Por TERESINHA PINTO*
A destruição em Gaza não é apenas humana: é ecológica, com aquíferos contaminados, solos envenenados e um legado tóxico que silenciosamente prolonga o genocídio
A devastação em Gaza é, à primeira vista, uma tragédia humana: vidas ceifadas, famílias destroçadas, bairros inteiros apagados do mapa. Mas há outra camada de destruição – silenciosa, menos visível, e talvez ainda mais duradoura – que se desenrola junto a cada explosão: a devastação ambiental. Em Gaza, o colapso ecológico não é um subproduto do genocídio; ele é parte inseparável da catástrofe.
A destruição que se infiltra no solo, na água e no ar
Quando a guerra avança, ela não destrói apenas pessoas e edifícios: ela desestrutura sistemas ecológicos inteiros. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEP), Gaza enfrenta um verdadeiro colapso do saneamento. Estações de tratamento de esgoto foram destruídas, tubulações vitais foram rompidas, e o já frágil aquífero costeiro – um dos poucos recursos hídricos do território – encontra-se provavelmente contaminado.
A destruição da infraestrutura hídrica significa mais do que a interrupção do abastecimento: significa água intragável, doenças infecciosas, proliferação de vetores, e a lenta intoxicação de um ambiente já sobrecarregado.
Os números impressionam. As cinco estações de tratamento de esgoto de Gaza foram paralisadas. A gestão de resíduos sólidos entrou em colapso: os aterros deixaram de ser acessíveis, e pilhas de lixo se acumulam em áreas urbanas, liberando contaminantes no solo, na água e no ar. Em algumas regiões, o lixo é queimado a céu aberto – não por escolha, mas por desespero – liberando toxinas perigosas.
As explosões multiplicam essa degradação. Munições deixam rastros de metais pesados; escombros contêm amianto e substâncias tóxicas; resíduos médicos se misturam ao entulho. Estima-se que dezenas de milhões de toneladas de destroços tenham sido acumulados desde 2023 — escombros que, além de representarem perigo físico, carregam um passivo ambiental profundo.
A terra que não respira
A destruição da vegetação revela um dano talvez irreversível: segundo a UNEP, Gaza perdeu cerca de 97% das árvores de cultivo, 95% dos arbustos e 82% das culturas anuais. A agricultura – que já sobrevivia com dificuldade – foi praticamente aniquilada.
E quando árvores desaparecem, não é apenas comida que falta. Desaparecem ciclagens naturais de água, sombreamento, fixação do solo, proteção contra erosão e infiltração de chuvas. O solo exposto fica vulnerável à desertificação, e veículos militares compactam essa terra até o ponto de as raízes, um dia, talvez não encontrarem mais onde se fixar.
A reserva de Wadi Gaza, um dos raros ecossistemas úmidos da região, também foi duramente atingida – uma perda ecológica que afeta aves migratórias, funções hidrológicas e toda a cadeia alimentar local. Gaza perde, assim, não apenas sua vegetação, mas sua capacidade de regenerar vida.
Em Gaza, a água – já rarefeita – transforma-se em vetor de múltiplas crises. Com tubulações destruídas e estações de bombeamento inoperantes, o acesso à água potável despencou. O esgoto não tratado escorre para o mar Mediterrâneo e infiltra-se no aquífero. A contaminação de fontes hídricas multiplica doenças – diarreia, hepatite, infecções – sobretudo entre crianças, cujos corpos são os primeiros a sucumbir a essas “guerras lentas”.
O genocídio transforma o ciclo da água em arma indireta: a poluição oceânica afeta não apenas Gaza, mas toda a região costeira; a contaminação do aquífero tem impactos de longo prazo; o colapso do saneamento ameaça a saúde pública por gerações.
A devastação ambiental em Gaza não é isolada do clima global – ela contribui para ele. Segundo análises citadas pelo jornal The Guardian, os primeiros meses da ofensiva militar produziram cerca de 1,89 milhão de toneladas de CO₂ equivalente, e as projeções de longo prazo – considerando limpeza e reconstrução – podem chegar a dezenas de milhões de toneladas.
Em um mundo que luta para reduzir emissões, cada guerra é um retrocesso coletivo. Mas essa contabilidade quase nunca entra nos relatórios climáticos internacionais. O carbono de bombas, tanques, reconstruções e logística permanece invisível – embora seu impacto seja extremamente real.
Paradoxalmente, Gaza perde também sua capacidade de produzir energia limpa: painéis solares destruídos viram resíduo tóxico; sistemas fotovoltaicos deixam de gerar eletricidade; dependência de combustíveis fósseis se intensifica. A destruição ambiental empurra o território para o passado climático.
Acúmulo de crises: quando o humano e o ambiental colapsam juntos
A criminosa ofensiva em Gaza cria uma tempestade perfeita: destrói a infraestrutura que sustenta a vida humana ao mesmo tempo em que destrói a ecologia que sustenta essa infraestrutura.
A população vive uma dupla catástrofe: a morte imediata pela violência, e a morte lenta pela contaminação, pela fome, pelo solo infértil e pela impossibilidade de reconstruir uma vida digna sobre uma terra doente.
Quando culturas agrícolas somem, não se perde apenas a safra: perde-se também o futuro. Isso tem nome: limpeza étnica , eliminação de um povo.
E a recuperação – se vier – demandará décadas.
O impacto ambiental em Gaza não para nas fronteiras. A poluição do Mediterrâneo afeta ecossistemas marinhos compartilhados. Emissões de carbono entram na atmosfera comum. A degradação do solo e da vegetação interfere em rotas migratórias e equilíbrios ecológicos regionais.
O massacre em Gaza não é apenas uma tragédia humana nem apenas um desastre político. Ela é também um sinal de alerta planetário sobre como conflitos armados amplificam a crise climática – e como a crise climática, por sua vez, amplifica conflitos.
Territórios vulneráveis tornam-se epicentros de colapso. A combinação de conflito + degradação ambiental + mudanças climáticas é explosiva – e Gaza ilustra o extremo dessa equação.
Se a reconstrução vier, ela não poderá repetir o modelo anterior – frágil, dependente, vulnerável. Será preciso pensar em reparação ecológica, resiliência climática, e justiça ambiental.
Será preciso limpar e reciclar destroços de forma segura, testar solos, restaurar aquíferos, replantar florestas, reconstruir infraestrutura verde, e tratar a água como bem estratégico.
Reerguer Gaza não é tarefa apenas de engenharia: é tarefa de ecologia, de saúde pública, de ciência do clima – e de ética. Ignorar a destruição ambiental em Gaza é ignorar a profundidade do que está acontecendo.
Quando a guerra termina em imagens, a devastação ecológica continua silenciosamente por décadas. Só compreendendo ambas – a humana e a ambiental – podemos perceber o alcance real dessa tragédia.
Gaza é, hoje, um laboratório involuntário do que acontece quando o conflito humano e o colapso ambiental se encontram. Seu sofrimento ecoa muito além de suas fronteiras: ele nos mostra o que está em jogo quando a guerra se torna parte da paisagem climática do século XXI.
*Teresinha Pinto é coordenadora do núcleo Palestina do PT.
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
C O N T R I B U A





















