Tchutchuca: ontologia e faniquito

Imagem: Thiago Kai
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por EUGÊNIO BUCCI*

Foi em nome do mesmo preconceito que veio o faniquito do presidente

Na manhã de quinta-feira passada, um jovem ativista digital de direita, Wilker Leão, foi até a portaria do Palácio da Alvorada e xingou o presidente da República de “Tchutchuca do Centrão”. (A rima em “ão” não há de ser em vão.) O que veio na sequência foi uma arruaça lastimável, que todo mundo já viu no celular ou nos telejornais.

O presidente saía de sua residência para o expediente diário. O provocador, que se define nas redes como um “adepto do militarismo”, gritava repetidamente a palavra esdrúxula, tentando se aproximar do carro oficial do chefe de Estado. De celular em punho, filmava tudo. No muque, os seguranças procuravam contê-lo.

Enquanto transcorria o empurra-empurra, o governante ouviu a alcunha que lhe dirigiam e se irritou. Mandou parar o automóvel, saiu furibundo pela porta de trás e avançou na direção de Wilker Leão. Com uma das mãos, tentou agarrar o moço pelos colarinhos, mas não havia colarinho nenhum – a vítima vestia uma reles camiseta do São Paulo Futebol Clube, em cuja gola a iracunda autoridade fechou os dedos. Com a outra mão, o mandatário buscava arrancar o celular do são-paulino, intento no qual fracassou.

Não foi difícil de perceber que o governante estava possesso. Depois de contidos os ânimos de um e outro, é verdade, os dois até trocaram palavras duras entre si, sem se estapear, mas, naquele primeiro ato, quando irrompeu do veículo em estado colérico, o homem deu um chilique histórico.

Por que será? Já o chamaram de negacionista, de fascista, de genocida e ele apenas faz cara feia e resmunga, quando muito. Desta vez foi diferente. Por que um estrilo tão desmedido? De que modo podemos entender as fontes pulsionais de tamanho siricutico presidencial?

Essas perguntas nos conduzem necessariamente a uma reflexão acerca da essência do ente misterioso que responde pelo nome de – você já sabe – “tchutchuca”. O que define esse estranho ser? Em outras palavras, qual a sua natureza ôntica?

Na cultura funk, em que o termo se fixou para depois se popularizar, o ente foi consagrado por um hit, lançado há anos pelo grupo carioca denominado Bonde do Tigrão. A letra tem um jeito nada sublime de traduzir a afeição do poeta por sua musa: “Vem, vem, tchutchuca / Vem aqui pro seu tigrão / Vou te jogar na cama / E te dar muita pressão”.

(Não, a rima em “ão” não há de ser em vão.) Tangendo sua lira de pancadão, o menestrel diz, então, que quer “um rala quente” e pede à sua amada que escute o “refrão”.

Já se falou bastante sobre o caráter onomatopaico do substantivo em questão. Sua sonoridade, sua prosódia, evoca o verbo “chuchar”, que é onomatopeia pura, sugerindo que o amor dos corpos é como um cilindro que suga um pistão. (Agora, a rima virá em profusão.)

Essa metáfora mecânica de motor a combustão faz uma espécie de exaltação de uma forma de dominação que o macho exerce ao dar “pressão”, certo de que a mulher, tomada de paixão, sente prazer na servidão. O nome do macho é “tigrão”.

A “tchutchuca”, por definição, se deleita na submissão. Sua feminilidade reside na plena concessão, na aceitação, na passividade com sofreguidão, na objetificação sem restrição. Vai daí que o presidente aceitaria ser xingado de tudo, mas disso, não. Disso, nunca. Para piorar sua situação, a ofensa lhe soou ainda mais grave quando ele ouviu o complemento: “do Centrão”. Aí não.

Nesse ponto, é preciso ter em conta o peso insuportável do aumentativo masculino, em “ão”, para conferir um signo de hombridade ao que quer que seja. Especialmente na política. O Partido Comunista Brasileiro, por exemplo, o velho PCB, começou a ser chamado lá pelas tantas de “Partidão”. O apelido o tornou mais másculo, mais irrecorrível.

O mesmo princípio linguístico valeu para a corrupção: um mensalinho seria suportável, mais ou menos como um chopinho, um torresminho – não um mensalão. Tendo sido chamado de mensalão, pelo simples sufixo, o episódio adquiriu algo de tenebroso, de apocalíptico, de escandalosão. Em matéria de perversidade, ou de perversão, perdeu apenas para o petrolão.

Para pesadelo do inquilino do Alvorada, o Centrão se chama Centrão, de modo retumbante, feito maldição, e, neste namoro, o dele com o Centrão, o papel que lhe cabe não é bem o de Tigrão. Haja danação.

