Francesc Ferrer i Guàrdia

Robert Smithson, Oito partes (projeto da mina de sal Cayuga)
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Por VALÉRIA DOS SANTOS GUIMARÃES*

Prefácio do livro recém-lançado de Ana Paula Neves Oliveira

Era 13 de outubro de 1911 quando os leitores de um dos muitos jornais anarquistas publicados no Brasil, A Lanterna, se depararam com uma impactante ilustração de capa. Ao centro, na parte superior, a flâmula do ideal, clara alusão à República, agita-se atrás de um monumento erguido ao catalão Francesc Ferrer i Guàrdia, ironicamente mais conhecido pelo seu nome em espanhol, Francisco Ferrer y Guardia, idioma da mesma nação que o condenou à morte.

Uma musa envolve seu busto oferecendo ao herói um ramo de louro da vitória, enquanto o olhar penetrante da estátua, para o qual converge toda a cena, encara com firmeza o observador. Uma mulher vestida em trajes catalães típicos – blusa clara com saia, um avental escuro por cima, lenço na cabeça e outro sobre os ombros –, encontra-se aos pés da estátua, provavelmente uma alegoria da Catalunha.

Todos louvam o monumento, incluindo meninos e meninas em idade escolar, braços erguidos a oferecer-lhe ramos de louros, olhares convergindo para a inscrição “La infância al iniciador de la enseñanza racionalista”, conjunto que constitui uma verdadeira cena épica.

A legenda localiza a imagem em uma cronologia particular, ligada à mais importante realização do homenageado, a inauguração da primeira Escola Moderna, em 1901 e à sua morte, em 1909. A Escola Moderna de Francesc Ferrer preconizava uma pedagogia laica e logo encontrou adeptos, multiplicando-se não só pela Espanha, mas por todo o mundo, inclusive o Brasil. O pentagrama envolto em uma coroa de louros na base do busto de Ferrer, portanto, vem reafirmar os símbolos do ensino secular.

A única figura destoante é claramente um símbolo da Igreja: um bispo que dá as costas para a cena, em postura consternada, braços cruzados, uma mão segurando a Bíblia, outra com punho cerrado levado à boca, lançando pelo canto dos olhos um olhar entre raiva e medo, com uma enorme cruz pendurada na batina evocando a inquisição.

A capa da Lanterna, porém, não trazia toda a dramaticidade que tinha a imagem original de Fermín Sagristá, ele próprio um anarquista que fez das páginas impressas de vários jornais libertários plataforma para suas ilustrações críticas, herdeiro que fora de uma longa tradição da sátira política, ousadia, aliás, que lhe rendeu a prisão e perseguição. A versão pioneira era colorida e terrivelmente impactante. Foi justamente uma das que o levou a amargar longos meses nos calabouços espanhóis, a despeito de protestos que se uniram em uníssono na defesa do já famoso artista.

Nela, um vermelho sangue tingia não só a bandeira do ideal ou o lenço que cobre o dorso da alegoria feminina da Catalunha, como escorre das colunas, toma os ombros do religioso sombrio e enxarca seus pés. Capaz de causar forte impacto no preto e branco dos jornais baratos, colorido o desenho traduzia ainda com mais veemência um embate agônico entre Razão e Fé, República e Monarquia. Tudo ali exaltava muito mais que uma escola e um teórico de uma nova linha pedagógica.

A Espanha havia conhecido uma breve República (1873-74) que em menos de um ano malogrou sob o jugo da Monarquia da Restauração Bourbônica. Erguer um monumento a Francesc Ferrer, portanto, era muito mais que exaltar o símbolo da educação anarquista e anticlerical a enfrentar o refluxo indigesto da opressora Igreja católica, religião oficial daquele Estado, único culto tolerado, único credo autorizado a reger a educação oficial.

