A eugenia já domina os protocolos médicos nos EUA, como notou a edição de jornal italiano. No Brasil, membros de comitês de bioética de grandes hospitais privados brasileiros, sem levar em conta as desigualdades gritantes do país, pregam quem deve morrer ou viver diante de emergências, orientados pelos critérios mercadológicos da lei da oferta e da procura
Por Marcos Aurélio da Silva*
Diante da anomia governamental para combater de forma clara e decisiva a Covid-19, no Brasil já se discute a eugenia. É o que se pode concluir de um artigo publicado da Folha de SP de 5/04/2020 sob o título “Escolhas dramáticas em contextos trágicos”. Trata-se de uma verdadeira cretinice, assinada por Daniel Wei Liang Wang e Marcos de Lucca Silveira, respectivamente integrantes do comitê de bioética do Hospital Sírio Libanês e do Hospital infantil Sabará e também professores da FGV-SP.
Estamos diante de uma forma comedida de eugenética, uma forma envergonhada, não há dúvida, mas a linha de raciocínio é inequívoca, e com exemplos de arrepiar o cabelo: “Se concordamos que uma pessoa de 30 anos com expectativa de vida normal pós-UTI deve ter preferência em relação a outra de 80 anos com Alzheimer avançado, então tempo e qualidade de vida podem determinar escolhas fundamentais.”
A eugenia já domina os protocolos médicos nos EUA, como notou a edição de 25/03/2020 do jornal católico italiano Avvenire, assinalando que em muitos estados norte-americanos “os médicos são chamados a avaliar o nível de habilidade física e intelectiva geral antes de uma intervenção, ou para salvar uma vida”.
Na reportagem, intitulada EUA, ‘nada de respiradores para os deficientes’. Mais de 10 Estados escolhem quem salvar (tradução livre de “USA, ‘niente repiratori per i disabili’. Più di 10 Stati scelgono chi salvare“), lê-se que os protocolos de exclusão podem variar da “capacidade cognitiva” (como no estado de Whashington) ao “distúrbio neurológico grave” (Maryland e Pennsylvania) — o que deixou alarmadas as associações de defesa de deficientes — passando ainda pelos casos de atrofia muscular (Tennessee), cirrose hepática, doença pulmonar e deficiência cardíaca (Minnesota).
Não há como não concluir: na linha dos protocolos médicos norte-americanos, o artigo dos professores brasileiros é de uma cretinice sem igual. Bem colocados em seus postos de docentes universitários na área das ciências sociais aplicadas, integrantes de comitês de “ética” de grandes hospitais privados, conduzem uma discussão moral — aquilo que é universalmente válido para todos os homens, ensinou Kant — orientados pelos critérios mercadológicos da lei da oferta e da procura, típicos do mais vulgar manual de economia neoliberal.
Nem uma palavra sobre a derrubada do teto de gastos (a Emenda Constitucional 95/2016), condição para suportar uma radical quarentena — como demonstra a bem-sucedida experiência chinesa — , com apoio financeiro a trabalhadores formais e informais; nem uma palavra sobre a estatização dos grandes hospitais privados, ou ao menos a gestão pública de leitos hospitalares, como faz a Argentina, ou a construção emergencial de hospitais, como fez a China; nem uma palavra sobre a emergencial reconversão industrial, com a estatização ou que seja a gestão pública temporária de fábricas voltadas à produção de respiradores, máscaras, produtos mundialmente entregues à mais feroz lei do mercado, como o demonstrou a recente “pirataria” norte-americana, segundo as palavras do ministro do interior da Alemanha, Andreas Geisel.
Enfim, nem uma palavra acerca da urgência de políticas de recorte socialistas, ou ao menos socializantes, que sejam. Nem poderiam: a mão é bem visível, disse o economista institucionalista Alfred Chandler.
Na verdade, não é de surpreender a coincidência nos ideários que agora dominam os protocolos médicos no Brasil e nos EUA. Os governos destes países estiveram na linha de frente do mais abjeto negacionismo quando a Covid-19 já havia sido declarada uma pandemia. Estiveram e ainda estão, pois é inadmissível esquecer as investidas diárias de Bolsonaro contra o isolamento horizontal, a martelar unilateralmente um extemporâneo determinismo geográfico (“a culpa é do clima frio”). São, com efeito, os governos mais ciosos em manter um projeto particularista de sociedade: nada aos cucarachas, a serem afastados por um enorme muro; nada para as classes trabalhadoras, a serem impiedosamente expostas a uma escravizante reforma da previdência, entre outras maldades.
Quando escreveu suas páginas sobre o fordismo americano, Gramsci lembrou que para além da aristocracia operária, dispensada aos “nativos”, havia toda uma série de trabalhadores “não qualificados”, “temporários’, trabalhadores relegados à massa dos “débeis e refratários” que, sobretudo nas grandes crises, são “lançados no inferno das subclasses” ou inteiramente eliminados. Voltando-se ao seu próprio país, já sob o regime fascista de Mussolini, onde aliás sequer uma aristocracia operária se estabelecia com solidez, pois a burguesia se apresentava como o “exercito de parasitas”, a devorar “enormes quantidades de mais-valia”, ele recordava — aqui em uma carta à cunhada Tatiana Schucht de meados de 1928 — “o extremo egoísmo das gerações entre os vinte e os cinquenta anos” que se verificava “em prejuízo das crianças e dos velhos”.
Mutatis mutandis, eis onde parecemos estar agora, aqui e acolá. Na maior potência capitalista, chegada a época da grande crise do fordismo, uma crise de acumulação que terminou por se traduzir em estrondosa crise de representatividade — a rigor uma crise orgânica –, uma ampla parcela da população é lançada ao limbo das classes “débeis”, a serem inteiramente eliminadas. Em nossas paragens, cuja configuração fordista e tudo o que ela implicou — altos salários e um sólido welfare state — não passou de um esboço, a explícita aceitação de um governo de tintas fascistas — um governo, mas não certamente um regime, na falta de um verdadeiro partido fascista –, velhinhos e velhinhas, lançados também eles ao “inferno das subclasses”, são convidados a deixar a vida para que a economia possa passar.
Com efeito, é ainda o mesmo Gramsci de Americanimo e fordismo que devemos chamar ao nosso socorro. À lúgubre eugenética que agora nos é oferecida, urge opor a luta por um “melhor teor de vida”, um teor de vida “adequado aos novos modos de produção e de trabalho”. Sem prejuízo de uma reconfiguração espacial da produção e do trabalho, como agora se começa a insistir, mas de toda forma ainda apenas uma reconfiguração capitalista da aglomeração espacial da vida e da produção, trata-se, antes, da luta por “uma forma própria de americanismo aceitável pelas massas operárias”, não exatamente “de marca americana”, mas aquela capaz de “transformar em liberdade o que é hoje necessidade”.
Sem mais, um teor socialista para a vida e a produção, nas mais diferentes formas em que este teor, segundo as diferentes formações sociais, pode encarnar. O caminho realmente adequado para tratar a questão moral que a pandemia da Covid-19 põe, sem nenhum rodeio, diante de todos nós.
*Marcos Aurélio da Silva é professor no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (CFH/UFSC), com atuação nos cursos de graduação e pós-graduação em Geografia, área de concentração Desenvolvimento Regional e Urbano. Dr. em Geografia Humana pela FFLCH-USP, com estágio de Pós-doutorado em Filosofia Política na Università degli Studi di Urbino (It)