Com isso, chegamos ao final da nossa brevíssima investigação ontológica. Resulta mais do que evidente que o xingamento dirigido ao sujeito que passava no automóvel é, antes de uma ofensa a ele, uma ofensa à condição feminina. A carga semântica do substantivo que deu título a este modesto artigo já traz, sem que se diga mais nada, um preconceito atávico de todo tamanho, um preconceitão: mulher é um ser subalterno, heterônomo, que se derrete ao sentir a pressão do machão.

Pois foi em nome do mesmo preconceito que veio o faniquito, como se o tal se pusesse em brios: “O quê? Você está me xingando de mulher? Vem cá, seu bestalhão!” Nesse instante mágico, a extrema-direita caiu na armadilha da extrema-direita. De supetão. Que serviço Wilker Leão prestou para a nação.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de A superindústria do imaginário (Autêntica).

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.

 

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Luiz Carlos Bresser-Pereira Carla Teixeira Henri Acselrad Gilberto Maringoni Paulo Nogueira Batista Jr Boaventura de Sousa Santos Eliziário Andrade Marjorie C. Marona Leonardo Boff Jean Marc Von Der Weid Francisco de Oliveira Barros Júnior Henry Burnett Marcos Aurélio da Silva Marilia Pacheco Fiorillo Eugênio Trivinho Eleutério F. S. Prado Andrés del Río Ronald León Núñez Vladimir Safatle João Adolfo Hansen Francisco Fernandes Ladeira Milton Pinheiro Walnice Nogueira Galvão Priscila Figueiredo Fernão Pessoa Ramos Ladislau Dowbor Marcus Ianoni Alexandre de Freitas Barbosa Chico Alencar Airton Paschoa Denilson Cordeiro Julian Rodrigues Rubens Pinto Lyra Antonio Martins Luis Felipe Miguel Matheus Silveira de Souza Rodrigo de Faria João Paulo Ayub Fonseca Berenice Bento Caio Bugiato Salem Nasser Lucas Fiaschetti Estevez Paulo Sérgio Pinheiro José Micaelson Lacerda Morais Eugênio Bucci Plínio de Arruda Sampaio Jr. João Carlos Loebens Lincoln Secco Carlos Tautz Antonino Infranca Daniel Costa Afrânio Catani Thomas Piketty José Costa Júnior Andrew Korybko Gilberto Lopes João Feres Júnior José Dirceu Luiz Bernardo Pericás Claudio Katz Liszt Vieira Vinício Carrilho Martinez Alysson Leandro Mascaro Bruno Machado Paulo Fernandes Silveira Manuel Domingos Neto Samuel Kilsztajn Vanderlei Tenório Bruno Fabricio Alcebino da Silva Tales Ab'Sáber José Geraldo Couto Leonardo Avritzer Tarso Genro Sergio Amadeu da Silveira Sandra Bitencourt Ronaldo Tadeu de Souza João Carlos Salles Michel Goulart da Silva Luiz Roberto Alves José Raimundo Trindade José Machado Moita Neto Luís Fernando Vitagliano Daniel Afonso da Silva Maria Rita Kehl Otaviano Helene Ricardo Antunes Jorge Branco Marcelo Módolo Lorenzo Vitral Osvaldo Coggiola Marilena Chauí Ari Marcelo Solon Rafael R. Ioris Luiz Renato Martins Tadeu Valadares Fábio Konder Comparato Slavoj Žižek Eleonora Albano João Sette Whitaker Ferreira Armando Boito Fernando Nogueira da Costa Ricardo Musse Alexandre Aragão de Albuquerque Igor Felippe Santos Benicio Viero Schmidt Daniel Brazil Luiz Werneck Vianna Celso Frederico Michael Löwy Dennis Oliveira Remy José Fontana Eduardo Borges Mariarosaria Fabris Marcos Silva Juarez Guimarães Bernardo Ricupero Dênis de Moraes André Márcio Neves Soares Annateresa Fabris Heraldo Campos Leda Maria Paulani Ricardo Abramovay Kátia Gerab Baggio Jean Pierre Chauvin André Singer Luiz Eduardo Soares Elias Jabbour Luiz Marques Leonardo Sacramento Jorge Luiz Souto Maior Ronald Rocha Flávio R. Kothe Renato Dagnino Michael Roberts Manchetômetro Valerio Arcary Érico Andrade Mário Maestri Anselm Jappe Paulo Capel Narvai Yuri Martins-Fontes Gerson Almeida Everaldo de Oliveira Andrade Paulo Martins Valerio Arcary Celso Favaretto Antônio Sales Rios Neto Alexandre de Lima Castro Tranjan Chico Whitaker Francisco Pereira de Farias Flávio Aguiar José Luís Fiori Luciano Nascimento Marcelo Guimarães Lima Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Bento Prado Jr. Atilio A. Boron João Lanari Bo Gabriel Cohn Ricardo Fabbrini

NOVAS PUBLICAÇÕES