Por JOSÉ PAULO NETTO*
Apresentação do livro clássico de Gustav Mayer, recém editado no Brasil
A passagem do ducentésimo aniversário de nascimento de Friedrich Engels, comemorada em novembro de 2020, foi objeto de eventos acadêmicos, culturais e políticos que, mesmo em meio à pandemia que nos dias de hoje inferniza a vida de centenas de milhões de pessoas – afetando mortalmente sobretudo as populações trabalhadoras –, realizados nos centros de todo o mundo civilizado. Não é infundado crer que, entre as homenagens a serem tributadas no decurso do presente ano ao maior amigo e camarada de Karl Marx, contar-se-á o enriquecimento da bibliografia que a ele diz respeito.
No Brasil, esta edição da pioneira e consagrada biografia de Engels por Gustav Mayer (a seguir designado GM) reproduz o texto do que, em seu prefácio de 1935, o autor declarou ser “esta nova biografia, que escrevi para o mundo anglófono”. O texto, posteriormente conhecido como “edição condensada” – constitui um excelente aporte àquele enriquecimento no âmbito da documentação existente em nosso idioma, no qual, salvo erro, GM permaneceu inédito até o lançamento deste livro.
Lançamento, pois, com que a Boitempo Editorial participa dos eventos relativos à passagem dos duzentos anos do nascimento de Friedrich Engels e, ao mesmo tempo, viabiliza o acesso direto do público luso-brasileiro (e dos outros países da nossa comunidade linguística) ao notável trabalho de GM – um intelectual que avançou do terreno do jornalismo à seara da história social, inscrevendo-se teórica e politicamente no marco do pensamento socialdemocrata.
1.
É preciso, logo na abertura desta brevíssima apresentação, fazer duas observações relativas ao que afirmamos no parágrafo precedente. A primeira diz respeito ao caráter pioneiro do trabalho de GM, resultado da ingente pesquisa que ele realizou aproximadamente entre 1913 e a entrada dos anos 1930 – tal caráter é enfatizado por todos os especialistas em F. Engels. De fato, até o fim da segunda década do século XX, quando GM concluiu o primeiro tomo da sua biografia de Engels, não se conhecia nenhum estudo sistemático sobre a vida e a obra do autor do Anti-Dühring: apenas circulavam depoimentos e sínteses informativas divulgados pela imprensa ligada ao movimento socialista, bem como evocações esparsas contidas no memorialismo de figuras que lidaram com Engels (aliás, não era muito diferente o cenário em que F. Mehring trabalhou para publicar a sua também grande e pioneira biografia de Karl Marx). E tal estado de coisas praticamente pouco se modificou até quando GM deu por terminado o seu segundo tomo.
A observação seguinte é pertinente à qualificação da biografia mayeriana de Engels como obra consagrada: desde o momento em que veio a público, o trabalho de GM foi objeto de calorosa recepção entre acadêmicos e estudiosos situados nos mais diversos espaços do espectro teórico e político – recepção que tem resistido ao passar do tempo. Detenhamo-nos minimamente sobre esse aspecto, que decerto merece uma atenção menos epidérmica do que a que lhe dedicamos aqui.
Em 1935, Hans Speier, no que talvez tenha sido a primeira resenha elaborada por uma figura do mundo acadêmico, prognosticou que o livro de GM contribuirá para uma melhor compreensão da Alemanha, bem como das origens do socialismo. Permitam-me acrescentar que o livro também é um monumento literário à amizade ímpar entre Engels e Marx.
Cerca de quinze anos depois, Maximilien Rubel, que logo se tornaria um respeitado marxólogo, escrevia, referindo-se expressamente à biografia de Engels preparada por GM:
Ao mesmo tempo em que Marx encontrara em Mehring seu primeiro grande biógrafo, Engels o encontraria na pessoa de Gustav Mayer, notável pesquisador e historiador, que sabia usar criteriosamente as riquezas dos arquivos de Marx-Engels preservados pelo Partido Socialdemocrata Alemão.
