Nelson Leirner

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Por ANNATERESA FABRIS*

Considerações sobre a trajetória do artista plástico

Conhecido como um apropriador contumaz de estatuetas fabricadas em série, sem nenhum requinte técnico, de objetos e imagens provenientes do repertório visual das religiões praticadas no Brasil, e de ícones da comunicação de massa, Nelson Leirner insere nesse universo personagens do cinema de animação, numa demonstração de sincretismo cultural e de contestação de categorias consolidadas.

Num primeiro momento, os personagens dos desenhos animados participam de instalações concebidas como agrupamentos de figuras heterogêneas, selecionadas para constituir um repertório feito de mitos religiosos, fantasias infantis, anjos, animais, que representam, segundo Agnaldo Farias, “nosso bestiário íntimo e arquetípico: uma miríade de encarnações maiores e menores […] dos nossos desejos mais cândidos e mais sórdidos; materializações fragmentadas (e talvez decaídas) daquilo que julgamos pertencer à parte invisível do mundo (à esfera da fantasia com que alimentamos nosso imaginário) ou mesmo da divindade”.

Começando com O grande desfile, apresentado no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1984), o artista cria um conjunto de objetos descontextualizados e destituídos de identidades fixas, que ganhará novos arranjos e novos títulos ao longo dos anos, sem perder o primitivo poder corrosivo e a capacidade de desconcertar o observador. O grande combate (Galeria Luísa Strina/São Paulo, 1985), O grande enterro (Pinacoteca do Estado/São Paulo, 1986), A grande missa (Paço das Artes/São Paulo, 1994), Terra à vista (Museu de Arte Contemporânea/Niterói, 1998), A grande parada (Bienal de Veneza, 1999), Adoração (Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães/Recife, 2002), O dia em que o Corinthians foi campeão (Instituto Tomie Ohtake/São Paulo, 2004) e O casamento (Museu Vale/Vila Velha, 2008) constituem novas etapas de um projeto no qual o artista introduz, a cada vez, mudanças com a seleção de novos personagens, a alteração do título e novas configurações espaciais.

Nos três primeiros agrupamentos, estatuetas malfeitas e grotescas de Branca de Neve e os sete anões e do Pato Donald convivem com imagens de São Jorge e Cristo, Iemanjás, sereias, Exus, Pombas-Giras, frades, querubins, cavalos alados, índios, romanos em bigas, Vênus, elefantes, girafas, leões, bois, zebras, dançarinas, mulheres nuas, soldadinhos, tanques de guerra, aviões, He-men, Sacis-Pererês, gatos, cachorros, aranhas, lagartixas e “pequenos artefatos de borracha que as mamães oferecem a seus bebês para que os mordam”. (Farias). Como salienta Fernanda Lopes, as reconfigurações não obedecem a nenhuma ideia de hierarquia: “elefantes podem estar em posição privilegiada à imagem de Cristo; Iemanjás podem ter mais destaque que São Jorge; e o He-man pode estar melhor colocado em relação à Vênus de Milo”.

A grande parada, por sua vez, mais do que quadruplica o projeto de 1984, sendo integrada por quase 2.500 peças. Branca de Neve e os sete anões e o Pato Donald convivem com símbolos católicos e de práticas de candomblé e macumba, objetos variados (carrinhos, pinguins de geladeira), cangaceiros a cavalo, Sacis-Pererês, Batmans e diversos animais.

Como lembra Lilia Schwarcz, o conjunto é arranjado num triângulo imponente, em cujo vértice figura a imagem de Cristo abençoando a todos. A frente do desfile é formada por malandros cariocas, carros de Batman e cavaleiros. O agrupamento apresenta “uma cosmologia invertida”, fruto da reunião “de cultura popular e oficial, de catolicismo combinado com manifestações afro”, lotando os olhos pelo “humor que desvela” e pelo princípio classificatório driblado e reorganizado ao mesmo tempo.

Diversas figuras de Mickey, Minnie e do Pato Donald, acompanhadas de corações de Jesus, Nossas Senhoras, anões de jardim, super-heróis, princesas, cangaceiros, dançarinas, índios, São Jorges, pinguins de geladeira, pombas-giras etc., são os convidados do Casamento de 2008, no qual os noivos são representados por dois manequins em tamanho natural, elegantemente vestidos e portando máscaras de macacos. O Pato Donald, Margarida, Mickey e um possível Bambi integram uma singular Romaria (1999), encabeçada por animais e finalizada por figuras de culto. Uma articulação não muito dessemelhante caracteriza Missamóvel (2000), disposta sobre um skate, na qual se distinguem as habituais estatuetas rudimentares de Donald, Pateta e de um Frajola de nariz preto.

Figuras de Mickey e Minnie, ao lado de anões de jardim, Batmans, santos, orixás e divindades, Virgens Marias, Iemanjás e um Cristo abençoante, constituem a torcida peculiar de Futebol (2000), concebido como um jogo impossível em virtude da multidão de figuras sagradas dispostas no gramado. Mais uma vez, Leirner dispensa qualquer concepção hierárquica, transformando todas as figuras em espectadoras de um evento marcado por uma “inversão de expectativas”, nos dizeres de Moacir dos Anjos. As imagens devocionais e as figuras retiradas do circuito da cultura de massa, que deveriam ser cultuadas, postam-se, ao contrário, “em posição de adoração ao desenrolar da partida de futebol”, gerando “um burburinho simbólico que evoca a conflituosa criação de consensos valorativos no mundo do esporte”.

