Por ADRIÁN SOTELO VALENCIA*
Prefácio do livro recém-lançado de Marcela Soares
O presente livro se situa no locus da teoria marxista da dependência (TMD) e analisa o problema da escravidão contemporânea na especificidade da formação econômico-social capitalista dependente-subdesenvolvida brasileira, no contexto da divisão sociossexual e étnico-racial do trabalho no capitalismo mundial em crise e decadência.
Teoricamente, este livro se inscreve nos debates celebrados durante os anos 1970 na América Latina, quando se registrou uma acalorada e criativa polêmica teórica, política, acadêmica e ideológica sobre a natureza de nossas sociedades, tanto em termos históricos quanto contemporâneos. Tema abordado no capítulo 2 deste livro, a partir de uma visão renovada sobre a relação entre o modo de produção, a formação econômica-social e a dependência que estrutura o tema da escravidão no Brasil atual.
Deste modo, no capítulo I, “Escravidão contemporânea no Brasil”, a autora destaca as principais formas contemporâneas da escravidão atual no Brasil. Desde trabalhos forçados, jornadas exaustivas de trabalho impostas pelos patrões, trabalho degradante – que a autora considera uma “expressão da condição fundante da mercantilização da força de trabalho, em nosso país, como produto da passagem da escravidão colonial ao capitalismo dependente…” (p. 43) – o impedimento da livre mobilidade, a servidão forçada pelo endividamento e até os imigrantes que se veem forçados a trabalhar em condições ilegais, clandestinas e inumanas.
Assinala ainda que, no Brasil, dos resgatados de condições de escravidão 94,7% são homens, enquanto as mulheres correspondem apenas a 5,2%, e que o maior número de resgates de trabalhadores e trabalhadoras escravizadas corresponde ao setor rural e ao estado do Pará. A exceção é São Paulo, onde a proporção de homens e mulheres resgatados é de 81,6% e 18,3%, respectivamente.
No capítulo II, “Da escravidão à superexploração, componentes histórico-estruturais da força de trabalho”, resulta de enorme importância o estreito vínculo que a autora realiza entre escravidão, capitalismo e dependência, superando os enfoques dualistas e “feudalizantes” próprios da sociologia funcionalista norte-eurocentrista, que “atribuem” a escravidão contemporânea – assim como o subdesenvolvimento e o atraso estrutural – a um “resquício do passado” que pode ser “superado” conforme se desenvolve o capitalismo, na melhor tradição das teorias burguesas do desenvolvimento que emergiram depois da mal chamada Segunda Guerra Mundial e que, na América Latina, foi recuperada pela Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) nas figuras de Prebisch, Furtado ou Pinto, por exemplo.
Recuperando as sentenças da “modernização do arcaico” e da “arcaização do moderno” de Florestan Fernandes, a autora situa corretamente a escravidão no Brasil contemporâneo como uma categoria complementar da superexploração da força de trabalho que é o eixo do ciclo do capital na economia dependente e que, longe de serem superados conforme se desenvolve o capitalismo – em função da industrialização e do desenvolvimento do mais-valor relativo – a autora enfatiza que, pelo contrário, permanecem como os “determinantes particulares do capitalismo dependente” (p. 80).
A conclusão do capítulo é eloquente: da mesma forma que a dependência, o atraso e o subdesenvolvimento históricos não podem ser superados dentro dos limites do capitalismo. Para a escravidão contemporânea – que é histórico-estrutural e que afeta a milhões de seres humanos – ser erradicada definitivamente da formação capitalista social brasileira, é condição sine qua non superar o próprio capitalismo.
O capítulo III, “A persistência de formas contemporâneas de escravização no Brasil”, resulta altamente sugestivo, ao demonstrar como a flexibilização da legislação trabalhista e a legalização da subcontratação ou terceirização, concomitantes à precarização monumental do mundo de trabalho brasileiro, não fez outra coisa senão ampliar e intensificar a escravidão contemporânea, “fruto de um processo histórico de permanência de formas transitórias ou híbridas de exploração da força de trabalho, como também acentuada pelos elementos dinâmico-conjunturais que marcam a fase contemporânea do capitalismo” (p. 110). Contrariando as versões oficiais e patronais que pontificam que apenas com reformas trabalhistas estruturais de signo neoliberal é possível “melhorar” as condições de vida e trabalho da maioria dos setores populares do Brasil.
Sobre o fundo da crise capitalista e do acirramento do neoliberalismo ao longo da década de 1990, as políticas patronais e estatais contra as classes trabalhadoras e o proletariado se impuseram através da reestruturação macroeconômica e as políticas antissociais de flexibilização, precarização, desregulação e superexploração do trabalho para neutralizar a crise e a queda da taxa de lucro do grande capital nacional e internacional no Brasil. A isso ajudou o aumento do desemprego, os arrochos salariais e a expansão da pobreza. Essas políticas antioperárias, pró-patronais e fascistas, nos diz a autora, incidiram, além do autoemprego, da informalidade e da subcontratação, no “aumento dos casos de trabalho escravizado contemporâneo” (p. 109), conceito adotado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) no ano de 2013 (p. 186), entendido como “tráfico de pessoas”, sendo que antes só se falava em “trabalho forçado”, que, efetivamente, não é o mesmo.