Na segunda metade dos anos 1970, também o prestigiado acadêmico inglês G. Stedman Jones não hesitou em formular um juízo francamente elogioso ao livro de GM: “Engels foi objeto de uma das melhores biografias eruditas do século XX, a de Gustav Mayer, produto de uma pesquisa que durou mais de trinta anos e de um conhecimento da história operária e socialista alemã do século XIX que não encontra paralelo”.
Quase à mesma época em que Jones assim se exprimia, aquele que muitos consideram um dos maiores historiadores marxistas do século XX, Eric J. Hobsbawm, lamentava que, por causa da ascensão de Hitler ao poder, “a monumental biografia de Engels escrita por Gustav Mayer, uma obra caracterizada por extraordinária erudição, teve de ser publicada em 1934 numa editora holandesa de exilados, permanecendo virtualmente desconhecida dos marxistas mais jovens da Alemanha Ocidental do pós-guerra até os anos [19]70”.
Vê-se, pela voz desta diminuta – mas escolhida por sua alta qualificação admitida quase unanimemente – amostragem intelectual, que a obra de GM sobre Engels tem sido objeto, ao longo de décadas, de uma recepção de fato muito generosa e favorável. Aliás, no que concerne estrita e especificamente aos meios marxistas, nos quais a referência a ela é reiterada, só um autor realmente importante a apreciou com reservas dignas de nota – David Riazanov – e o fez por razões que, a nosso juízo, não são inteiramente sustentáveis. É preciso que nos detenhamos rapidamente sobre este ponto.
David Riazanov (1870-1938) não se destaca no quadro da tradição marxista apenas por ter sido um profundo e competente estudioso de Marx e Engels, mas ainda pela sua importância como responsável pelo primeiro grande projeto editorial para reunir as obras de ambos, conhecido por MEGA, acrônimo de Marx-Engels Gesamtausgabe [Obras completas de Marx e Engels]. Riazanov, seguramente, só conheceu o primeiro tomo (1920) da biografia preparada por GM e, provavelmente, não teve acesso a títulos do autor lançados posteriormente; lembre-se que, em janeiro de 1931, teve início o seu martírio político: exonerado da direção do Instituto Marx-Engels/IME, por ele fundado dez anos antes, foi preso e logo degredado para Saratov; em 1937, foi novamente preso e, no ano seguinte, executado por sicários a serviço de Stálin.
O juízo de Riazanov sobre a biografia de Engels por GM está expresso numa conferência de 1921. Ei-lo, muito sumariamente: no respeitante à vida do jovem biografado, Riazanov assinala que “cabe reconhecer que Gustav Mayer tem méritos ao descobrir fatos importantes da vida de Engels até 1842”. Cuidando do labor intelectual de Engels à época da juventude, salienta o exame de partes d’A ideologia alemã, até então não publicada; avalia esse exame como o ponto alto do livro, afirmando que GM abordou com originalidade elementos do texto Marx-engelsiano – mas critica a falta de indicações documentais precisas das passagens analisadas por GM, o que sinaliza, a seu ver, deficiências científicas que, provenientes da prática jornalística, comprometem o trabalho do historiador.
E aponta o que lhe parece a razão de fundo das limitações que constata: GM “é um escritor burguês. Só recentemente ele se tornou socialdemocrata ou, mais exatamente, socialdemocrata nacional e alemão. Pela sua formação, ele é incapaz de compreender que o marxismo é uma doutrina filosófica e revolucionária. Na melhor das hipóteses, ele vê em Engels um bom patriota alemão”.
Algumas das reservas que Riazanov faz à parte da biografia de Engels publicada em 1920 até podem considerar-se procedentes, mas não são extensíveis ao conjunto da obra, completada no segundo tomo. E não é sustentável o que chamamos acima de “razão de fundo” – também e inclusive porque a posição socialdemocrata de GM era tudo, menos recente: vinha de meados da primeira década do século. Parece-nos que o viés político do juízo do comunista Riazanov decerto refletia imediatamente a conjuntura posta pela sangrenta repressão que segmentos da direita socialdemocrata (F. Ebert e G. Noske) comandaram contra a liderança espartaquista, culminando com o assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht em 1919 – evento que abriu um fosso então intransponível entre os socialdemocratas e os comunistas.