Na série Assim é… se lhe parece (2003-2011), Leirner volta a lançar mão de personagens do cinema de animação: centenas de adesivos de Mickey, Minnie, do Pato Donald, de Piu Piu, dos dálmatas, de personagens de Maurício de Sousa (Mônica, Magali, Cascão, Cebolinha, Chico Bento, Rosinha, Zé da Roça), associados a caveiras, esqueletos, caras de Papai Noel, Barbies, macaquinhos, gatos, bandeiras brasileiras e norte-americanas, notas de dólar etc., são sobrepostos a mapas antigos e modernos e a globos terrestres de plástico, gerando uma cartografia singular, na qual Agnaldo Farias detecta a vontade de corroborar, “através de ilustrações literais, aquilo que já se sabe sobre a nova ordem mundial. Mickeys e Patos Donalds buliçosos recobrem a América do Norte e a Europa enquanto caveiras se espalham pela América Latina, África e uma substantiva parcela da Ásia”. Ao mesmo tempo em que se utiliza do “ativismo infantil de tomar posse das coisas, Nelson Leirner lança luz sobre a arbitrariedade dos discursos e as instâncias pelas quais a ideologia se faz presente”.

A equação, porém, não é tão simples, já que a série não permite uma leitura única. Se, numa de suas realizações datada de 2010, a sobreposição de adesivos de Mickey e Minnie ao continente americano poderia ser vista como uma demonstração de seu poder de penetração num imaginário global, outros exemplos ajudam a desmentir essa interpretação simplificada. É o caso de uma obra do mesmo ano, que mostra o mesmo espaço tomado por inúmeros esqueletos, e de dois trabalhos de 2003, caracterizados por fundos de cores diferentes: amarelo e vermelho. No primeiro, a América do Norte é literalmente tomada por um exército de esqueletos, enquanto a porção Sul está sob o domínio das duas figuras ficcionais.

No segundo, a disposição se inverte, deixando o espectador desnorteado com a súbita mudança de rota. Longe de buscar na série uma leitura unidimensional da organização da ordem mundial sob o regime capitalista, Leirner dá a impressão de querer propor ao observador uma geografia fantástica, feita de rupturas de expectativas e de jogos visuais que lhe permitem criar uma visão paradoxal e paródica da história. Ao apropriar-se de um discurso ideológico que se organiza em zonas de interesses políticos e econômicos, o artista propõe uma leitura enviesada da história oficial, na qual injeta um viés anarquista e uma troca de sinais com o objetivo de denunciar a dominação através da força do discurso dominante.

A reflexão de Lilia Moritz Schwarcz vem ao encontro dessa leitura, pois, a seu ver, a série pode ser analisada a partir de diversos pontos de vista. O geógrafo Leirner denuncia, de um lado, “a suprema globalização desse mundo que pasteuriza o diferente e faz tábula rasa das imagens e representações”. De outro, os mapas escancaram ainda mais sua natureza de representação, de “geografia simbólica, feita muito mais para impor diferenças – e naturalizá-las – do que para apenas dar veracidade a esse mundo”. A autora convida o leitor a mergulhar num exercício de imaginação: “Basta observar as numerosas caveiras que habitam esses atlas coloridos e brilhantes […]. Basta olhar, ainda, para onde estão dispostos as infinitas Hello Kitties ou os vários Mickey Mouses para saber que nada é exatamente aleatório. Pois eles trapaceiam nossas formas estabelecidas, e fazem rir do que é assentado”.

“O Pato Donald, Mickey e demais personagens da Disney, há tempos que representam e simbolizam o capitalismo e sua “suposta invasão”. No entanto, observados sob essa nova perspectiva, eles resultam totalmente deslocados. Ao invés de dominar, parecem dominados; colonizados. Na verdade, Nelson Leirner borra as fronteirais, mostrando sua artificialidade e, ao mesmo tempo, o lado lúdico e divertido das nossas convenções de espaço. […] Ainda mais: como cada atlas artístico é singular no trabalho que resulta, cada novo mapa-múndi surge profundamente variado e múltiplo. Tão vários como é nossa realidade atual, que prometeu a globalização mas entregou um universo humano feito de muitas faces e de uma miríade de respostas, desenhos e tribalizações. E são assim os mapas de Nelson Leirner, iguais no atacado, muito peculiares no varejo. Cada um é um só, sendo muitos”.

O artista parece ter um verdadeiro fascínio pelas figuras de Mickey e Minnie, pois as transforma em protagonistas de outras composições satíricas e corrosivas. Na série Cada cosa en su sitio (2012-2013), apropria-se de fotografias e fotogramas, nos quais intervém com adesivos e peças de acrílico colorido, para satirizar a cultura de consumo norte-americana. Algumas das imagens são bem conhecidas e a intervenção assume, nesses casos, um tom ainda mais mordaz, como comprova a aposição do rosto de Minnie no célebre fotograma de O pecado mora ao lado (The seven year itch, 1955), em que o vestido branco de Marilyn Monroe é levantado pelo jato de ar que sai do respiradouro do metrô.

