Por DANILO ENRICO MARTUSCELLI*
Prefácio do livro recém-editado de Nicos Poulantzas
Em Fascismo e ditadura, obra publicada originalmente em 1970, Nicos Poulantzas desenvolve uma importante contribuição teórica para os estudos acerca das variações das formas do tipo capitalista de Estado ao elaborar uma teoria política marxista do fascismo.
Para tanto, o autor se vale da análise crítica de uma ampla bibliografia teórica e historiográfica sobre o tema e estabelece uma linha de demarcação teórica com uma série de problemáticas e doutrinas teóricas, dentre as quais destacaríamos: o historicismo, o economicismo, o institucionalismo e o elitismo.
Neste livro, a elaboração de uma teoria política marxista do fascismo implica afastar o analista de qualquer pretensão de constituir uma historiografia dos casos concretos do fascismo italiano e do nazismo alemão. Como adverte o autor, os casos concretos são concebidos nesta obra como ilustrações históricas do objeto de investigação.
Como essas linhas demarcatórias se estabelecem com as problemáticas teóricas supracitadas e o que o autor apresenta como alternativa analítica?” Primeiramente, Poulantzas procura se afastar do historicismo por considerar um equívoco estabelecer uma relação de identidade entre conceito e fato histórico. Para ele, o fascismo não é um fenômeno datado e tampouco um conceito válido apenas para o contexto político alemão e italiano das décadas de 1920 a 1940. O fascismo é uma possibilidade histórica inscrita nos limites do desenvolvimento do tipo capitalista de Estado, daí advindo a formulação conceitual decisiva de sua análise segundo a qual o fascismo é uma “forma de regime da forma de Estado capitalista de exceção”.
Poulantzas entende, portanto, que o tipo capitalista de Estado admite variações que podem se manifestar por meio do que ele chama de formas de Estado capitalista democrático ou “de exceção”.[1] Cada uma dessas formas de Estado admite, por sua vez, diferentes formas de regime. As “formas de Estado capitalista de exceção” podem abranger, por exemplo, as seguintes “formas de regime de exceção”: a ditadura bonapartista, a ditadura militar e a ditadura fascista.
Na obra Poder político e classes sociais, publicada em 1968, Poulantzas havia apresentado uma teoria sistemática do tipo capitalista de Estado, caracterizando-o como uma estrutura jurídico-política formada pelo direito burguês, que despoja os agentes da produção de seu pertencimento de classe e os fixa institucionalmente como sujeitos de direito, produzindo assim o efeito de isolamento ou de individualização, ou seja, o efeito ideológico que engendra o reconhecimento dos agentes da produção como indivíduo-cidadãos; e pelo burocratismo, que dá unidade ao conjunto de indivíduos atomizados e fixa o anonimato de classe nas instituições do Estado capitalista, produzindo o efeito de representação da unidade, de modo que: o Estado capitalista de classe possa se apresentar como representante do interesse geral do povo-nação.
Em Fascismo e ditadura, Poulantzas desenvolve um duplo deslocamento em relação à esta obra: no plano teórico, ele se distancia do conceito de Estado como estrutura jurídico-política e passa a dar centralidade ao conceito de aparelho de Estado, compreendido como sendo constituído por um aparelho repressivo (formado pelas burocracias civil, militar e jurídica) e uma variedade de aparelhos ideológicos (constituídos pelos aparelhos familiar, escolar, religioso, de informação/comunicação etc); já, no plano do objeto de investigação, Poulantzas desloca-se da análise do tipo de Estado para o exame das formas de Estado capitalista, dando especial atenção à forma de Estado “de exceção” e à forma de regime fascista.
Em obras posteriores, o debate acerca das formas de Estado e de regime reaparece a partir do exame: da crise das ditaduras militares, tema central do livro A crise das ditaduras: Portugal, Espanha e Grécia, publicado em 1975; e do “estatismo autoritário”, conceito original formulado pelo autor para se referir a uma variação da forma de Estado capitalista democrático que vinha se constituindo no capitalismo nos anos 1970. O fenômeno do “estatismo autoritário” é abordado no livro O Estado, o poder, o socialismo de 1978, obra na qual o conceito de Estado como estrutura jurídico-política cede de lugar para a ambígua noção de Estado como “condensação material de uma relação de forças entre classes e frações de classe”.
Há dois elementos fundamentais que caracterizam a forma de Estado capitalista “de exceção” na análise poulantziana: a suspensão do princípio do sufrágio universal e o controle exclusivo por parte da burocracia estatal sobre os processos decisórios fundamentais. É certo que o autor faz referência também ao recrudescimento do aparelho repressivo e ao caráter arbitrário da lei para abordar a forma de Estado capitalista “de exceção”, mas, no desenvolvimento da análise, tais aspectos tendem a ser abordados mais como efeito do reforço do papel da burocracia de Estado no processo de estabelecimento da nova forma de Estado do que como causa.
