A guerra na Ucrânia

Imagem: Octoptimist
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MARCOS AURÉLIO DA SILVA*

Com as negociações de paz já iniciadas, é o próprio Ocidente que soa os tambores da guerra, não sem uma boa dose de cinismo

No Ocidente a análise liberal já começou a “especular” sobre os motivos psicopatológicos da invasão da Ucrânia por Vladimir Putin, segundo se pode ver em um recente vídeo da Limes – Rivista Italiana di Geopolitica. Não será de assustar se daqui a pouco a mídia corporativa brasileira usar do mesmo argumento.

É o meio do Ocidente esconder suas próprias responsabilidades, à frente a expansão da OTAN para o Leste Europeu a partir dos anos 1990 e o golpe da praça Maidan em 2014, que derrubou o presidente pró-Rússia Viktor Janukovic e reergueu os esquadrões nazifascistas ucranianos, em parte integrados ao exército do país (como o Batalhão Azov, em ação na região do Donbass).

Não é o caso de extrair daqui uma canonização de Vladimir Putin, como se ele, ao invés de um seguidor do tradicionalismo conservador de Alexandr Dugin − numa das tantas variações do bonapartismo que marca a atual crise orgânica do capitalismo[1] −, fosse o máximo representante do bolchevismo, segundo parece pensar no seu íntimo uma certa esquerda. Que em alguns círculos chega a trocar a doutrina de Lênin por aquela de Oswald Spengler.

Mesmo a China, aliada estratégica da Rússia na redefinição em curso da geoeconomia e geopolítica mundial, não subscreveu a decisão de Putin de passar da guerra fria à guerra quente. É o que se pode concluir das declarações do ministro do exterior Wang Yi, que nem por isso deixou de considerar inaceitáveis a expansão da OTAN e as sanções do Ocidente contra a Rússia. É como se a Rússia tivesse se lançado a uma inadvertida inversão da máxima de Clausewitz.

As queixas de Putin são, todavia, mais que justas. Elas são uma reação ao regime de “acumulação primitiva” que o imperialismo, sob o comando planetário dos EUA, “recriou” no Leste Europeu após a queda do “socialismo real”, marcado por ampla privatização, superexploração do trabalho e militarização.

São essas queixas que o Ocidente deseja encobrir com a tese do “desvio psicopatológico”. Um modo de não falar de correlação de forças e de lutas de classe, como anotou Gramsci na crítica ao reacionário positivismo da antropologia médica de Lombroso − com sua clara dimensão territorial, produto das relações imperialistas.

E, no entanto, parece ter sido justamente essas correlações de forças que Vladimir Putin, se seguisse como os chineses o marxismo − que não se confunde com a “filosofia do ato puro”, a gentiliana “práxis pura” −, teria melhor avaliado antes de abandonar o terreno da diplomacia, ou da política propriamente dita, para adentrar aquele da guerra de movimento como se fosse já “toda a guerra”.

Trata-se, a rigor, do terreno da hegemonia, do consenso que se sobrepõe à coerção (sem eliminá-la completamente, ou transformando-a em autocoerção). Uma mudança de longo alcance nas correlações de forças a condicionar a política do mundo pós-1848. E que, pelo menos desde o último Engels − para não falar de Lenin, Gramsci e Togliatti, grandes teóricos da hegemonia −, o marxismo aprendeu a erguer como um dos seus pilares.

Passados alguns dias do início da campanha russa, há, todavia, um fato objetivo sobre o qual ninguém pode silenciar. Com as negociações já iniciadas, é o próprio Ocidente − tão atravessado por regimes bonapartistas quanto aquele de Putin, incluindo o país guia do imperialismo[2] − que continua, não sem uma boa dose de cinismo, a soar os tambores de guerra enquanto fala de paz, enviando armamentos à Ucrânia e lançando uma irracional campanha de ódio contra a Rússia.

Tinha razão Milton Santos quando há vinte anos disse ser característico da “perversidade sistêmica” da globalização – ela mesma “um período e uma crise” −, entre outras fundada na “tirania da informação”, “males espirituais e morais como os egoísmos, os cinismos, (e) a corrupção”.[3]

*Marcos Aurélio da Silva é professor do Departamento de Geociências da UFSC.

 

Notas


[1] Para a definição de bonapartismo me apoio em Losurdo, que o associa a “uma sociedade atomizada e amorfa”, pressuposto do “poder pessoal” e do “carisma pessoal do líder”, que se “proclama acima de todos os partidos e classes sociais”, bem como − coisa muito importante − aos contextos políticos onde a “práxis” é “uma nítida antítese da teoria” e os teóricos são tidos como “simples doutrinários aferrados a ideias, construções sistemáticas ou, ainda, a ‘questões metafísicas’”. Ver Losurdo, D. Democracia ou bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal. RJ: Editora da UFRJ; SP: Editora da Unesp, 2004, p. 197-8.