Leirner retira da imagem a figura do vizinho e cria um balão com o contorno vazio preto de Mickey. Outra imagem famosa, Almoço no topo de um arranha-céu (Lunch atop a skyscraper, 1932), é transformada num jantar de gala sui generis: em lugar dos onze trabalhadores fotografados por Charles Ebbets no 69º andar do edifício RCA, o artista coloca os recortes negros do casal de camundongos, ladeados por dois garçons, cujos rostos consistem de moldes vazios de Mickey nas cores preta e vermelha. Imagem promocional do Rockefeller Center então em construção, a fotografia de Ebbets ganha um novo significado com a intervenção de Leirner, que faz dela um símbolo inequívoco do capitalismo e de seus ritos vazios.

Outras intervenções incluem o fotograma de um faroeste, a fotografia de uma moça em trajes íntimos, o flagrante de um casal em Woodstock e um retrato de grupo perto de um automóvel. No primeiro, o rosto de Mickey encima a figura de um vaqueiro, que dirige seus pensamentos à amada, um contorno da face de Minnie. Na segunda, o rosto feminino é substituído por um molde vermelho de Minnie pensando no namorado. Na imagem do casal, o rosto da figura masculina é coberto por um contorno de Mickey, enquanto a mulher usa uma máscara de Minnie. No retrato coletivo veem-se seis moldes negros de Mickey e um vermelho de Minnie. Com suas intervenções irônicas, o artista brasileiro desconstrói a ideia tradicional de retrato como portador de uma individualidade pessoal, substituindo-a pela de clichê e remetendo-a ao universo da comunicação de massa e a sua carga de indiferenciação.

Estatuetas de Minnie, Margarida, Mickey, Donald e Puca fazem parte da singular Estante de 2009 na companhia de livros dedicados a beldades, de uma gravura de Pablo Picasso e de bibelôs das mais diversas proveniências: suvenires de Mona Lisa (1503-1506) e de As meninas (1656), de Diego Velázquez, bonecos, cerâmicas orientais, brinquedos, estojos de pó de arroz etc. Em outras ocasiões, Leirner individualiza alguns ícones do cinema de animação, como comprovam Busto (Simpson) e Busto (Puca), datados de 2012, e o conjunto Paletó, realizado no mesmo ano.

Apesar da variação dos títulos, as obras são bastante parecidas; o que as diferencia é o tipo de casaco vestido pelas figuras e a cor da gravata. O uniforme policial dos Bustos perde os bolsos com as insígnias na série Paletó, mas a rigidez é uma característica comum a ambos; a gravata preta, por sua vez, é substituída por uma vermelha com bolinhas brancas. O rosto bravo de Puca integra os dois conjuntos; Marge Simpson cede lugar à filha Lisa; e um Frajola, de semblante perplexo, representa uma nova inserção em relação aos Bustos.

Com essas obras, Leirner deseja ironizar um tipo de escultura que surgiu associada ao culto dos mortos (Roma antiga) e dos santos (busto-relicário) para converter-se, posteriormente, na celebração de indivíduos importantes e de figuras dinásticas, como atestam os exemplos dos bustos dedicados a Niccolò de Uzzano (Donatello, c. 1433), Eleonora de Aragão (Francesco Laurana, c. 1468), Luís XIV (Gianlorenzo Bernini, 1665), Napoleão (Antonio Canova, c. 1804-1814), dentre outros.

Em meados do século XVIII, o busto é colocado a serviço da celebração de personalidades famosas, e um dos maiores escultores neoclássicos, Jean-Antoine Houdon, dedica-se a “preservar fielmente a forma e tornar imorredoura a imagem de homens que conseguiram a glória ou o bem para seu país”. Fiel a esse desígnio, Houdon imortaliza as figuras de filósofos (Denis Diderot, 1771; Jean-Jacques Rousseau, 1778; Voltaire, 1781), inventores (Benjamin Franklin, 1779; Robert Fulton, 1803- 1804) e políticos (George Washington, 1785-1788; Thomas Jefferson, 1789), além de Luís XVI (1790) e Napoleão (1806). Os personagens dos desenhos animados escolhidos pelo artista brasileiro ganham o status paródico de figuras a serem lembradas por seus feitos, embora provenham de uma família disfuncional (Simpson) ou não consigam alcançar seus objetivos (Frajola e Puca).

Mas não é apenas ao universo da comunicação de massa que Leirner dirige sua atenção no momento em que se apropria de ícones do cinema de animação. Sua operação é mais complexa já que, em diferentes ocasiões, utiliza personagens derivadas desse tipo de produção para fazer comentários críticos sobre o trânsito imagético na cultura contemporânea. Interessado em analisar como as imagens artísticas são reproduzidas e se multiplicam por meio do “museu imaginário” e que conexões de ideias elas são capazes de produzir, o artista ressignifica algumas obras emblemáticas por meio da substituição de suas figuras por ícones do desenho animado. Uma vez que o passado pertence à esfera da construção da memória, as imagens a serem ressignificadas podem provir de tempos históricos diversos, sem que isso crie problemas de ordem metodológica. Na manipulação do passado cabem tanto Marcel Duchamp quanto a arte do século XV, por exemplo.