Considerando estudos sobre a natureza do trabalho biográfico e mais de um século de aproximações biográficas a Marx e a Engels, entendemos que o fato de não ser marxista (classificação ela mesma polêmica) não impede, em e por princípio, que um estudioso vinculado a uma perspectiva teórico-metodológica e ideopolítica diversa da de Marx seja capaz de oferecer da sua vida e da sua obra (e das de Engels) uma abordagem compreensiva e válida.
É real a possibilidade de um biógrafo não marxista, superando com isenção científica e riqueza analítica limitações da sua perspectiva teórico-metodológica, apreender, de modo fiel, a significação particular da vida e a essencialidade da obra do seu biografado – desde que seja portador de substantiva bagagem cultural, opere com honestidade intelectual e dê provas de dedicação ao trabalho, rigor investigativo e paixão pelo seu objeto. GM reuniu esses requisitos e atributos e demonstrou, na sua biografia de Engels, como essa possibilidade se realiza concretamente. Isto posto, digamos algo sobre o próprio GM.
2.
Gustav Mayer nasceu, primeiro filho de uma família judia voltada para atividades comerciais, a 4 de outubro de 1871, em Prenzlau, pequena cidade do norte da Alemanha. Concluídos os seus estudos universitários, em 1896 empregou-se no Frankfurter Zeitung [Jornal de Frankfurt], credibilizado periódico que circulou de 1856 a 1943, reportando temas econômico-financeiros. Como correspondente do jornal no exterior, GM trabalhou na França, na Holanda e na Bélgica – quando estabeleceu relações com destacados dirigentes políticos do movimento socialista reformista. O casamento, em 1905, com a filha de uma família de posses, propiciou-lhe condições para, sem abandonar completamente o jornalismo, dedicar um tempo cada vez maior à investigação da história do movimento operário alemão – ele inicia, então, as pesquisas (primeiro em Heidelberg, depois em Berlim) que haverão de torná-lo, com o passar dos anos, um dos mais reputados conhecedores dessa história.
O primeiro resultado expressivo dessas pesquisas vem a ser publicado em 1909: Johann Baptist von Schweitzer e a social-democracia: uma contribuição à história do movimento operário alemão. Schweitzer (1833-1875) dirigiu por três anos, entre 1864 e 1867, o órgão oficial – Der Socialdemokrat [O Socialdemocrata] – da Associação Geral dos Operários Alemães, fundada em 1863 por Ferdinand Lassalle (1825-1864); após a morte prematura de Lassalle, ele assumiu importante papel na organização que marcaria profundamente a evolução do proletariado alemão, numa complexa relação com a corrente marxista surgida depois.
Nesse ensaio político-biográfico de 1909 já comparece o objeto central e a linha diretriz do trabalho de historiador de GM, que se desenvolverá a partir de então: a constituição do movimento socialista alemão, com uma atenção e uma simpatia especiais em face da vertente socialdemocrata lassalliana. E, nos anos prévios à Primeira Guerra Mundial, GM avança em suas pesquisas e tematiza, com argúcia e erudição, num ensaio de 1912, Os inícios do radicalismo político prussiano no pré-março.
Em 1914, recrutado pelas autoridades militares, GM é enviado para a Bélgica, onde presta serviços administrativos durante a ocupação. Naturalmente, a guerra interrompe as suas investigações, mas ele encontra condições para publicar um texto significativo – O marxismo alemão e a guerra. Cessadas as operações bélicas e em meio à repressão das tentativas revolucionárias que sacodem o país, GM retoma suas pesquisas e logo procura ingressar na vida universitária: submete à Universidade de Berlim uma dissertação para habilitar-se a um posto na instituição; mesmo contando com o apoio de personalidades destacadas, seu ingresso foi impedido por um grupo de professores reacionários, com Dietrich Schäfer (1845-1929) à frente.
