formal organization. Sisyphus, Lisboa, v. 1, n. 1, p. 125-153, 2013.

Nota


[i]Texto que serviu de base à intervenção realizada nos Estados Gerais da Ciência e do Ensino Superior, Lisboa, 12 de novembro de 2022, e que retoma várias questões que têm sido objeto de análise em trabalhos publicados pelo autor: Patterns of institutional management: Democratisation, autonomy and the managerialist cannon. In Guy Neave & Alberto Amaral (Eds.), Higher Education in Portugal 1974-2009. A Nation, a Generation (pp. 287-308). Dordrecht: Springer, 2012; Universidade Gestionária: hibridismo institucional e adaptação ao ambiente competitivo. In Vera Jacob Chaves, João dos Reis Silva Junior, Afrânio Mendes Catani (Orgs.), A Universidade Brasileira e o PNE: instrumentalização e mercantilização educacionais (pp. 59-84). São Paulo: Xamã, 2013; A ‘melhor ciência’: o académico-empreendedor e a produção de conhecimento economicamente relevante. In Afrânio Mendes Catani & João Ferreira de Oliveira (Orgs.), Educação Superior e Produção de Conhecimento: utilitarismo, internacionalização e novo contrato social (pp. 11-34). Campinas: Mercado de Letras, 2015.


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