Em Apollinaire (2008), Leirner retoma e modifica Apolinère esmaltado (Apolinère enameled), realizado por Duchamp em 1916-1917. Trata-se de uma citação de uma citação, pois o artista francês tinha se apropriado de um anúncio da tinta Sapolin, no qual introduziu diversas modificações a fim de propor uma alegoria do ready-made. A primeira alteração diz respeito à substituição de “Sapolin enamel” por “Apolinere enameled” graças à obliteração de algumas letras e ao acréscimo de outras com tinta preta. Em segundo lugar, o slogan comercial “Gerstendorfer Bros., New York, U.S.A.” transforma-se numa mensagem sem sentido “Any act red by her ten or epergne, New York, U.S.A”. Finalmente, Duchamp desenha no espelho o reflexo do cabelo da garota que está pintando a armação da cama, acrescentando um novo dado visual à imagem original.

De acordo com alguns autores, esse acréscimo tem implicações eróticas, mas é possível pensar que a cena em si é portadora de uma mensagem sexual em virtude da presença da cama e do pincel segurado pela garota, que poderia remeter a um falo sendo acariciado. Se for lembrado que o artista francês afirmou em 1961 que todos os quadros eram ready-mades ajudados, pois os tubos de tinta eram manufaturados, será possível ver na obra uma reflexão sobre o abandono das ferramentas artísticas tradicionais em prol de novos instrumentos de natureza conceitual e poética.

Leirner trivializa a operação de Duchamp, retirando dela toda conotação alegórica; ao mesmo tempo, torna mais explícita e misteriosa a referência a Guillaume Apollinaire. Em sua instalação, mantém a cama gigantesca, mas substitui a menina no ato de pintar pela figura de uma Branca de Neve imóvel. A presença de uma multidão de anões debaixo da cama, por sua vez, torna mais evidentes as sugestões eróticas atribuídas por parte da crítica ao ready-made de 1916-1917.

A obra faz parte da série Apollinaire enfeitiçado, na qual Leirner dialoga com outro trabalho emblemático de Duchamp, A noiva despida por seus celibatários, mesmo (La mariée mise à nu par ses célibataires, même), também conhecida como O grande vidro (Le grand verre). Produzida entre 1915 e 1923, a realização é profundamente hermética, mas um de seus significados pode ser resumido numa observação de Michel Carrouges: representa “a negação da procriação e, por consequência, da genealogia humana”, já que a relação sexual entre a noiva e os celibatários é impossível.

Leirner trivializa não apenas o complexo jogo de significados mobilizado por Duchamp, mas também outro objetivo sublinhado por Paulo Venâncio Filho: chegar a uma pintura antirretiniana, a serviço da mente, com a “progressiva retirada dos procedimentos, dos materiais, da temática tradicionais, para deixar nada ou quase nada suspenso na transparência do vidro”. Moacir dos Anjos detecta o diálogo com Duchamp na primeira obra do conjunto, na qual Leirner mostra manequins vestidas de noiva deitadas sobre três camas de vidro. Em duas delas, há brinquedos de plástico e flores de madeira, de natureza fálica; embaixo do terceiro leito, dezenas de cachorros de pelúcia velam os sonhos ocultos da noiva.

A presença de Branca de Neve na segunda obra da série e sua proximidade física da primeira revela, segundo o autor, a ambivalência simbólica da imagem da nubente: ela é expressão do estado virginal da mulher e, ao mesmo tempo, do abandono socialmente aprovado de tal condição. “Heroína virgem que atua, […] como uma esposa postiça dos sete anões […]”, Branca de Neve, em associação com os quarenta guardiões colocados debaixo da cama, pode ser considerada “quase uma releitura kitsch e hiperbólica de ‘O grande vidro”. Junto com a primeira obra, “magnifica a energia sexual que os contos de fada usualmente contêm e recalcam”. O resultado dessa energia desemboca nas outras duas obras do conjunto – um presépio e um berçário com nove bebês macacos –, pondo em xeque a impossibilidade procriadora vislumbrada por Carrouges.

Diálogo irônico com um artista que se insurgiu contra as convenções da arte, lançando mão de artefatos preexistentes aos quais conferiu um selo de qualidade artística, Apollinaire não é tão contundente quanto Viva 2010 (2010). Neste, a paródia concebida como uma investigação autorreflexiva sobre a relação da arte com o passado e o presente, é levada ao paroxismo. O observador depara-se com uma cena paradoxal. Num ambiente ricamente decorado com elementos vegetais e animais, destacam-se personagens do universo de Disney: o Pato Donald usando um traje feminino; Minnie fazendo as vezes de dama de companhia e de um pequeno cachorro; e Mickey desempenhando dois papéis. O aspecto paradoxal da cena, que demonstra o desejo do artista de estabelecer uma relação intertextual com as tradições e as convenções da arte do passado, incorporando e desafiando o objeto da paródia, torna-se ainda mais intrigante para o observador que consegue determinar a identidade da obra parodiada.

Leirner faz suas intervenções numa reprodução da tapeçaria Por meu único desejo (À mon seul desir), que integra o ciclo A dama e o unicórnio, realizado nas Flandres (c. 1484- 1538) e composto de seis peças, que se articulam numa alegoria dos cinco sentidos e de uma possível injunção a elevar-se acima dos prazeres. A composição de Por meu único desejo está repleta de símbolos que sugerem algumas hipóteses sobre seu significado. A obra representaria uma alegoria da elevação da alma por meio dos sentidos, a sujeição das tendências animais e o predomínio da razão; ou ainda uma homenagem críptica ao amor humano e a possibilidade da sugestão de um casamento.