A oposição ao seu nome teve natureza nitidamente política: as convicções teóricas e ideológicas socialdemocráticas de GM despertavam fortes suspeitas nos segmentos tradicionalistas – apesar de ele, identificando-se com seus setores moderados e não-marxistas, jamais ter se filiado formalmente ao Partido Socialdemocrata. Apenas em fins de 1919 ele foi admitido na Universidade e só em 1922 tornou-se professor associado da cadeira de História da Democracia e do Socialismo; mais tarde, foi nomeado membro da Comissão Histórica dos Arquivos do Império, na qual se contrapôs ao domínio dos militares na historiografia oficial.
Na entrada da década de 1920, a sua reputação de pesquisador de alta qualificação já era amplamente reconhecida, consolidada que fora com a publicação do primeiro tomo da biografia de Engels. Não por acaso, os criadores do Institut für Sozialforschung [Instituto de Pesquisa Social], fundado em Frankfurt, em 1922-1923, base da posteriormente famosa “Escola de Frankfurt”, quando tiveram que buscar o substituto do seu primeiro diretor recém-falecido, Kurt Gerlach (1866-1922), logo contactaram GM, que era o seu nome preferido. Mas GM não aceitou a proposta que lhe fez Félix Weil – e o sucessor de Gerlach acabou por ser o marxista Carl Grünberg (1861-1940).
Justamente a década de 1920 foi a mais produtiva e fecunda da vida intelectual de GM – então, ele pôde dedicar-se intensivamente às suas pesquisas históricas. Preparando-se para redigir o segundo tomo da biografia de Engels, GM examinou farta documentação, acessou fontes que até então dormitavam nos arquivos do Partido Socialdemocrata em Berlim e, em 1928, em Moscou, quando esteve no Instituto Marx-Engels/IME (criado por Riazanov, como vimos páginas atrás), recolhendo informações de primeira mão através da sua interlocução com figuras proeminentes da teoria e do movimento socialistas – Karl Kautsky, Eduard Bernstein e Conrad Schmidt (1863-1932). Nesses anos 1920, contudo, GM não investigou exclusivamente materiais relativos a Engels – também deu prosseguimento à pesquisa centrada no processo constituinte da tendência socialdemocrata vinculada às atividades de Lassalle; é assim que pôde organizar os seis volumes da correspondência e de escritos de Lassalle e, ainda, um volume reunindo a correspondência e as conversações entre Lassalle e Bismarck.
A chegada de Hitler ao poder obrigou GM, como a milhares de outros alemães – especialmente intelectuais, artistas, cientistas e militantes democratas da mais diversa coloração política, liberais, socialistas e comunistas – ao exílio. É certo que GM deixou a Alemanha em 1933, em condições financeiras muito difíceis e um dispositivo “legal” nazista logo impediu que judeus emigrassem sem pagar taxas altíssimas, ademais de perderem, no exterior, direitos adquiridos de pensões e fundos bancários. Não se conhecem detalhes da passagem de GM e sua família, a mulher e os dois filhos, pela Holanda; mas sabe-se que, em 1936, estavam estabelecidos em Londres.
O exílio na Inglaterra marcou, para GM, a amarga etapa final de sua vida. Dominando mal o inglês falado, não pôde se fixar como docente na universidade – mas integrou-se na equipe de pesquisadores do IISH baseados em Londres e, sem receber remuneração, em atividades na London School of Economics. E certo é que, no decurso do exílio, as condições financeiras da família Mayer asseguravam aos seus membros apenas uma existência muito modesta.
Os vários depoimentos sobre o exílio de GM sugerem que ele se manteve como um outsider na Inglaterra. E não só por dificuldades de natureza econômica – estas pesaram, mas foram decisivas aquelas motivadas pela perda das condições mínimas de trabalho, pelos informes das barbaridades operadas pelo nazismo, dos sofrimentos impostos aos trabalhadores alemães, do afastamento dos amigos que tiveram impedida a continuidade do seu trabalho e despedaçadas as suas vidas e, enfim, pelo drama que o atingiu diretamente – o suicídio do seu primogênito, em 1941. É fato que GM se empenhou esforçadamente para prosseguir seus estudos históricos, com ensaios enxutos e substantivas reflexões e apontamentos. Contudo, para além das suas dores anímicas, o avanço na faixa dos setenta anos já cobrava o seu preço.