De acordo com Poulantzas, a variação das formas de regime da forma de Estado capitalista “de exceção” está ligada ao papel dominante que exerce um dado ramo do aparelho de Estado sobre o processo decisório. Assim, na ditadura fascista, o ramo que assume esse papel é a polícia política, na ditadura bonapartista, é a burocracia civil e, na ditadura militar, é a burocracia militar.
Ao contrário das análises institucionalistas que descuram da relação entre Estado e classes sociais, em geral, e Estado e classes dominantes, em particular, Poulantzas observa a existência de uma correspondência entre as mudanças ocorridas na hierarquia dos ramos do aparelho de Estado e a configuração de uma nova hegemonia no seio bloco no poder. Assim, o autor salienta que a mudança da forma de Estado está associada à emergência de uma fração da classe dominante como fração hegemônica do bloco no poder, que passa a deter prioridade sobre o conteúdo da política estatal. Poulantzas não aborda Estado e economia como partes separadas da realidade social, como costumam fazer os institucionalistas.
Em sua análise, o autor demonstra como a intervenção do Estado fascista clássico foi fundamental para garantir e consolidar a transição do capitalismo concorrencial para o capitalismo monopolista na Alemanha e na Itália. Parafraseando Horkheimer, para quem aqueles que não falam em capitalismo deveriam se calar sobre o fascismo, Poulantzas assevera que devem se calar sobre o fascismo aqueles que não quiserem falar de imperialismo.
Outro aspecto fundamental da obra Fascismo e ditadura é a crítica à interpretação economicista do fascismo, advogada na época principalmente pela 3ª. Internacional Comunista (IC). Em linhas gerais, segundo o autor, o economicismo tende a se manifestar de várias maneiras quando:
(a) concebe que a crise econômica pode resultar inevitavelmente em uma crise revolucionária, como se a deterioração da situação econômica pudesse explicar unilateralmente a emergência de uma situação revolucionária. Tal concepção levou a IC ao diagnóstico de que o advento do fascismo no contexto de crise econômica resultaria na disjuntiva “fascismo ou socialismo”;
(b) caracteriza as classes sociais a partir de critérios exclusivamente econômicos, ignorando assim os fatores político e ideológico de constituição das classes que explicam a maior ou menor adesão, ou mesmo a resistência, de certas classes e frações ao fascismo;
(c) oculta ou subestima as diferenças existentes entre democracia e ditadura, consideradas como expressões dos interesses do grande capital – o que teria tido consequência sobre o próprio entendimento da natureza de classe do fascismo, como movimento político e como forma de regime, e contribuído para afastar os comunistas da construção de uma linha de massas antifascista (vide o caso da tese do social-fascismo, que vigorou como centro das teses IC de seu VI Congresso de 1928 até pelo menos o VII Congresso em 1935);
(d) trata a política como mero epifenômeno da economia, o que conduz a ignorar a dinâmica particular da crise política e ideológica, ligada ao processo de fascistização e às mudanças institucionais e sociais decorrentes da implantação do fascismo, que correspondem, respectivamente, à transformação da hierarquia interna, tanto dos ramos do aparelho de Estado, como das frações de classe que compõem o bloco no poder.
O que Poulantzas apresenta como alternativa analítica à interpretação economicista do fascismo? Aqui, ganha relevância a distinção que ele faz entre processo de fascistização e regime fascista em funcionamento. Uma das perguntas que Poulantzas procura responder é a seguinte: quais são as condições históricas que permitem a emergência do fascismo? De acordo com ele, o advento do fascismo seria marcado em linhas gerais:
(a) pela derrota estratégica prévia do movimento operário e popular, o que significa que o processo de fascistização não concorre com um forte movimento operário e popular organizado e situado na ofensiva política. Na verdade, tal movimento encontra-se na defensiva política, não fazendo sentido pensar a conjuntura aberta pelo processo de fascistização como um momento marcado pela polarização entre fascismo e socialismo. A fascistização só deita raízes nos lugares em que se depara com um movimento operário e popular débil e com organizações sindicais e partidárias com dificuldades de exercer a representação de amplas bases de trabalhadores;
(b) pela ofensiva política da burguesia em seu conjunto contra as massas operárias e populares em meio a um processo de crise de hegemonia no seio do bloco no poder, o que permite a emergência da pequena burguesia como força social organizada no partido fascista;
(c) pela constituição da aliança que se estabelece ao longo do processo entre a pequena burguesia e o grande capital, que logra confiscar e dirigir politicamente a base de massa do fascismo e avançar na direção da implementação da ditadura fascista. O momento de constituição desta aliança é caracterizado por Poulantzas como “ponto de não retorno”, indicando assim o caráter irreversível do processo de fascistização a partir daí;
(d) pela defasagem entre as funções de “fração hegemônica”, “fração reinante” e “classe detentora do Estado”. Esses são conceitos elaborados originalmente por Poulantzas na obra Poder político e classes sociais e que designam respectivamente a fração do bloco no poder que detém prioridade sobre a política estatal, a fração de classe que reina na cena política a partir de suas organizações políticas e a classe ou fração que ocupa o alto escalão do Estado.
