Os vendilhões do Templo

Imagem: Reprodução/Twitter
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Por NAPOLEÃO FERREIRA*

O Palácio da Cultura é um símbolo de nossa vontade de sonhar com um destino comum; jamais deverá ser vendido

O mundo urbano-industrial repartiu e ainda reparte os territórios em nações, instituídas através da adaptação dos agrupamentos sociais às mudanças de hábito e cultura modernas.

No Brasil, esse processo histórico se consolidou, mesmo que incompleto, nas primeiras quatro décadas do século XX, quando os renovadores da arte e a ditadura do Estado Novo intensificaram a construção da nacionalidade.

Foi exatamente esse o período em que a arquitetura monumental moderna se estabeleceu como artefato industrial dos mais avançados, com espaços destinados aos novos hábitos de vida e simbolizando na paisagem urbana o novo ser nacional.

A imagem arquitetônica do Brasil foi estabelecida de forma pioneira pela construção do edifício sede do Ministério da Educação e Saúde (MÊS), no período de 1937 a 1946, na então capital federal, a Cidade do Rio de Janeiro.

A importância dessa edificação a coloca entre os grandes feitos da arquitetura moderna internacional. Uma obra que conferiu destaque ao Brasil com o epíteto de país do futuro, segundo o ensaio de Stefan Zweig.

A ideia de patrimônio cultural é necessária a toda nação. A presença de uma coleção de bens culturais é fundamental para a comunidade que se identifica como nacional se imponha. A coleção é composta de coisas em fieira, antigas e modernas, estabelecidas no território da nação como o fio de Ariadne, interligando um passado de glórias lendárias ao presente e a uma expectativa promissora de futuro, a certeza de um destino comunitário.

Por isso, edifícios como a sede do MES e seus descendentes, como os da Praça dos Três Poderes, em Brasília, devem perdurar com seus atributos tectônicos, como símbolos do que fomos, somos e seremos: uma comunidade nacional.

Daquelas primeiras quatro décadas do século passado, herdamos a legislação que garante a preservação do patrimônio cultural brasileiro. Nesse conjunto de normas nasceu uma das mais belas jabuticabas – pois só aqui floresceu: o conceito de tombamento.

O legislador, poeta, que escreveu o Decreto-lei número 25, ainda hoje em vigência, cunhou esse termo utilizando o substantivo originalmente sinônimo de queda, numa acepção de sentido oposto. Tombar, doravante, significaria também garantir a integridade física da coisa pertencente à coleção dos monumentos nacionais.

Essa curiosa forma de ditar quais as coisas preserváveis como bens culturais, veio da velha tradição portuguesa, quando o Brasil era colônia, de manter o registro dos bens coloniais na manuelina Torre do Tombo, em Lisboa, onde ficavam os desenhos das edificações que pertenciam à coroa portuguesa.

Portanto, com o uso do recurso de tombamento, preservam-se os bens do patrimônio cultural brasileiro, necessário como feito de relevância artística e histórica para manter o fervor e a crença de que a nacionalidade brasileira perdurará, apesar da desigualdade social e de toda ignomínia que dela decorre. Assim, como disse o poeta: “apesar de você, amanhã há de ser outro dia …”

O que dizer de um governo que põe à venda uma joia inalienável do nosso patrimônio cultural?

Além da indignação quanto à ameaça de venda da sede do MES, também conhecido como o Palácio da Cultura, está em causa resistir contra o intento, consciente ou ignorante, de expor à venda um símbolo de nacionalidade.

A ação proclamada, se for levada a cabo, será um grave precedente para a alienação – por enquanto ilegal – de bens tombados do patrimônio público histórico e artístico nacional.

Por ironia, hoje o edifício em causa abriga a autarquia federal responsável pela preservação do nosso patrimônio cultural, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, hoje sob ameaça de liquidação.

De onde vem tanto ódio ao sentimento comunitário nacional, ridiculamente encoberto pelo slogan militar “Brasil acima de tudo!”?

Vale atentar para a relação entre a nação e seu patrimônio cultural. Semelhante a um boneco vodu que transfere o incômodo causado a si, por alfinetes, para o sujeito por ele representado. Qualquer ato de menoscabo ao monumento tombado será um agravo ao sonho do estabelecimento de um futuro comum promissor por ele representada.

O Palácio da Cultura é um símbolo de nossa vontade de sonhar com um destino comum. Ele jamais deverá ser vendido, pois um ato atabalhoado dessa magnitude abala os alicerces da ideia de Nação brasileira.

Esse governo de vendilhões de templos precisa ser contido! A Pátria jamais será objeto de liquidação.

*Napoleão Ferreira, arquiteto, é doutor em sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

 

 

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