A conta derradeira foi resgatada a 21 de fevereiro de 1948, data da sua morte na Inglaterra.
3.
Creio ser de valia para o leitor da obra de GM uma sinopse, mesmo que esquemática e pobre, do conteúdo da edição de 1934, para que ele possa referi-lo ao que encontrará na versão condensada de 1936.
A edição de 1934, nos treze capítulos que compõem o seu primeiro tomo, ocupa-se da vida e dos escritos de Engels do seu nascimento (28 de novembro de 1820) à sua chegada, na condição de exilado, a Londres (novembro de 1849) – cobre, pois, os 29 anos iniciais do biografado. Desses treze capítulos, os sete primeiros deixam salientes a erudição de que GM dispõe no trato da história política e cultural da Confederação Germânica e a originalidade da sua pesquisa, trazendo à luz elementos, à época ignorados, da precoce atividade intelectual de Engels (especialmente as suas primícias literárias e jornalísticas) e a relevância da sua correspondência, até então também pouco explorada, com amigos (os irmãos Graeber), familiares (em especial a irmã querida, Marie) e intelectuais. É notável a perspicácia de GM no rastreio das pistas que permitem dilucidar os dilemas religiosos, as opções literárias e as escolhas filosóficas do jovem Engels, assim como a sua evolução nesses domínios. A opção comunista de Engels – atendendo ao seu íntimo impulso para vincular pensamento e ação – é clarificada com a indicação das suas fontes alemãs (nomeadamente Feuerbach e Moses Hess, catalisadas pela leitura de Hegel) e o aprendizado proporcionado pela estância de 21 meses (1842-1844) na Inglaterra. Também é percuciente a análise que GM oferece da produção intelectual de Engels entre 1841 e 1844 – suas intervenções na imprensa cartista inglesa, na Rheinische Zeitung [Gazeta Renana] e nos Deutsch-Französische Jahrbücher [Anais Franco-Alemães], particularmente o ensaio “Esboço de uma crítica da economia política” e a sua análise de Thomas Carlyle.
Os capítulos seguintes (VIII-XIII) abordam os conturbados anos 1844-1849 – do início da amizade e da colaboração entre Marx e Engels à derrota da revolução alemã. Já para esse período, e será assim pelos que se referem aos anos posteriores a 1850, GM teve acesso a um elenco maior de fontes documentais já conhecidas, de modo que o pioneirismo da sua pesquisa original atenua-se em comparação com o exercitado nos capítulos precedentes. Mas é impressionante a massa de informações que, organizadamente, ele oferece ao seu leitor, com destaque para as deslocações, viagens e atividades político-militares de Engels pela Alemanha, Bélgica e França.
Igualmente, são preciosas as suas abordagens seja da intervenção engelsiana na Neue Rheinische Zeitung [Nova Gazeta Renana], seja do papel de Engels na preparação dos congressos da Liga dos Comunistase na redação das obras Marx-engelsianas daqueles anos (nomeadamente n’A ideologia alemã, mas ainda n’A sagrada família e no Manifesto comunista). As notações de GM sobre o processo revolucionário de 1848-1849 – e não só na Alemanha – são absolutamente fecundas e atestam o seu profundo domínio do material histórico pertinente ao movimento das classes sociais. E, no fecho desse capítulo, tem-se uma síntese esclarecedora das condições do refluxo revolucionário e da vaga restauradora que se lhe seguiu.
O segundo tomo, bem mais substancioso, elaborado em quinze capítulos, reconstitui a vida e a obra de Engels da chegada a Londres à sua morte (05 de agosto de 1895). De fato, todas as atividades de Engels – como industrial, político, teórico e publicista – foram minuciosamente examinadas por GM, que também apreendeu, com sensibilidade e espírito aberto, as suas relações pessoais e familiares. Nada de essencial da personalidade de Engels – na sua condição de indivíduo singular e de homem público – escapou à lupa do biógrafo, que, ele próprio, alcançava à época dos avanços da sua pesquisa a plena maturidade intelectual. O seguro domínio da história econômica e político-social da Europa na segunda metade do século XIX e do desenvolvimento, no seu marco, do movimento operário ofereceu a GM as bases factuais para acompanhar com cuidado e rigor o evolver do pensamento e da ação de Engels nos anos que vão da derrota do processo revolucionário de 1848-1849 ao período de ascensão da socialdemocracia alemã.
