Erick Satie e João Donato

Paulo Pasta, Sem título, 2022, Óleo sobre tela, 160 x 120 cm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

Paralelos entre dois poetas da síntese musical

O título desse artigo poderia ser João Satie, ou Erick Donato. A proposta desse artigo – e qualquer artigo é apenas uma proposta jogada no tabuleiro das ideias, não uma sentença – traçar um paralelo entre duas figuras seminais da música do século XX, cada qual no seu contexto.

Erick Satie é considerado um dos precursores do minimalismo musical. Nascido na Normandia em 1866, mudou-se para Paris em 1878, e entrou no Conservatório de Paris, onde foi considerado medíocre. Pra sobreviver, virou pianista de um cabaré, o famoso Chat Noir. Flertou com o ragtime, precursor do jazz. Conviveu com grandes nomes do cenário artístico, e sua personalidade original cativou pessoas como Picasso, Debussy (que orquestrou peças suas), Ravel e Cocteau.

João Donato, nascido no Acre em 1934, nasceu em família musical, e começou tocando acordeon. Foi com a família para o Rio de Janeiro em 1945, e passou a frequentar o restrito circuito musical alternativo da época, então dominada pelo samba-canção. Flertou com o jazz, sucessor do ragtime, aproximou-se dos músicos e compositores da Bossa Nova, sem nunca aderir totalmente ao estilo. Seu coração amazônico estava mais próximo do Caribe que dos apartamentos de Ipanema, e isso se refletiu em sua produção musical.

Erick Satie teve um grande amor na vida, Suzanne Valadon, uma artista plástica que ficou mais conhecida por ter sido modelo de Degas e Renoir, mestres do impressionismo. João Donato teve vários amores, mas nenhum como Leila, a quem dedicou várias composições, chamadas Leilíadas. Nos anos 90, João Donato ficou quase 20 anos sem gravar. Erick Satie, voltou a estudar música com quase quarenta anos, depois de ficar 15 anos sem compor. É o que diz a lenda…

O que há em comum nas criações desses homens extraordinários? A extraordinária capacidade de síntese, de decantação de ideias musicais. Com poucas notas e harmonias aparentemente simples, conseguem criar atmosferas absolutamente originais. Um mais melancólico, lunar, outro totalmente solar, porém atentos ao mundo musical cambiante em que viveram. Sem seguir correntes, avessos aos modismos, criaram caminhos onde absorveram e moldaram de forma pessoal as formas musicais que conduziam ao caminho da cristalização de uma ideia: haikais musicais, células melódicas e rítmicas que se tornaram paradigmáticas, e que em poucos compassos explicitam um clima.

Ambos foram considerados malucos. Conta-se que Erick Satie um dia chamou o amigo Debussy para ouvir um novo acorde que havia descoberto, e Claude Debussy tinha de ajudá-lo (ou dissuadi-lo) a empurrar o piano pela janela do segundo andar. O último disco de Donato tem na capa a fotografia dele com o amigo Macalé, pelados.

Ambos deixaram obras inesquecíveis, que reconhecemos ao ouvir as primeiras notas. Enquanto o francês refletiu um clima de melancolia e solidão em suas pequenas esculturas musicais, o brasileiro nasceu para bailar. Tocou com músicos de várias gerações, morou nos EUA, acompanhou cantoras notáveis, escreveu inúmeros móbiles musicais cujo encanto se renova a cada audição.

Que sorte podermos fruir a arte desses malucos adoráveis!

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance  Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES