Etarismo na vacina da dengue

Imagem: Artem Podrez
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MAURÍCIO VIEIRA MARTINS*

A bula da vacina mais recente contra a dengue a prescreve apenas para indivíduos de 4 até 60 anos

Já a partir do terço final do século XX começaram a circular com maior intensidade as notícias referentes ao desapreço do Japão contemporâneo pela sua população mais idosa (tendência que segue aliás os conhecidos passos, anteriores, de inúmeras outras sociedades capitalistas).

Contrariando uma imagem bastante difundida no ocidente – a de que os japoneses mantêm uma inabalável relação respeitosa em relação à população mais velha –, a imprensa noticiou, por exemplo, o aumento do percentual de idosos japoneses que fazem furtos de pequenos objetos e remédios em lojas e farmácias. Chama a atenção nestes ilícitos o fato de que seus praticantes, ao invés de procurarem ocultá-los, buscam explicitamente provocar seu próprio aprisionamento.[i]

Entrevistados pelos jornalistas, eles afirmam que dentro das grades de uma prisão conseguirão pelo menos obter três refeições por dia, possibilidade lhes é dificultada pelo valor extremamente baixo de suas aposentadorias pagas pelo Estado. Junto com o aprisionamento, cresceram também as taxas de suicídio neste estrato da população, que sente vergonha de ser um fardo para seus filhos.[ii]

Tal descuido com a população mais velha apresenta agora uma nova face, igualmente preocupante, relacionada ao acesso aos serviços de saúde. Pois quem se dispuser a ler a bula da vacina mais recente contra a dengue, verificará que o laboratório japonês responsável por sua produção prescreve-a apenas para indivíduos de 04 até 60 anos.[iii] O fato é ainda mais surpreendente quando se leva em conta que no Japão o índice de habitantes com 65 anos ou mais é o mais alto do mundo (29,1%). Mas será que esta restrição etária da vacina se deve a uma suposta imunidade da população mais velha ao vírus da dengue?

Longe disso. As estatísticas demonstram que é precisamente este o segmento onde a dengue se manifesta com maior virulência e gera o maior número de hospitalizações[iv], tornando evidente o etarismo que exclui a priori os mais velhos da proteção vacinal. Sempre se poderá dizer que o conceito de “ponte imunológica” – utilizado para ampliar os limites da faixa etária originalmente testada pela vacina –, não permitiria sua extrapolação para os decis etários mais altos da população. Mas o que este breve escrito pretende tornar transparente é que a decisão de não investigar a viabilidade de um determinado imunizante para a população idosa se insere dentro de um contexto social e ideológico bem mais amplo.

Contexto que relega a terceira idade, para usarmos agora as palavras do sociólogo Zygmunt Bauman, à condição de um refugo humano,[v] que passa a se somar às demais categorias de “consumidores falhos”, e que como tal não merecem a atenção do poder público.

Ademais, temos como exemplo de contraste a recente pandemia da Covid 19, quando diferentes vacinas foram estudadas também para a população mais idosa. Mesmo laboratórios atuantes nos Estados Unidos e na Inglaterra – países fortemente alinhados aos valores do neoliberalismo, com sua recusa de políticas universais – anunciaram ampla cobertura etária para suas vacinas. E, no calendário a ser seguido pela vacinação, foi precisamente a faixa etária mais elevada quem mereceu uma atenção especial, pela óbvia razão de que nela os óbitos eram mais elevados. Esta providência salvou a vida de expressivos contingentes populacionais.

No que diz respeito ao Brasil, documentos produzidos pelo Senado Federal já preveem a possibilidade de o Brasil enfrentar “em 2024 a pior epidemia de dengue da história”[vi], registrando que só nos primeiros 45 dias deste ano foram contabilizadas 524 mil pessoas doentes. Quanto às notícias positivas, o Instituto Butantan[vii] admite a possibilidade de em 2025 sua vacina para a dengue poder ser utilizada[viii], ao que parece com alguns avanços em relação às atualmente disponíveis no mercado (como a aplicação em apenas uma única dose, e a promessa de formação de anticorpos protetores de forma mais equilibrada contra os quatro sorotipos do vírus).

É de se esperar que o Instituto Butantan honre suas tradições de inclusão social, promovendo pesquisas também entre a população mais idosa, para que ela possa ter acesso a uma proteção vacinal que em alguns casos lhe garantirá a própria vida. Caso contrário, este ilustre Instituto cravará em sua biografia institucional a pecha de haver recusado a ampliação de seus imunizantes para o estrato populacional mais fragilizado por injunções simultaneamente biológicas e sociais.

*Maurício Vieira Martins é professor sênior do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais da UFF. Autor, entre outros livros, de Marx, Spinoza and Darwin: materialism, subjectivity and critique of religion (Palgrave Macmillan).

Notas


[i] BBC Brasil – “Aposentados na cadeia: os idosos japoneses que se esforçam para serem presos”. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-47086935

[ii] Na verdade, é possível recuar em inúmeras décadas para verificar esta específica mudança de costumes na sociedade japonesa. Apenas como exemplo: em 1953 o cineasta Yasujiro Ozu lançou seu clássico Era uma vez em Tóquio (Tōkyō Monogatari): neste filme, acompanhamos a estória de um casal de idosos japoneses que decide visitar seus filhos adultos em Tóquio. Mas a visita se transforma numa amarga frustração: os filhos já não dispunham de tempo para dar atenção a seus pais, provocando a antecipação do retorno destes últimos à sua cidade de origem.

[iii]https://assets-dam.takeda.com/image/upload/v1688371996/legacy-dotcom/siteassets/pt-br/home/what-we-do/produtos/Qdenga_Bula_Profissional.pdf

[iv] https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2024-02/casos-provaveis-de-dengue-se-aproximam-de-400-mil-no-pais-em-2024

[v] Bauman, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

[vi] https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2024/02/dengue-clima-agua-parada-e-falhas-do-poder-publico-causaram-explosao-de-casos#:~:text=Tudo%20indica%20que%20o%20Brasil,mil%20infec%C3%A7%C3%B5es%20a%20cada%20dia.

[vii] https://butantan.gov.br/noticias/vacina-da-dengue-do-butantan-tem-eficacia-%E2%80%9Cmuito-satisfatoria%E2%80%9D-mas-ainda-esta-em-desenvolvimento-e-precisa-de-aprovacao-da-anvisa

[viii] https://g1.globo.com/saude/noticia/2024/02/01/vacina-do-butantan-contra-dengue-e-eficaz-e-deve-ser-enviada-a-anvisa-neste-ano-uso-pode-comecar-em-2025.ghtml


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Carlos Tautz Fernando Nogueira da Costa Paulo Nogueira Batista Jr Gerson Almeida José Luís Fiori Marilena Chauí Marilia Pacheco Fiorillo Valerio Arcary Remy José Fontana Salem Nasser Marcelo Guimarães Lima Mariarosaria Fabris Matheus Silveira de Souza Chico Alencar Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Vanderlei Tenório Benicio Viero Schmidt Valerio Arcary Luiz Werneck Vianna Paulo Sérgio Pinheiro Luciano Nascimento Vinício Carrilho Martinez Juarez Guimarães Marcos Aurélio da Silva Dênis de Moraes Leonardo Avritzer Lorenzo Vitral Luiz Bernardo Pericás Everaldo de Oliveira Andrade José Costa Júnior Marcus Ianoni Jean Pierre Chauvin Luiz Carlos Bresser-Pereira Eleonora Albano Alexandre de Lima Castro Tranjan Tarso Genro Milton Pinheiro Claudio Katz André Singer Antonio Martins Fábio Konder Comparato Berenice Bento Paulo Martins João Adolfo Hansen Luiz Renato Martins Sandra Bitencourt Érico Andrade Eduardo Borges Jean Marc Von Der Weid Flávio R. Kothe Antônio Sales Rios Neto Walnice Nogueira Galvão Vladimir Safatle Francisco de Oliveira Barros Júnior Ricardo Abramovay Denilson Cordeiro Celso Favaretto Ari Marcelo Solon João Lanari Bo Henry Burnett Eleutério F. S. Prado Liszt Vieira Armando Boito Manuel Domingos Neto Gilberto Lopes Jorge Branco Ladislau Dowbor Dennis Oliveira Yuri Martins-Fontes Boaventura de Sousa Santos Otaviano Helene Ronald Rocha Caio Bugiato Eugênio Trivinho Luis Felipe Miguel Mário Maestri Thomas Piketty Ricardo Musse Marcos Silva João Paulo Ayub Fonseca Osvaldo Coggiola Gilberto Maringoni Leonardo Boff Lincoln Secco Celso Frederico José Geraldo Couto Bruno Machado Julian Rodrigues Fernão Pessoa Ramos José Raimundo Trindade Annateresa Fabris Bento Prado Jr. Plínio de Arruda Sampaio Jr. Bernardo Ricupero Michael Roberts Ricardo Fabbrini Luiz Marques Manchetômetro Andrew Korybko Antonino Infranca Heraldo Campos Alexandre Aragão de Albuquerque Tales Ab'Sáber Alexandre de Freitas Barbosa Leonardo Sacramento José Machado Moita Neto Daniel Costa Luiz Roberto Alves Ronaldo Tadeu de Souza Francisco Pereira de Farias Priscila Figueiredo Maria Rita Kehl Carla Teixeira João Feres Júnior Rubens Pinto Lyra Bruno Fabricio Alcebino da Silva Renato Dagnino Kátia Gerab Baggio Afrânio Catani Igor Felippe Santos Daniel Brazil Eugênio Bucci Luís Fernando Vitagliano João Carlos Salles Michael Löwy Marjorie C. Marona Alysson Leandro Mascaro Paulo Capel Narvai Daniel Afonso da Silva Rafael R. Ioris Tadeu Valadares Jorge Luiz Souto Maior André Márcio Neves Soares Lucas Fiaschetti Estevez Chico Whitaker Andrés del Río Airton Paschoa João Sette Whitaker Ferreira Francisco Fernandes Ladeira José Dirceu Paulo Fernandes Silveira Slavoj Žižek Gabriel Cohn Rodrigo de Faria Flávio Aguiar Eliziário Andrade Ronald León Núñez Anselm Jappe Sergio Amadeu da Silveira Atilio A. Boron Henri Acselrad Luiz Eduardo Soares Michel Goulart da Silva Ricardo Antunes José Micaelson Lacerda Morais Leda Maria Paulani Samuel Kilsztajn Elias Jabbour Marcelo Módolo João Carlos Loebens

NOVAS PUBLICAÇÕES