Nas páginas desses quinze capítulos, muitíssimas delas verdadeiramente magistrais, registram-se desde as lições que a história impôs às ilusões engelsianas (e também de Marx) acerca da iminência de um momento revolucionário europeu subsequente a 1848-1849 às expectativas diante das lutas irlandesas pela independência. Verifica-se a íntegra solidariedade de Engels a Marx – nos planos, ademais do financeiro, pessoal, intelectual e político –, solidariedade que era estendida a todos os que se viam perseguidos politicamente. Consigna-se a ampliação dos interesses científicos de Engels – que acabarão por envolver técnicas e estratégias da ação bélica, as ciências da natureza e as teorias políticas. Acompanha-se a evolução do seu pensamento em face das transformações geopolíticas em curso numa Europa que assiste à crise do bonapartismo francês, à experiência da Comuna, à emergência de uma Alemanha reunida sob o tacão imperial da Prússia e às tensões provindas de persistentes e inatendidas demandas por unidades nacionais (Itália, Polônia).
Constata-se o seu renovado interesse por processos políticos ocorrentes nas periferias europeias (Turquia, Rússia) e na América do Norte. Enfatiza-se a sua atenção para com as mudanças organizacionais do movimento operário internacional (Associação Internacional dos Trabalhadores, Internacional Socialista) aos nascentes partidos operários de âmbito nacional e, em especial, no cenário alemão, com a constituição da socialdemocracia e a dinâmica dos seus debates internos. E sublinha-se o seu contributo para dar uma configuração formal-sistemática às ideias e teses formuladas em colaboração com Marx desde meados dos anos 1840.
Dessas páginas resulta o perfil de um revolucionário firme nas polêmicas políticas (o seu duro trato de Lassalle e de Bakunin, dos lassallianos e dos anarquistas) e teóricas (a crítica a Dühring) – e que, na defesa de princípios que lhe parecem indispensáveis para a vitória do projeto proletário, não poupa de crítica sequer provados camaradas de luta (Liebknecht). Mas que combina esses traços com a solicitude do revolucionário mais experiente no diálogo e no aconselhamento dos mais jovens. Resulta, enfim, o retrato de corpo inteiro de um homem que conviveu e colaborou por cerca de quarenta anos com um gênio, sem que jamais tenha alimentado o mínimo sentimento de inveja e/ou emulação – antes estimulando, compreendendo e admirando a superioridade teórica do companheiro, com a plena consciência de que, como um “segundo violino”, possuía luz própria.
Não são exatamente estas as páginas que o leitor percorrerá adiante: já sabe este leitor que terá nas mãos – como se assinalou no segundo parágrafo desta “Apresentação” – a versão condensada, com a chancela do próprio autor, da biografia de F. Engels publicada originalmente na Holanda em 1934. Esta não é a oportunidade para indicar o que formal e conteudisticamente as diferencia. Mas valem alguns poucos esclarecimentos.
As duas versões, a da edição de 1934 e a da condensada de 1936, carecem de indicações detalhadas e precisas das fontes bibliográficas originais de que GM retirou extratos e citações do seu biografado – indicações que caracterizam um procedimento formal relevante, que no século XX acabou por ser adotado de modo geral como exigência da escritura de corte acadêmico-científico.
Saliente-se, porém, um dadoque não pode ser descartado na apreciação do trabalho de GM: nenhum de seus leitores qualificados identificou qualquer adulteração das formulações engelsianas citadas por ele; se há a possibilidade de discrepar das suas interpretações, nunca a sua fidelidade à letra de Engels foi posta em questão. E não se esqueça que muito dessa carência relaciona-se aos originais de Marx-Engels a que GM pôde recorrer, parte significativa dos quais ainda não tinham sido impressos e publicados ao tempo da elaboração da biografia; recorde-se que relevantes materiais Marx-engelsianos só vieram a público com o lançamento, a partir de 1927, da MEGA projetada por Riazanov– entre eles, bastante da sua correspondência e mesmo textos essenciais (como os d’A ideologia alemã), que só viram a luz em 1932 e a que GM teve acesso ainda na condição de manuscritos inéditos.