[2] Sobre a ampla difusão dos regimes bonapartistas que marca a crise do capitalismo atual, acompanhamos o capítulo 4 do livro de Stefano G. Azzarà, Adeus pós-modernismo. Populismo e hegemonia na crise da democracia moderna, em curso de publicação pela editora Insular a partir de uma tradução nossa.

[3] Santos, M. Por uma outra globalização. Do pensamento único à consciência universal. RJ/SP: Record, 2009, p. 15, 20 e 33-4.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Tadeu Valadares Annateresa Fabris Luiz Werneck Vianna Elias Jabbour Jorge Branco Anselm Jappe Antonino Infranca José Raimundo Trindade Sandra Bitencourt Heraldo Campos Bernardo Ricupero Yuri Martins-Fontes Dênis de Moraes José Geraldo Couto Atilio A. Boron Luiz Carlos Bresser-Pereira Marcos Silva Marcos Aurélio da Silva Eugênio Trivinho Michael Löwy Gilberto Lopes Leonardo Avritzer Luiz Eduardo Soares Paulo Martins Alysson Leandro Mascaro Boaventura de Sousa Santos André Singer Vladimir Safatle Andrés del Río Celso Frederico Leonardo Boff Eugênio Bucci Rubens Pinto Lyra Gerson Almeida Jean Pierre Chauvin João Sette Whitaker Ferreira Juarez Guimarães Antonio Martins Osvaldo Coggiola Otaviano Helene Vinício Carrilho Martinez Ronald León Núñez Gabriel Cohn Afrânio Catani Francisco Pereira de Farias Sergio Amadeu da Silveira Ricardo Abramovay Bruno Machado Flávio R. Kothe Ronald Rocha Everaldo de Oliveira Andrade Michel Goulart da Silva Andrew Korybko Berenice Bento Maria Rita Kehl Dennis Oliveira Caio Bugiato Tales Ab'Sáber Alexandre de Freitas Barbosa Jorge Luiz Souto Maior Vanderlei Tenório Marilia Pacheco Fiorillo Salem Nasser Luiz Bernardo Pericás Luiz Renato Martins João Carlos Salles Luis Felipe Miguel Michael Roberts Leda Maria Paulani João Adolfo Hansen José Luís Fiori Alexandre de Lima Castro Tranjan Valerio Arcary José Dirceu Manuel Domingos Neto Marcelo Guimarães Lima Ricardo Antunes Mariarosaria Fabris Henri Acselrad Denilson Cordeiro João Carlos Loebens Gilberto Maringoni Fernando Nogueira da Costa Eleonora Albano Eleutério F. S. Prado Celso Favaretto Valerio Arcary Claudio Katz André Márcio Neves Soares Paulo Capel Narvai Leonardo Sacramento Samuel Kilsztajn Érico Andrade Antônio Sales Rios Neto Liszt Vieira Ricardo Fabbrini Matheus Silveira de Souza Rafael R. Ioris Paulo Nogueira Batista Jr Henry Burnett Carlos Tautz Daniel Brazil Eduardo Borges Marilena Chauí Fábio Konder Comparato Plínio de Arruda Sampaio Jr. Bruno Fabricio Alcebino da Silva Ladislau Dowbor Renato Dagnino Remy José Fontana Luciano Nascimento Daniel Costa Igor Felippe Santos Benicio Viero Schmidt José Micaelson Lacerda Morais João Lanari Bo João Feres Júnior José Machado Moita Neto Paulo Fernandes Silveira Francisco Fernandes Ladeira Lincoln Secco Manchetômetro Slavoj Žižek Paulo Sérgio Pinheiro Jean Marc Von Der Weid Ronaldo Tadeu de Souza Eliziário Andrade Ari Marcelo Solon Luiz Roberto Alves Daniel Afonso da Silva Armando Boito Thomas Piketty Alexandre Aragão de Albuquerque Walnice Nogueira Galvão Ricardo Musse Julian Rodrigues Tarso Genro Chico Whitaker Airton Paschoa Luís Fernando Vitagliano Marcus Ianoni Bento Prado Jr. Fernão Pessoa Ramos José Costa Júnior Priscila Figueiredo Lorenzo Vitral Chico Alencar Flávio Aguiar Rodrigo de Faria Carla Teixeira Milton Pinheiro Kátia Gerab Baggio Luiz Marques Marcelo Módolo Lucas Fiaschetti Estevez Marjorie C. Marona Mário Maestri Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Francisco de Oliveira Barros Júnior João Paulo Ayub Fonseca

NOVAS PUBLICAÇÕES