Por ANSELMO PESSOA NETO*
Comentário sobre a exposição “céus e nós”, de Elyeser Szturm
A grande área dos estudos humanos e não, vejam bem, as ditas “ciências” humanas, podem ser definidas, em última análise, pela repetição, pela constância passageira, pela falsa inovação e, principalmente, pela invenção e uso de novas terminologias para dizer o já dito.
Uma dessas questões que batem e rebatem é uma pergunta formulada mais ou menos assim: o autor explica a obra? A mesma pergunta pode vir invertida (já é uma relativa inovação): a obra explica o autor? Ou novidade novidadeira: o autor existe? A ironia dessa última formulação é que nenhum autor “morto”, enquanto vivo, deixou de correr atrás do dinheiro que sua obra, por ventura, tenha rendido. Nem quem “matou” o autor o fez!
Acredito que quem conhece Elyeser sai convencido de que ele explica sua obra ou, pelo menos, aquilo que nela é legível, hoje. Pode parecer estranho, mas ele fala pouco sobre seu o trabalho. E fala muito sobre qualquer outra coisa! E é aí que está a chave para conhecer “céus e nós” a partir do Autor. Elyeser fala de tudo e de todos, com propriedade. Suas casas, apartamento na cidade e ateliê na roça, são verdadeiras bibliotecas. Livros e livros e mais livros. Discos e discos e mais discos (no formato CD). Filmes e filmes e filmes (nas nuvens e nas salas). Vinhos e vinhos e vinhos (com os amigos). Adora uma boa conversação, com gente que leu muitos livros e com gente simples, da terra, da roça. Adaptou ou retomou a nossa língua caipira regional, o goianês. Fala sem rebuscamentos com uns e outros.
Taí a obra do Elyeser: são produtos feitos com terra, pés e mãos no chão, nos nós! Cabeça e olhos nos céus, nos livros. Cabeça e olhos na terra, nas pessoas. Uma viagem só. Isto é, uma viagem só e, ao mesmo tempo, com os seus livros, as suas músicas, os seus amigos, as suas conversações. A sua terra. Pés e cabeça que andaram/andam pelo mundo, de um jeito ou de outro, ou de um jeito e de outro! Que andaram/andam pelo Sertão. Paris/Sertão, sempre igual a ele mesmo, que muda sendo. Sertanejo, eis a primeira definição certeira.
Ele gosta disso:“Céus e céu em azul, ao deusdar. O senhor vá ver, em Goiás, como no mundo cabe mundo” (Grande Sertão: Veredas).
E disso:“As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis. Elas desejam ser olhadas de azul” (Manoel de Barros).
Mas gosta também de um lugar fixado no espaço, de um bem material terreno. Escrevi essa frase e, ao escrever, já fui percebendo o quanto as palavras são limitadas em seus sentidos primeiros! Dizer que a Cappella degli Scrovegni, em Pádua, está fixada no espaço (e está), que é um bem material terreno (e é), é uma contradição em termos. Uma contradição insolúvel, pois ao mesmo tempo que está lá, em Pádua, está em todo lugar. O seu (o céu) azul é universal e patrimônio da humanidade, o seu bem é intangível, pois de uma beleza que nenhuma palavra alcança.
O azul do Elyeser é o azul de Guimarães Rosa, é o azul de Manoel de Barros e é o azul de Giotto. É o azul do céu do Sertão, o mesmo que Giotto viu. E nós somos essas fagulhas mínimas, essas mínimas coisas diante da vastidão desse céu de Giotto, desse céu de Elyeser. Mas somos nós com nossos nós. Nossos nós podem alcançar o azul sublime dos céus e, ao mesmo tempo, o chão agreste do Sertão. Elyeser nos deixa ver essas duas dimensões do mesmo, do uno diverso. Mas, ao mesmo tempo, pela fresta, os nós. Nossa pequenez diante do tudo. A mesquinharia do mundo que não está nele, mas está em nós.
E poderia parar aí, mas a obra de Elyeserpede para não: ela nos solicita para esse sublime. A condição é desatar os nós ou, pelo menos, entender os nós. Crescer para o céu, crescer no Sertão. Giotto/Sertão. Elyeser/Sertão. E o céu sobre nós.
*Anselmo Pessoa Neto é professor de litaratura italiana na UFG. Autor, entre outros livros, de Paisagens do neorrealismo (UFG).
Texto de apresentação da exposição do Elyeser Szturm, céus e nós, no Centro Cultural UFG, em março de 2018.
Referência
Vídeo da exposição: https://www.youtube.com/watch?v=jXzdCNImuo4&t=21s