Um monumento desse tipo encarava a resistência não só a um modelo de educação opressora. Era muito mais, era um brado contra a ignorância à que a maioria da população – os trabalhadores pobres – estava submetida havia séculos. O retorno da Monarquia que ameaçava os valores republicanos encontrou na defesa das concepções da Escola Moderna um espaço de luta. Sua simples existência aterrorizava não só a Igreja, mas a Coroa, e o peso da intolerância do Estado monárquico consolidou-se no fuzilamento do catalão, sem ser capaz, contudo, de matar suas ideias, alçando-o, ao contrário, à condição de mártir.

A insatisfação geral vinda da Generación del 98, da qual Francesc Ferrer também era, em certo sentido, fruto, condensava a insatisfação dos intelectuais públicos engajados contra os empecilhos àquela modernidade que teimava em não se realizar. Era sua figura também um polo de atração de todo o aparato da violenta repressão às divisas anticlericais que se manifestavam no controle de sindicatos e escolas vistos como núcleos difusores da resistência social e política.

Como nos explica Ana Paula em seu livro, o ápice dessa escalada de medo e sangue se deu na Semana Trágica de Barcelona (26 de julho a 2 de agosto de 1909), cujos lemas não eram os de Francesc Ferrer, mas sim dos mais variados grupos, de republicanos democratas a anarquistas. Dos milhares que fizeram parte daquela erupção catártica sem voz de comando e sem direção, unidos na revolta e na frustração, na resistência e na miséria, no ódio e no ressentimento, Francesc Ferrer era apenas mais um, e não seu ideólogo como tentaram fazer crer. Muitos foram os presos, todavia apenas cinco tenham recebido a pena capital, entre eles Francesc Ferrer.

Sua proposta de uma nova escola libertária que incentivava o sonho contra o pesadelo sombrio do medo e do pecado, a felicidade ao invés da expiação e da culpa, a realização plena do indivíduo em contraste à submissão castradora, a equidade de gênero contra a subserviência ao patriarcado, a leve luz da razão contra as pesadas trevas do fanatismo e da fé, parecia reunir tudo o que era de mais ameaçador ao poder constituído de Afonso XIII naquele efervescente meio político e intelectual. E assim se deu o fuzilamento, não para matar um homem, mas o que ele significava.

A injusta acusação de estar envolvido no atentado ao Rei espanhol Afonso XIII em 1906 ou a clara perseguição impetrada contra ele por supostamente ser um dos mentores da Semana Trágica, o que culminou na sua condenação à pena capital, denota o quanto sua pedagogia era letal para os conservadores saídos das hostes da Monarquia e da Igreja Católica.

A Lanterna, munida de sua divisa anticlerical e de combate, explícita no subtítulo, exaltava Francesc Ferrer, assim como o livro A Substância Universal de Albert Bloch e Paraf Javal que dava subsídio à educação racional e possibilitava que os alunos se tornassem “capazes de resistir aos assaltos da superstição” (Lanterna, SP, 13/10/1911).

Também registrava a força com que esse novo modelo se espalhou como rastro de fogo em mato seco: fundada no primeiro ano do novo século XX, a Escola Moderna de Ferrer “logo absorveu ou reorganizou grande número de escolas que haviam sido estabelecidas na Catalunha e em outras partes da Espanha” (Lanterna, SP, 13/10/1911) e apenas oito anos depois eram mais de 150 delas só na Catalunha, dez em Barcelona, e outras mais em Madri, Sevilha, Granada e até em outros países como Portugal, Holanda, Itália, chegando ao continente sul-americano, mais precisamente ao Brasil.

Por meio de uma imprensa periódica que levava a pauta das injustiças sociais e dos direitos dos trabalhadores aos quatro cantos do mundo, causa de apelo internacional devido a seu universalismo, a repercussão da morte de Ferrer deu ainda mais força às lutas locais. Se o fenômeno midiático do qual l’Affaire Dreyfus foi caso exemplar, os ecos do fuzilamento de Francesc Ferrer não ficaram atrás.