Essas diferentes possibilidades de leitura estão ausentes da paródia de Leirner, que instaura um jogo irônico com uma obra do passado, modificada a partir de imagens da comunicação de massa a fim de conferir-lhe um novo sentido. A abolição de qualquer fronteira entre arte de elite e arte de massa leva o artista a transformar o Pato Donald na dama da tapeçaria, criando uma desproporção entre o corpo feminino e a cabeça do personagem disneyano, e a conferir a Mickey o papel dos dois principais animais simbólicos, o leão e o unicórnio.

O sorriso estampado em todos os rostos dos personagens dos desenhos animados e dos quadrinhos contrasta com a seriedade das figuras do original, mas é condizente com o desejo expresso de reescrever parodicamente a história da arte do passado, questionando sua estabilidade de sentido e problematizando o conhecimento histórico. A recriação paródica de Leirner não deixa de evocar as reescrituras de fatos históricos e de obras literárias propostas pelo Estúdio Disney e por suas afiliadas em séries de quadrinhos como Pateta faz história e Clássicos da literatura, nas quais o nonsense, a subversão da lógica corriqueira e a transformação, por vezes amalucada, dos eventos relatados/recriados são as principais características.

Para que Apollinaire e Viva 2010 possam ser devidamente apreciados é necessário que o observador conheça as obras parodiadas. Só assim será possível avaliar a extensão da destruição paródica de significados codificados e o processo de rebaixamento de obras pertencentes à esfera da alta cultura, que acabam sendo renovadas pelas intervenções contemporâneas. Ao rebaixar os valores atribuídos pela crítica à tapeçaria e ao jogo duchampiano, Leirner põe em xeque a ideia de que cabe ao tom sério expressar a verdade e tudo o que é importante e considerável. Próximo da concepção de Mikhail Bakhtin, o artista parece querer demonstrar que o riso, “ambivalente e universal, não recusa o sério”; ao contrário, “purifica-o e completa-o”.

O processo de purificação volta-se contra o dogmatismo, a visão unilateral, o fanatismo, o espírito categórico, o didatismo e a ingenuidade. Na esteira do autor russo, o riso mobilizado por Leirner impede que “o sério se fixe e se isole da integridade inacabada da existência cotidiana”, permitindo o restabelecimento de uma realidade ambivalente. Nesta há lugar para o “sério aberto”, que “não teme nem a paródia nem a ironia, […], pois sente que participa de um mundo inacabado, formando um todo”.

O fato de atribuir ao riso uma função criadora e de não propor nenhuma solução fechada permite compreender a proximidade de Leirner das indagações de Luigi Pirandello sobre a impossibilidade de se conhecer a verdade. Essa proximidade é assumida explicitamente em Assim é… se lhe parece, cujo título se inspira na “farsa filosófica” (1917) do escritor italiano, que põe em cena a problemática da inexistência de uma verdade única, pois a realidade é percebida de formas diferentes pelos indivíduos, tendo como resultado o relativismo de formas e convenções de todo gênero.

O artista, que afirma ter-se lembrado de Pirandello “porque seu teatro é todo feito em cima de charadas”, volta a evocá-lo no título de uma obra de dimensões enciclopédicas, Um nenhum cem mil (2000-2011). No romance publicado em 1926, Pirandello leva às extremas consequências a temática da perda de objetividade da realidade e de seu desaparecimento no vórtice do relativismo. Seu protagonista toma progressivamente consciência de que a identidade, julgada única, não passa de uma ilusão. A partir da descoberta de um defeito físico, dá-se conta de que são inúmeras as imagens fabricadas pelos outros a partir de sua aparência e acaba por renunciar a toda identidade depois de viver a experiência do estranhamento diante do espelho e de um retrato fotográfico.

A questão da identidade das imagens, ou antes, “a dissolução progressiva das diferenças simbólicas” (Anjos) entre grupos heterogêneos de ícones e figuras híbridas criadas ad hoc está no cerne da enciclopédia paródica de Leirner, que desafia a memória visual do observador com um jogo alegre e desenfreado. Mais uma vez personagens do universo do cinema de animação/quadrinhos são convocados, ao lado de diversos outros símbolos da cultura de massa, a participar de “degradações grotescas” da história da arte. Mickey e Minnie são os grandes protagonistas de “uma cosmovisão alternativa caracterizada pelo questionamento lúdico de todas as normas” (Stam), coadjuvados por outras figuras do Estúdio Disney (Donald, Margarida, Pateta, Branca de Neve, o Príncipe que a despertou da morte, os anões Mestre e Zangado, Sininho, a Pequena Sereia e o Ursinho Pooh) e de diversas produtoras – Betty Boop, Pernalonga, Lola Bunny, Penélope Charmosa, Hello Kitty, Piu Piu, Charlie Brown, Snoopy e Woodstock, Scooby-Doo e Salsicha.

Como seria impossível dar conta de todo o universo visual explorado por Leirner que, no caso das artes plásticas, vai da Antiguidade a Jeff Koons, serão analisados alguns exemplos caracterizados pelo uso de Mickey, Minnie, Donald e Margarida em encenações paródicas de obras célebres. Dois trabalhos de Leonardo da Vinci aparecem em diversos segmentos da enciclopédia leirneriana. Encimada por cabeças sorridentes dos quatro personagens, Mona Lisa perde o ar enigmático e introspectivo e se converte numa figura grotesca, esvaziada de qualquer dimensão psicológica. A última ceia (1495-1498) é submetida ao mesmo processo de dessublimação. O artista apropria-se tanto de reproduções integrais do afresco quanto de fragmentos e os povoa com cabeças de Mickey, Minnie e Donald, dotadas de pequenos detalhes distintivos que nada mais fazem do que sublinhar a similitude dos agrupamentos, despojando, assim, a obra da densidade psicológica que Leonardo lhe emprestara.

