Por PAULO GHIRALDELLI*
A aprovação popular da violência expõe menos a vontade da democracia e mais a falência da República, onde a sede por ações espetaculosas supera a demanda por instituições que funcionem
1.
Diante da operação policial no Rio de Janeiro, Eugênio Bucci, em artigo postado no site A Terra é Redonda, considerou que a democracia se esvaiu. Para ele, como para mim, é inaceitável aquela matança. Todavia, o que dizem os jornais e suas pesquisas? Simples: estamparam durante três dias variações da seguinte manchete: maioria da população apoia a operação levada adiante pelo governador Cláudio Castro.
Então, se a maioria aprova e se a democracia é “governo do povo”, eis que aí estamos em um dilema: o povo tem em seu governante eleito o que ela acha correto e deseja. A direita e sua gana de fazer chacina em favela é o povo! Eis que o povo em peso esmaga Eugênio Bucci. Lá vou eu junto com o meu amigo.
Deveríamos olhar a diferença entre república e democracia. “Governo do povo”, mesmo sendo expressão selvagem, tem a ver com democracia. Sabemos disso, que o básico na democracia é não deixar a vontade popular à mingua. Mas a república tem a ver com as instituições, ela é o povo na sua incorporação de suas vontades que se expressam pelos eleitos, mas na sua vontade de se enxergar na “coisa pública”.
Quando pensamos em democracia, lembramos dos gregos, quando pensamos na república, lembramos dos romanos. Os primeiros seguindo a ideia de assembleias deliberativas, os segundos guardando o senado, o exército etc. Quando enfiamos no meio da discussão sobre democracia também a palavra república, percebemos a falácia da imprensa: não basta ouvir o povo, é preciso ver o funcionamento das instituições.
No caso do Rio de Janeiro sob Cláudio Castro, as instituições não protegeram o povo, elas acabaram por deixá-lo sem opções. Houve um desencaminhamento das instituições que devem manter a continuidade da vida civilizada urbana.
Fazendo assim, tendo a democracia, mas não só ela, sob olhar, somos então conduzidos para a necessidade de uma maior atenção nesse “ouvir o povo”, “ver o que o povo quer” etc. Sempre quando o povo de manifesta em pesquisas de opinião, antes de tudo precisamos saber como que se colocaram as perguntas.
2.
Vejamos as pesquisas. Para não me tornar enfadonho com números, abordo apenas um problema. Os jornais apresentaram um índice de mais de 70% favorável às mudanças de nome, ou seja, tratar o “crime organizado” ou “facções criminosas” como “grupos terroristas”. Isso é o que foi mostrado nas manchetes.
Ora, essas aferições secas, sem que se saiba se os que respondem estão com algum conhecimento do que escolhem no âmbito retórico, estamos mais nos confundindo do que nos esclarecendo. O termo “terrorismo” é forte. Em uma situação de desespero, por que optar por aquilo que já é o vigente e, enfim, começa a dar sinais de que é eufemismo.
Ora, vamos mudar de nome então, não custa nada qualificar os traficantes como agentes do terror. Não são políticos, não possuem causa, mas, enfim, isso é deixado de lado e eis que o crime, uma vez organizado, passa a ganhar novo status: “terrorismo”. Por que alguém, respondendo pesquisa popular, iria se dar ao luxo de saber o que é e o que não é terrorismo?
Não é só isso. Há mais! No meio das matérias jornalísticas que mostraram pesquisas, lá pelo final, também há a informação de que o nome dado pelo ministro Ricardo Lewandowski, da pasta da Justiça, para o que precisa ser criado pelo governo, é “Escritório Emergencial de Combate ao Crime Organizado”. Ora, todo mundo gostou do nome. Então, a própria criação do escritório é o elemento de maior aplauso da população: 94% de aprovação. Nada que Cláudio Castro propôs ou fez teve esse índice de aprovação.