Poulantzas observa que o processo de fascistização é marcado por uma crise de hegemonia e que o regime estabelecido permitirá a constituição de uma nova hegemonia no seio do bloco no poder: a hegemonia do grande capital. No que se refere à fração reinante, o autor chama a atenção para o fato que é a pequena burguesia organizada no partido fascista que se constituirá como fração reinante no processo de fascistização. No entanto, uma vez constituído o regime fascista, o partido passa a se subordinar à burocracia estatal e o grande capital assume a função de fração reinante. No que se refere à classe detentora do Estado, ela será composta principalmente pela pequena burguesia que preencherá os principais postos da cúpula estatal e ficará responsável pela execução da política estatal.
Tal tipo de análise é interessante por permitir observar a trama complexa das distintas dimensões do processo político e sua relação com as classes e frações de classe em presença: quem detém o poder político e a prioridade sobre a política estatal? Quem exerce a dominação ideológica na cena política? Quem executa a política estatal?
Como já destacado, Poulantzas se distancia das análises economicistas que tratam a política e a ideologia como mero reflexo da economia ou as classes sociais como sendo determinadas exclusivamente pelo econômico, assim como dos estudos influenciados pela problemática institucionalista, que tendem a conceber o funcionamento do Estado como sendo desconectado dos conflitos de classe e da economia. Cabe acrescentar que seu estudo teórico do fascismo desnuda ainda os limites das análises orientadas pela teoria das elites que descura da distinção entre quem exerce o poder político e a hegemonia política (classe politicamente dominante e hegemônica), de um lado, e quem executa a política estatal (classe detentora do aparelho de Estado), de outro. Ao preferir se confinar no exame morfológico dos membros do aparelho estatal, o elitismo oculta o conteúdo da política estatal e sua relação com os interesses de classe em presença numa dada conjuntura, caindo numa análise formalista do processo político.
Pelo que já mencionamos aqui, ao distinguir as funções de fração hegemônica, fração reinante e classe detentora do aparelho estatal, Poulantzas formula não só uma alternativa analítica ao formalismo presente na problemática elitista, como também oferece elementos para se pensar a complexidade do processo de fascistização e de consolidação da ditadura fascista.
O distanciamento de Poulantzas em relação à problemática elitista não se resume apenas aos aspectos supracitados, ele se manifesta também na análise da base social do fascismo. Se o elitismo tende a compreender as sociedades como sendo formadas por elites (racionais) e massas (irracionais) e a empregar as noções de “homem médio” ou “comum” para tratar de movimentos de massa como o fascismo, Poulantzas procura construir uma análise centrada na situação econômica e no posicionamento político ideológico das classes e frações de classe, o que pode ser observado na própria subdivisão dos capítulos: “Fascismo e classes dominantes”, “Fascismo e classe operária”, “Fascismo e pequena burguesia” e “O fascismo e o campo”, assim como de seus subcapítulos que se iniciam com proposições gerais que dão unidade ao fenômeno do fascismo clássico e se encerram com considerações sobre os casos concretos dos fascismos alemão e italiano.
Em tais capítulos e subcapítulos, Poulantzas demonstra toda a complexidade do fenômeno do fascismo, observando de forma rigorosa e sistemática: as contradições internas das classes e frações; o modo como essas classes e frações se situam economicamente diante do advento do capitalismo monopolista e da crise econômica; o lugar que essas classes e frações ocupam no processo político (ofensiva e defensiva); a maneira como elas influenciam e são impactadas pela crise de hegemonia, pela crise da relação entre representantes e representados, pela crise ideológica e pelo estabelecimento da ditadura fascista, etc.
Ao procurar analisar as contradições entre as classes e frações e observar as condições que permitem a cada uma delas aderir mais ativa ou passivamente ao movimento e à ditadura fascista, ou mesmo resistir a elas, Poulantzas afasta-se completamente da problemática elitista que se centra na noção de “homem médio” para caracterizar a base social do fascismo. Para o autor, tal base social não é constituída por uma massa amorfa e indistinta que seria transversal a todas classes e frações de classe. Ainda que ele reconheça que o fascismo consegue se inserir nas diferentes classes e frações de classe, o movimento político fascista constituído em partido é fundamentalmente composto por uma base social pequeno burguesa e urbana. Essa é a força motriz do movimento fascista.