O afresco milanês significa uma inovação no tratamento do tema, já que as atitudes e os gestos dos apóstolos representam não apenas movimentos físicos, mas também as reações emocionais de cada um ao anúncio da traição feito por um Cristo ensimesmado. Com a aposição de rostos sorridentes de Mickey e Donald na figura deste, Leirner oblitera o contraste criado por Leonardo entre o tumulto emocional dos apóstolos e a atitude meditativa e suave de Cristo, transpondo o episódio sagrado para o universo da carnavalização, entendida como subversão da ordem vigente e redistribuição de papéis “de acordo com o ‘mundo de ponta-cabeça’” (Stam).

A mesma vontade de despojar a arte de uma visão séria está presente na revisitação de outras obras célebres de um passado não muito distante. A aposição do rosto sorridente de Minnie em A puberdade (1894-1895), de Edvard Munch, retira do quadro um de seus aspectos principais: a indagação sobre o destino da mulher na sociedade oitocentista. Na obra original, a expressão assustada da garota e seu olhar tímido despertam no observador uma sensação de mal-estar e solidão. A inquietação da jovem com o momento que estava atravessando – a passagem da infância para a adolescência – é incrementada pela presença da sombra ameaçadora à sua direita.

Esta pode ser vista como um presságio do que a esperava na vida adulta: a perda da liberdade e da alegria em virtude das únicas funções atribuídas à mulher, procriação e cuidado dos filhos. Se a expressão alegre de Minnie idiotiza a obra de Munch, o mesmo acontece com a releitura de A morte de Marat (1793). A cabeça de Mickey sorrindo no lugar do rosto agonizante do líder revolucionário despoja o quadro do caráter celebrativo que Jacques-Louis David lhe infundiu. A imagem de Marat como mártir da Revolução Francesa, sublinhada pela luz mística, pelo turbante branco que remete à faixa usada na testa pelas vítimas sacrificais na Grécia e em Roma, o braço caído fora da banheira e o corpo reclinado para trás que evocam a figura de Cristo morto, converte-se numa representação grotesca voltada para a negação e a inversão dos objetivos do pintor francês.

Típica do processo de carnavalização, essa lógica do avesso é ainda mobilizada na releitura de obras em que Leirner propõe uma permutação de gênero das figuras. O Escravo morrendo (1513), de Michelangelo, e o Autorretrato com modelo (1910), de Ernst Ludwig Kirchner, são transformados em exemplos de embaralhamento sexual. A cabeça de Minnie sobreposta à figura escultórica confere um novo significado à pose lânguida e sensual do jovem que parece ter desistido de lutar e se entrega ao sono eterno, numa evocação metafórica da libertação da alma pela morte. A aproximação de um rosto sorridente a um corpo em que a vida se esvai lembra a imagem da “morte alegre” analisada por Bakhtin.

Nas fontes populares, a imagem da morte é ambivalente. Apesar de focalizar o corpo individual agonizante, ela engloba ainda “uma pequena parte de um outro corpo nascente, jovem, que, mesmo quando não é mostrado e designado nomeadamente, está implicitamente incluído na imagem da morte. Onde há morte, há também nascimento, alternância, renovação”. A ideia de “morte alegre” aplica-se igualmente às cabeças de Minnie e Donald emergindo de sarcófagos de múmias. Leirner, que aposta nesse processo de renovação em termos iconográficos, não se subtrai a um representação en travesti do quadro de Kirchner quando coloca a cabeça de Margarida no corpo do pintor e a de Donald naquele da modelo, transformando a tensão do original numa visão brejeira e descompromissada.

Esse mesmo princípio de rebaixamento é aplicado à estatuária antiga, a miniaturas medievais, a uma figura icônica como o Cristo Redentor e a obras de artistas como Roy Lichtenstein, Man Ray, Fernando Botero, Egon Schiele, Giorgio De Chirico, Edgar Manet, Edward Hopper, René Magritte, Pablo Picasso, Jean-Auguste Dominique Ingres, Eugène Delacroix, Jeff Koons, José Guadalupe Posadas, Glauco Rodrigues, Aleksandr Ródtchenko, Anita Malfatti, Andy Warhol, só para citar alguns exemplos num universo integrado por mais de três mil peças que têm a dimensão de cartas de baralho.

Como esclarece Agnaldo Farias, Um nenhum cem mil nasceu ao longo de mais de uma década dedicada a “um trabalho metódico e silencioso, feito à margem de encomendas e projetos maiores e nas frestas das obrigações cotidianas”. Durante esse período, Leirner dedicou-se a realizar intervenções em convites de exposições, notas de dinheiro, selos, santinhos, reproduções de obras de arte, capas de livros, mapas, dentre outros, de maneira a abrir “novas e insuspeitadas perspectivas”, capazes de revelar que “cada fragmento, por pequeno e inexpressivo, [é] uma versão condensada de um mundo complexo e virtualmente infinito”.