O que se pode tirar disso? Simples: a iniciativa do governo federal é bem mais aplaudida que a de Cláudio Castro, e o que a população quer é ver alguma instituição agindo contra aquilo que lhe afeta de modo ruim. Se ninguém faz nada, e Cláudio Castro mata, então ótimo. Se Cláudio Castro mata, mas o governo, que não quer mortes sem prisão e julgamento, reclama e cria uma instituição, então, melhor ainda.
O que está em jogo é, portanto, o que se faz com a república, o que se faz com as instituições que devem favorecer a continuidade do país. A democracia aqui, não deve ser um nome que atropela a república.
Muitos acham que isso termina em disputas de narrativas. Ora, se é assim, apesar de parecer o contrário, apesar da mídia forçar o contrário, é o governo quem está ganhando. As eleições não são hoje. Volto a dizer, não é o voto e a democracia que estão em disputa agora, mas como que a república vai funcionar ou não. Então, se a questão é sobre o plantio e não sobre a colheita, todo o assunto não se encerra em retórica, em de disputas de narrativas.
O que está em jogo é como que o Escritório Emergencial de Combate ao Crime Organizado de Ricardo Lewandowski, proposto pelo presidente Lula, vai funcionar ou não. O assunto não é o de agora, mas o dos próximos dias, ou meses.
3.
O governo sabe o que tem que fazer. Afinal, quem não sabe? Só a direita não sabe. Há de se agir com inteligência estratégica, com o controle de informações. Faz-se necessário munir o Coaf, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras, com mais funcionários, pois ele é parte do alimento para a saída de investigações feitas pela polícia. Também a integração entre as polícias federais e estaduais é prioridade.
A vida carcerária é outro problema, pois se ela não melhora as facções sempre contam com poder para o recrutamento forçado. Além disso, não é possível mais não levar a sério o que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem dito nas redes sociais esses dias: chefe de facção nunca pisou em favela, e é mais fácil ele estar em Miami, na praia. Chefe pé-chinelo toda esquina tem.
A luta política do governo e das instâncias que defendem que o Brasil seja uma sociedade civilizada é a de fazer tudo isso passar no Congresso, pela PEC da Segurança. Ora, sabemos bem que a direita vai estar lá, de orelha em pé, para esvaziar a proposta do governo. Não vão barrar, mas vão tentar modificar a proposta para descaracterizá-la. Pois a direita quer que o combate ao crime se reduza às matanças em favela, ela não pode admitir que se combata o crime pelo “siga o dinheiro”. Isso pode complicar os ricos.
A questão não é, portanto, o gosto da direita pelo espetáculo do sangue. Pois muita coisa que não produz sangue também é espetáculo. Uma nação se cria por narrativas sobre si mesma. São novelas, folhetins, que produzem reconhecimento, identidade e entretenimento. Muitas histórias em que não há sangue são lidas pela população, são ouvidas e queridas.
O importante é a trama. A população adora acompanhar. Pois a população que curte as páginas policiais também gosta das novelas sobre compra e venda de jogador de futebol, que, aliás, é algo completamente monótono. Então, vale a trama, o enredo, o quanto se enreda o leitor ou ouvinte. O que vale é ter o capítulo seguinte nas mãos. Acompanhar a trama é tudo que a população quer.
O governo pode começar a contar as histórias do trâmite da PEC e, em seguida, as histórias que deram certo no combate ao crime, sem que se precisasse romper com padrões civilizacionais. Lula, ele próprio, tem de manter a trama acontecendo. O Escritório Emergencial de Combate ao Crime Organizado vai ter de promover ações como a que ocorrem em São Paulo, de ação conjunta com o ministério da Fazenda, e é pelo próprio Lula que isso tem que ser contado.
Lula é especialista em contar histórias. Ele vai ser o personagem, o diretor e o narrador. Não há outro no governo para fazer isso. A população vai gostar muito mais desse tipo de história que o da explosão de sangue. Castro cantando em igreja? Ora, duas falas de Lula contando uma narrativa de caça a bandidos ricos e Castro voltará a ser o que era: nada.
*Paulo Ghiraldelli é filósofo, youtuber e escritor. Autor, entre outros livros, de Capitalismo 4.0: sociedades e subjetividades (CEFA Editorial). [https://amzn.to/3HppANH]
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