Homens públicos levantaram-se contra ou a favor de uma divisa que logo se mostrou transnacional, ultrapassando em muito o homem e o alçando à condição de patrimônio universal. No Brasil, encontrou na pena de um dos nomes mais importantes da história do anarquismo brasileiro, Edgard Leuenroth, o mediador que precisava para que sua história não só se tornasse conhecida, como ganhasse ares de plataforma contra um autoritarismo que não encontrava fronteiras, projeto de uma educação racional, científica e anticlerical consubstanciado na fundação de várias iniciativas inspiradas no seu modelo.

Portanto, não é exagero fiar-se na hipótese que a autora tão bem articula de que a campanha fomentada pela Lanterna esteja na base do surgimento das Escolas Modernas no 1 e no 2 em São Paulo ou da Escola Moderna de Petrópolis, ambas de 1913, em terra tão distante e com uma história tão distinta da Espanha. Durante o segundo decênio do século XX, portanto após a morte de Francesc Ferrer e sua elevação a mito, mitificação esta levada a cabo no Brasil pela Lanterna, escolas modernas dariam sequência às já existentes escolas anarquistas como a Escola Libertária Germinal (1903, São Paulo), a Universidade Popular de Ensino Livre de Elysio de Carvalho (1904, Rio de Janeiro), a Escola Elisée Reclus (1906, Porto Alegre), a Escola Noturna da Federação Operária (1907, Santos), sem contar os inúmeros Centros de Cultura Social e Bibliotecas Populares espalhados pelo país.

A pesquisa de Ana Paula é, assim, mais que uma análise das páginas de um jornal libertário. É uma investigação movida por esta nossa indignação contra uma educação acrítica, dogmática, centrada na repressão e submissão, por vezes não-científica e sempre alienante. É um estudo que joga luz sobre a possibilidade real de se insurgir contra a mediocridade em prol de uma formação crítica, sobretudo uma educação que estimule a realização plena do ser humano em busca de torná-lo capaz não só de se projetar como indivíduo, mas como um ser social.

Tão subversiva e intimidadora soava essa proposta, que não só Francesc Ferrer foi alvejado, como seguimos, até hoje, dia após dia, sendo alvo por defender uma pedagogia emancipadora. A luta não é só contra o obscurantismo da educação anticientífica ou mesmo negacionista, o que já não é pouco, mas também contra tudo aquilo que limita o desenvolvimento criativo voltado para a felicidade, que tenta impor a disciplina humilhante aos alunos, que nesta perspectiva não devem passar de um exército de mão de obra dócil, deprimido e voltado à produção mecânica.

A divisa de Francesc Ferrer continua viva, por isso nos toca tanto. Fato notável foram os inúmeros monumentos erguidos em sua homenagem. Quando Sagristá fez aquela ilustração incrível, reproduzida com ou sem cor por todo mundo, um busto a Francesc Ferrer não existia! Foi ali, no papel impresso de um jornal barato, que primeiro se ergueu um monumento a Ferrer, para então surgirem tantos outros pelo mundo como aquele erigido pelo italiano Ivo Paccini em 14 de setembro 1914 em Roccatederighi, uma pequena vila na região da Toscana.

Alvo da sanha fascista, foi removido e escondido por 20 anos para ser reinaugurado exatos 34 anos depois, em 14 de setembro de 1948 trazendo a inscrição: “Francisco Ferrer – 14-9-1914 – questo monumento abbattuto dai fascisti nel 1924 risorge pervolontà del popolo 1948” (Francisco Ferrer – 14-9-1914 – esse monumento demolido pelos fascistas em 1924 é ressuscitado pela vontade do povo em 1948). E foi dali, das páginas de jornais, que esse imaginário se erigiu em monumento, pela pena e buril daqueles que viram no sangue escorrido de Francesc Ferrer o mito que Ana Paula vem decifrar.

*Valéria dos Santos Guimarães é professora de história na Unesp. Autora, entre outros livros, de Notícias diversas: suicídios por amor, leituras contagiosas e cultura popular em São Paulo dos anos 1910 (Mercado de Letras).

Referência


Ana Paula Neves Oliveira. Francesc Ferrer i Guàrdia. Um mito em disputa nas páginas anticlericais de “A lanterna”. São Paulo, Intermeios, 2024. [https://shre.ink/g1Fs]


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