Lilia Schwarcz, por sua vez, propõe ver no conjunto uma “obra de canibalização” e, ainda mais, uma “atividade antropofágica”, isto é, um ato de “circularidade cultural”. Nesse contexto, o artista pode ser visto como “um empedernido modernista, sempre a misturar lógicas, contextos, personagens e situações”. Súmula da poética de Leirner, o trabalho é “um patchwork de imagens, de pequenos detalhes, os quais, dispostos todos juntos, compõem um grande tapete multifacetado, revelador da obra de vida toda de nosso artista”.

O interesse de Leirner pelo universo da animação espraia-se também pelas séries Figurativismo abstrato (1999-2013), Sotheby’s (2000-2013) e numa obra como Pollockcow (2004). Na primeira, articulada como uma visão em caleidoscópio, o artista explora diferentes temporalidades da história do desenho animado, pois resgata figuras históricas como Betty Boop, Piu Piu e Mickey e introduz protagonistas mais recentes como Hello Kitty e Bob Esponja em configurações que, vistas de longe, evocam a pintura pós-impressionista. Ao se aproximar das obras, o observador percebe que aquele pontilhismo abstrato é constituído de milhares de adesivos provenientes, em boa parte, do imaginário infantojuvenil, do qual os personagens do cinema de animação são peças fundamentais.

Na segunda série, Leirner apropria-se de capas de catálogos da famosa casa de leilões para contaminar a esfera da “alta cultura” com chistes visuais que subvertem a lógica do mercado. Os rostos sorridentes de Mickey, Pateta e Donald são sobrepostos a bustos femininos colocados sobre cadeiras num jardim verdejante. Em outra intervenção, os rostos de Mickey e Minnie encimam duas cadeiras de rodinhas, equipadas com protuberâncias que evocam seios.

Óculos de plástico com as orelhas e os laços de Minnie são colocados nos olhos de uma obra de Roy Lichtenstein. O rosto sorridente da namorada de Mickey aposto à reprodução de Madame Récamier (1805), de François Gérard, gera um ruído num quadro caracterizado pela delicadeza da pose e do tratamento pictórico, baseado num jogo sutil de tons brancos, amarelos e verdes. O cuidado do pintor em estabelecer um acordo cromático entre o vermelho da cortina e o tom rosado da pele do rosto perde-se totalmente na intervenção de Leirner, que acrescenta um elemento ao original: um balão com o rosto de Mickey para explicar o sorriso da nova modelo.

O mesmo rosto sorridente da ratinha toma o lugar da cabeça da Medusa na reprodução de uma das versões de Perseu e Andrômeda, pintadas por Gustave Moreau na década de 1860. Além de apagar com a presença da personagem disneyana a façanha heroica do filho de Zeus, Leirner esvazia ainda mais o aspecto trágico do episódio com a aposição de ouro nos olhos de Andrômeda, sacrificada ao monstro marinho Cetus, e com o acréscimo de adereços dourados.

Os personagens de Disney ganham um protagonismo especial na série. Como escreve Lilia Schwarcz: “Contrastando com cenários ora tradicionais, ora com telas do classicismo, gravuras cubistas ou obras de autores contemporâneos norte-americanos, Mickey, Minnie, Tigrão, Pateta, Margarida e Donald figuram agora nas obras desequilibrando sentidos mais consagrados. Em primeiro lugar, há uma operação de humor, daquelas que se utilizam do deslocamento de sentidos, para construir novos sentidos. Ver um catálogo enquadrado e invadido por personagens da indústria cultural é intervenção que chama por um novo olhar: plástico e crítico. Em segundo lugar […], há uma agenda estética aí resumida. Nada é colocado ao acaso: a cor, o formato, o tamanho, o tema fazem parte dos critérios que são selecionados na hora de se intervir nas capas dos catálogos”.

Dialogando com o livro de Ariel Dorfman e Armand Mattelart, Para ler o Pato Donald: comunicação de massa e colonialismo (1971), que considera ultrapassado “por conta do tom irado e inflacionado”, a autora propõe não ver na obra do artista brasileiro uma leitura social muito estrita ou explícita. A seu ver, Leirner faz um uso “lúdico e belo” dos personagens de Disney, que subverte ao manipulá-los artisticamente. Além disso, há “uma brincadeira com o colonialismo, ou melhor, com quem coloniza quem. É o avanço capitalista, preconizado pela turma da Disney, que invade os mapas de Nelson, ou somos nós que fazemos essa invasão, junto com eles? Penso que houve aqui uma espécie de empate técnico, ou melhor, circularidade cultural ao invés de via de mão única e massificada”.

A pergunta de Schwarcz “Quem coloniza quem?” pode ser aplicada a Pollockcow, enésima brincadeira de Leirner com o universo da arte “séria” e seus significados profundos. Trata-se de uma homenagem a Pollock ou de uma gozação da mística que cercava o método de trabalho do pintor norte-americano, a meio caminho entre a pintura e a performance? Com a aplicação metódica e controlada de centenas de adesivos de Cinderela, Piu Piu, Mickey, Hello Kitty, Tigrão, Gasparzinho, do Ursinho Pooh e de uma multidão de Snoopys, dentre outros, Leirner parece realizar duas operações: demonstrar que suas ações cumulativas não são casuais, pois respondem a um desígnio visual; evidenciar que a performance de Pollock trazia em si a celebração dos impulsos vitais, mas, ao mesmo tempo, insinuava a possibilidade de seu esgotamento num jogo contínuo entre acabado e não acabado.