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Seria inviável nessa pequena apresentação dar conta de descrever todas as contribuições teóricas formuladas por Poulantzas para analisar o fenômeno do fascismo. O livro mobiliza uma ampla bibliografia e seu autor procura não só levá-las em consideração, como se posicionar diante delas, construindo, de modo original e rigoroso, uma série de teses e subteses próprias sobre o objeto de investigação em tela. Quando escreveu Fascismo e ditadura, Poulantzas alertava já nas primeiras linhas de sua introdução que estudar o fascismo naquela conjuntura de 1970 correspondia a uma “necessidade política”, tendo em vista que o agravamento da crise do imperialismo vinha colocando na ordem do dia a questão do Estado “de exceção”, que preferimos chamar de Estado ditatorial.
Passados pouco mais de 50 anos da publicação deste livro, assistimos no Brasil e no mundo à emergência de um novo cenário de crise que combina várias dimensões econômica, política e ideológica e traz como novidade uma crise sanitária de grandes proporções. Nesse cenário multidimensional de crise, vimos observando o surgimento de vários movimentos de extrema-direita que reivindicam de maneira mais ou menos aberta a implementação de uma ditadura como resposta à crise. No Brasil, o movimento fascista passou a ganhar força desde que as forças de centro-esquerda e esquerda sofreram uma dura derrota estratégica com o golpe de 2016 e que a liderança de Jair Bolsonaro se projetou no cenário político nacional, sendo logo referendada como presidente da República com significativa votação nas eleições presidenciais de 2018.
Bolsonaro e sua base social jamais omitiram seu programa máximo, voltado à instauração de um regime ditatorial. Recentemente, durante uma formatura de Escola de Formação de Cadetes do Exército, em Campinas (SP), Bolsonaro chegou a afirmar sem rodeios que: “Alguns acham que eu posso fazer tudo. Se tudo tivesse que depender de mim, não seria este o regime que nós estaríamos vivendo. E apesar de tudo eu represento a democracia no Brasil”. Ainda que tenha feito reiteradas vezes apologia ao regime militar instaurado em 1964 no país e a figura de um reconhecido e abominável torturador, o bolsonarismo deu mostras que não tem predileção pelo modo tecnocrático de fazer política adotado pelos militares no passado, preferindo assim recorrer sempre que possível à guerra cultural contra as esquerdas e os democratas em geral e as instituições da democracia liberal, e à agitação e à mobilização permanentes de suas bases sociais, principalmente por meio das redes sociais e de manifestações de rua.
Certamente, a obra Fascismo e ditadura traz ricas contribuições que nos ajuda a compreender as expressões clássicas e contemporâneas do fascismo. Desvendar a esfinge do bolsonarismo e de manifestações congêneres é tarefa decisiva para as forças progressistas e socialistas e fundamental para construção de uma política de massa antifascista no Brasil e no mundo. Como nos alerta Poulantzas na conclusão deste livro: “se a história tem um sentido, é o de que ela pode servir de lição para o presente. Enganar-se atualmente, e ser incapaz de detectar a realidade de um eventual processo de fascistização, não poderia ser desculpável, se é que alguma vez o foi. O fascismo, como, aliás, os outros regimes de exceção não são ‘enfermidades’ ou ‘acidentes’: eles não acontecem apenas com os outros”.
*Danilo Enrico Martuscelli é professor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e editor do blog marxismo21 e autor, entre outros livros, de Crises políticas e capitalismo neoliberal no Brasil (CRV, 2015) [https://amzn.to/4cNX6r6]
Referência
Nicos Poulantzas. Fascismo e Ditadura: A III internacional face ao fascismo. Tradução: Bethânia Negreiros Barroso com revisão técnica de Danilo Enrico Martuscelli. Curitiba, Enunciado Publicações, 2021, 388 págs.
Nota
[1] O uso do conceito de forma de “Estado de exceção”, feito por Poulantzas, é objeto de controvérsia, em função da excepcionalidade atribuída ao fenômeno, o que, em princípio, implicaria na necessidade de se definir o que se entende por norma, ou tipicidade de determinada forma de Estado. Poulantzas não sistematiza essa diferença neste livro, nem, salvo engano, em outras análises. Além disso, observamos que a forma de Estado democrático está distante de se constituir como regra no desenvolvimento do Estado capitalista, especialmente se levarmos em consideração os sucessivos regimes ditatoriais que marcaram a história das formações sociais capitalistas dependentes. Nesse sentido, entendemos que o conceito de forma de Estado ditatorial é o que melhor se ajusta à própria formulação teórica poulantziana e permite demarcar a diferença com o conceito de Estado democrático