Está fora de discussão que a ponderável documentação autógrafa de Marx e de Engels tornada de conhecimento público depois que GM concluiu a sua biografia de Engels permitiu aos pesquisadores o tratamento de textos, dados e informações que não estiveram ao alcance de GM. Evidentemente, o domínio dessa documentação possibilitou – e continua possibilitando – aos especialistas e estudiosos de Marx e de Engels uma visão mais ampla e rica para a reconstrução histórica da vida e da obra de ambos que aquela com a qual GM operou; entretanto, os ganhos registrados com e na bibliografia divulgada depois de 1932 – ganhos realmente substanciais – não anacronizaram o trabalho de GM, nem lhe contestaram a sua condição de biografia clássica (tal como, de maneira similar, ocorreu com a biografia de Marx por Mehring). Como tal, ela permanece uma referência inarredável para a explicação e a compreensão da vida e da obra de Engels.
Sobressaem como traços garantidores da perdurabilidade referencial desta biografia tanto o seu método compositivo quanto os resultados a que chegou. GM não viu em Engels um grande homem que aparece na cena do movimento operário como um deus ex machina, nem, ao contrário, como um epifenômeno teórico-cultural desse movimento. O biógrafo demonstrou-se capaz de apreender a vida e a obra do seu biografado como um processo em que um sujeito singular constituiu-se como personalidade expressiva e representativa do seu tempo situando-se simultaneamente como ator e autor de sua história, recepcionando – através de mediações econômicas, sociais e culturais – os condicionamentos que lhe impunha a sua origem de classe e direcionando-se conscientemente para outra opção de classe; a particularidade desse sujeito constituiu-se como um projeto que transcendeu as suas determinações originárias ao incorporar idealmente determinações alternativas objetivamente possibilitadas pela sociedade em que ele se movia. Desse procedimento do biógrafo resultou a reconstituição da vida e da obra do biografado como uma unidade dinâmica: o Engels de GM aparece como um homem em um desenvolvimento unitário, da infância à senectude ; resultou um Engels único e singularíssimo e, entretanto, no limite, na sua grandeza e nas suas limitações, inteiramente sociabilizado e historicizado. Em suma: o biógrafo foi absolutamente fiel ao biografado.
Um comentário final ainda cabe sobre o texto condensado em 1936 da biografia de F. Engels em face do texto de 1934. É dispensável sublinhar que, desta versão condensada (que, levando-se em conta o volume de páginas, contém aproximadamente pouco mais de um terço do material impresso em 1934), estão excluídas remissões histórico-políticas expressivas e muito do detalhamento factual, das eruditas referências culturais, da finura analítica e mesmo do apuro estilístico da obra de 1934. Parece evidente que, resumido, todo e qualquer texto revela perdas diante da sua grandeza original; mas é fato que esta versão compactada da biografia de F. Engels, se cotejada com a opus magnum que lhe deu origem, nada perdeu da sua essencialidade – nela também está realizada a tarefa principal a que GM entregou-se nos melhores anos da sua vida e que foi formulada por Goethe, mestre também nessa seara:
A tarefa principal da biografia é […] descrever e mostrar o homem em suas relações com a época, até que ponto o todo [dessas relações] se lhe opõe ou o favorece, que ideias ele forma em resultado disso a respeito do mundo e da humanidade e – se é artista, poeta, escritor – de que modo as reflete.
Por isto, e por tudo o mais, só nos cabe saudar o ingresso da obra de GM no repertório bibliográfico do nosso idioma, que é mesmo – valha o perdão pelo recurso ao que se tornou lugar-comum, porém verdadeiro – a última flor do Lácio.
*José Paulo Netto é Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Autor, entre outros livros, de Karl Marx – uma biografia (Boitempo).
Referência
Gustav Mayer. Friedrich Engels – uma biografia. Tradução: Pedro Davoglio. São Paulo, Boitempo, 2020.