Pollockcow pode ser também vista como uma crítica ao fenômeno Cowparade, que se iniciou na Suíça em 1998, ganhou rapidamente o mundo e chegou a São Paulo em 2005. Naquela oportunidade, Leirner afirmou que se tratava de um processo “repetitivo do próprio sistema de arte. O artista não tem mais como ser agressor da sociedade ou do sistema de arte. Tudo acaba sendo consumido, englobado. Acho que para o público será interessante, mas para a cidade é apenas mais poluição visual”.

Colecionador incansável, interessado em todo tipo de objeto e imagem que integra a paisagem visual contemporânea, Leirner lança mão do imaginário do cinema de animação por detectar nele uma das fontes daquelas novas mitologias que ampliaram o campo artístico na década de 1960. Um observador atento do fenômeno, Gillo Dorfles, chamava a atenção para o nascimento de novas formas expressivas – cinema, televisão, gráfica publicitária, desenho industrial –, que não podiam ser deixadas de lado na avaliação da situação artística contemporânea. O artista brasileiro não deixa de levar em conta dois questionamentos feitos por Dorfles – Onde começa e onde termina o campo a ser atribuído à arte? Onde estão seus objetivos e suas metas? –, mas o faz de maneira própria, pondo em xeque as regras implícitas num jogo de cartas marcadas e conferindo primazia a um imaginário alicerçado no entretenimento e em manifestações de arte popular. Graças a eles, escrutina e ridiculariza o universo da arte oficial, que coloca de pernas para o ar, corroendo sua seriedade e provocando deslocamentos capazes de produzir novos sentidos e, até mesmo, contrassentidos.

Na realidade, o questionamento sobre os limites da arte já tinha sido esboçado na década de 1930 por um artista politicamente engajado como Diego Rivera, que detecta na figura de Mickey um novo potencial artístico, comparável ao “valor plástico” por ele atribuído a obras de arte popular de natureza efêmera: esculturas de açúcar a serem comidas, e de papelão e papel criadas para serem “despedaçadas ou queimadas”. No camundongo do Estúdio Disney, Rivera localiza “as características do estilo mais puro e mais definido em termos gráficos, da maior eficácia como resultado social”.

Essa segunda observação demonstra que o pintor confere ao personagem um significado social. Seus desenhos “alegres e singelos […] fazem descansar as massas de homens e mulheres cansados e fazem rir as crianças até cansar-se e dormir sem berrar, permitindo, assim, o repouso dos mais velhos”. Rivera vai ainda mais longe em suas considerações e chega a antever um futuro, no qual as massas, que “realizaram a verdadeira revolução”, não demonstrarão grande interesse pelos “filmes ‘revolucionários’ de hoje” e olharão com “curiosidade compassiva” para os quadros, as estátuas, as poesias e a prosa que sobreviveram “à limpeza geral do mundo”. Provavelmente, os desenhos animados continuarão a divertir os adultos e a fazer morrer de rir as crianças e os artistas; estes perceberão que Mickey “foi um dos verdadeiros heróis da arte americana por volta da primeira metade do século XX, no calendário anterior à revolução mundial”.

O entusiasmo de Rivera com a criação do Estúdio Disney parece não conhecer limites. Pelo estilo, pela padronização do desenho dos detalhes e pela “infinita variedade dos conjuntos”, o desenho animado é comparado com os frisos pintados dos egípcios e os vasos de barro cozido dos gregos. Em relação às realizações do passado, ele apresentava uma vantagem: o movimento e sua manifestação no cinema, a arte do presente, “segundo o Senhor Eisenstein”.

Além disso, o cinema de animação expressava “os ritmos mais lógicos, embora mais inesperados por necessidades técnicas”, podendo ser definido como o resultado da “maior eficiência com a maior economia”. Por meio da paródia de obras célebres, Leirner inscreve-se nesse tipo de discussão, que visava ampliar a concepção moderna de arte e chamar a atenção para o potencial artístico de que a animação era portadora.

Do mesmo modo que os teóricos e artistas das primeiras décadas do século XX, Leirner percebe nos personagens dos desenhos animados um universo de “transformação, subversão e provisoriedade” (Leslie). Embora atraído por sua subversão da lógica e da ordem, o artista não deixa de levar em consideração as transformações a que foram submetidos posteriormente, levando-os a perder a carga revolucionária das primeiras realizações anárquicas e utópicas. Leirner parece mobilizar os dois momentos vividos pela animação, partindo do pressuposto de que sua irrealidade não é nada ingênua.

Nas obras em que os personagens do cinema de animação/histórias em quadrinhos são inseridos no universo da indústria cultural, sua relação com o sistema capitalista não deixa de ser lembrada, embora de maneira enviesada em diferentes ocasiões. Quando participam do processo de contestação do mundo artístico oficial, é logo seu caráter anárquico e subversivo que é potencializado. Nesses momentos, o que conta é a invasão do universo da alta cultura por formas visuais marginalizadas, capazes de pôr em xeque regras e restrições convencionais com paródias irreverentes e corrosivas.

*Annateresa Fabris é professora aposentada do Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP. É autora, entre outros livros, de Realidade e ficção na fotografia latino-americana (Editora da UFRGS).

 

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