Se com os governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016) persistiram as condições estruturais do trabalho escravizado e da continuidade das políticas neoliberais de “conciliação de classes” do PSDB (p. 184), nos sucessivos regimes de ultradireita, de Michel Temer e Jair Bolsonaro, estas condições não fizeram mais que se expandir e agudizar na lógica da acumulação e valorização do capital; da precarização do trabalho, da subcontratação e superexploração da força de trabalho que, simultaneamente, serviram como plataformas para estender a escravidão capitalista. Esta é concebida pela autora (p. 145) como uma forma estrutural da superexploração, rompendo, assim, com as visões que a consideram como um remanescente do passado, e identificando-a corretamente como um mecanismo que opera dentro do ciclo do capital na economia dependente do Brasil contemporâneo.
Lucidamente, a autora distingue a situação da escravidão colonial (escravismo pleno) daquela que opera no capitalismo dependente caracterizado pela venda de força de trabalho como mercadoria (p. 151), que não implica na venda da pessoa em si como ocorria no passado e que “não significa, dessa forma, uma linha de continuidade da escravidão colonial ao capitalismo dependente” (p. 151). Pelo que a escravidão atual – igualmente à categoria de dependência – deve ser situada nas condições históricas onde se constitui, se desdobra e se desenvolve. Deste modo, nos diz Soares: “…em nossa análise, apreende-se a escravidão contemporânea como uma variação da utilização do trabalho assalariado, derivada tanto de como se constituiu a força de trabalho no Brasil e como consequência dos [seus] elementos dinâmico-conjunturais…” (p. 186).
Esta distinção dentre escravidão colonial e “escravidão dependente capitalista” resulta de enorme importância para romper e superar, tanto na ideologia como nas ciências sociais, as visões unidimensionais do dualismo estrutural que divide as sociedades latino-americanas e, em geral, subdesenvolvidas, em compartimentos estanques que só se “conectam” através das metrópoles imperialistas.
Tendo como cenário de fundo o processo histórico das grandes revoluções burguesas, como a norte-americana e as ocorridas na Europa Ocidental nos séculos XVIII e XIX, no capítulo IV, “Uma antítese à escravidão contemporânea”, a autora analisa os direitos humanos e o conceito de “trabalho decente” cunhado pela OIT em 1999 – dentro dos limites impostos a essa “instituição tripartite” pelo “capitalismo humano e sustentável” e o pretendido “neoliberalismo progressista” (p. 218) pregado por ela – para articulá-los com a problemática da escravidão contemporânea, em particular, a brasileira.
Dentro dos limites do capitalismo, e sem excedê-los, esse organismo internacional se apoia nesse conceito para, supostamente, “superar” a precariedade do trabalho – que é congênita a este sistema na medida em que rouba do trabalhador parte da riqueza produzida por ele baixo a forma de mais-valor, apropriada gratuitamente pelo capital – e a superexploração do trabalho, que é constitutiva das formações capitalistas dependentes e operativa no âmbito dos países capitalistas industrializados.
Deste modo, afirma a autora: “Estamos numa jornada de grandes perdas de direitos e aqui destacamos os trabalhistas, que podem objetivar um padrão hegemônico de naturalização das formas de exploração do trabalho escravizado contemporâneo, conforme o artigo 149 do Código Penal Brasileiro. E assim, inviabilizar o trabalho digno e a concretização dos direitos humanos. Portanto, faz-se indispensável o resgate da análise dos fundamentos da sociabilidade capitalista, assim como da particularidade brasileira, para a apreensão dos limites emancipatórios do capitalismo no cenário atual de crise estrutural” (p. 214).
Como alternativa antissistêmica à escravidão contemporânea, às brutais e massivas condições de precarização do mundo do trabalho e da superexploração, a autora é contundente: o denominado “trabalho decente” promovido pela OIT e as políticas de direitos humanos de organismos como a Organização das Nações Unidas (ONU) – ambos enquadrados no modo de produção capitalista – são completamente incapazes de erradicar o trabalho escravizado no Brasil e no mundo. Pelo contrário: “a prática histórico-social tem apresentado que a superexploração avança para além das periferias do mundo e que a condição antes restrita a migrantes, em situação irregular, torna-se o ‘lugar comum’ para o conjunto da força de trabalho dos Estados nacionais também das economias hegemônicas” (p. 223).
Como conclusão deste interessante livro, brota naturalmente a imperativa necessidade de superar e erradicar da face da terra o capitalismo como modo irracional de vida, de trabalho, de destruição da natureza e de degradação humana, social e espiritual, e instaurar um novo modo de produção e de formação social de acordo com os interesses majoritários da vida, do trabalho e da sobrevivência da grande maioria dos trabalhadores e da humanidade.
A este respeito, sentencia a autora que: “Dar ênfase à divisão social, sexual e étnico-racial do trabalho e realizar o percurso de desmistificar as contradições intrínsecas do capitalismo, que são necessariamente exacerbadas nas economias dependentes, garante a apreensão de que uma verdadeira antítese à escravidão contemporânea se apresenta com a construção de uma nova necessidade social, estabelecida por uma nova organização produtiva socializada e comunitária” (p. 224).
Sugestivo, original e altamente crítico, este livro deve ser colocado nas prateleiras das bibliotecas e espaços institucionais para sua indispensável leitura por estudantes, acadêmicos e público em geral, difundindo-o através dos meios de comunicação, das redes sociais e da ampla discussão coletiva.
*Adrián Sotelo Valencia, sociólogo, é pesquisador do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM).
Tradução: Vitor Bertizzolo Janot Mattos.
Referência
Marcela Soares. Escravidão e dependência: opressões e superexploração da força de trabalho brasileira. Marília, Lutas anticapital, 2022, 354 págs.
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