Por ANTONIO SIMPLICIO DE ALMEIDA NETO*
A “História”, em crise existencial, relata a um psicanalista seu sentimento de desvalorização e ataque por reformas educacionais e discursos utilitaristas, refletindo alegoricamente o desmonte das humanidades no Brasil
1ª sessão
História: Então, doutora…
Psi: Doutora, não, por favor. Pode me chamar pelo nome: Déa. Psicanalista. Mas o que a traz aqui? Em que posso ajudar?
História: Certo. Então…, é…, Déa. O que acontece é que eu não estou nada bem. Nada bem… Ando muito perturbada, crises de choro, sensação de abandono, sinto como se estivesse indo para lugar algum, sabe?
Psi: Entendo… Fale mais sobre isso.
História: Veja… Outro dia, faz uma semana, dez dias, estava numa livraria (eu ainda leio livros, sabe?) e, por absoluta coincidência, me deparei com um volume das obras do Lacan, da editora Zahar: O Seminário Livro 10, A Angústia. Na verdade, a psicanálise nem é muito minha praia, não entendo muita coisa, mas a capa do livro… A capa do livro! Eu desabei a chorar, entre as prateleiras… A capa… Na capa tinha aquela fita de Möbius, da gravura do Escher. Sabe aquela gravura?
Psi: Li todo o Lacan, mas não estou lembrada dessa imagem. É que eu li no original, em francês. É possível que sejam capas diferentes. (…) Fale mais sobre isso.
História: O Escher é aquele artista plástico holandês. Acho que não tem nada a ver com o Lacan, mas o editor colocou essa imagem na capa, sei lá. O Escher desenhou uma fita de Möbius, que é aquela fita que tem uma torção de 180 graus e as duas pontas se juntam. Ele desenhou essa fita quadriculada, como uma rede, com algumas formigas circulando. Uma gravura tridimensional, fantasmagórica. As formigas estão transitando na superfície da fita, uma atrás da outra, sem rumo, sem direção, sem sentido, sem lado, sem dentro, sem fora. Entende?
Psi: Sei…
História: E eu fiquei olhando aquela capa de livro, ali na livraria…, entre as prateleiras, atônita, perplexa, como se estivesse olhando a mim mesma no espelho. Era eu sem rumo, sem direção, sem sentido, sem orientação. Na minha idade! Sou uma senhora centenária… Centenária, mas lúcida! E nessa altura do campeonato…, fiquei assim…, sem rumo, sem direção, sem sentido, sem orientação… Estou ficando maluca?
Psi: Compreendo, compreendo… Parece-me uma situação complicada. Mas… não estaria havendo um exagero da sua parte?
História: Exagero?! Pode até parecer exagero, mas acho que estou vivendo uma crise de identidade. Já tive tantas certezas, mas agora…, agora tudo está desmoronando. Nunca imaginei que fosse passar por isso, sabe? Antes eu me sentia útil, tinha alguma finalidade, servia para formar o cidadão, o sujeito crítico, o sujeito histórico, essas coisas. Hoje parece que ninguém liga para mim, só vejo indiferença. E ainda tem os que querem me sacanear! Estou me sentindo abandonada, entende? Parece que, de repente, eu não sou mais… suficientemente boa.
Psi: Suficientemente boa… Será que você não está se cobrando muito, sendo muito exigente consigo mesma? Às vezes precisamos aceitar nossas limitações e imperfeições. O que você pensa disso?
História: Mas eu sei das minhas imperfeições, sei das minhas limitações, sei que sou imperfeita. Sei até demais! Tenho absoluta clareza que sou um campo em disputa. É bem verdade que estabeleci algumas relações tóxicas…, controladores, desequilibrados, manipuladores, gente estranha, pessoas físicas e jurídicas. Não posso negar, andei com uns sujeitos (e sujeitas!) bem tóxicos! Apresentáveis, bom papo, titulação acadêmica, nota de rodapé e tudo o mais, mas que queriam impor suas referências teóricas e seus conceitos mínimos sobre mim, e houve alguns que até tramaram contra mim. Sabe aquele papo de “dormir com o inimigo”? Pois é…, eu fui para a cama com alguns lobos em pele de cordeiro, lobos que tramaram meu fim, tramaram meu fim. E quase conseguiram!
Psi: Relações tóxicas, controladores, manipuladores, dormir com inimigos. Interessante, interessante. Vamos parar por aqui. Nos vemos na próxima sessão.
2ª sessão
Psi: …
História: … Acho que eu começo, né?
Psi: …
História: Bem…, Dea. Na sessão passada eu falei demais, acho. Estava meio desesperada, despejei tudo sobre você, queria falar de tudo. É que não tenho tido com quem falar e as coisas vão represando, represando. Acho que fui com muita sede ao pote. Não estou acostumada com terapia, sabe? Na verdade, eu nunca fiz terapia, essa é a primeira vez. E aí eu quis falar sobre tudo de uma vez.
Psi: Entendo…
História: Nessa noite tive um sonho. O que é estranho, eu nunca sonho, e se sonho, não lembro.
Psi: Interessante… Fale-me sobre seu sonho.
História: Foi um sonho estranho, quase pesadelo, meio violento, promíscuo. Eu sonhei que estava no pátio de uma escola pública, em São Paulo, aí o pátio tornou-se um ringue de lutas, tipo esses de luta de MMA, aquela coisa horrível, muitas luzes, pais e alunos sentados na plateia, uma situação alucinante, e aí chegou o governador Tarcísio de Freitas e seu secretário de educação, o Renato Feder, e depois entrou o governador do Paraná, Rato Júnior. E eles estavam todos lambuzados de vaselina, usavam apenas um short minúsculo, e vinham para cima de mim, babando, olhos injetados. Que nojo! E eu tentava escapar daqueles tipos gosmentos. E eles gritavam palavras desconexas, tipo “empreendedorismo”, “projeto de vida”, “trilhas formativas”, “liderança”, “oratória”, “escola cívico-militar” … E gritavam, repetiam, repetiam… E os pais e os alunos berravam como num programa de auditório. E havia uns engravatados, empresários, jornalistas, gestores, todos indiferentes àquele show de horrores. E eu fui ficando lambuzada e sufocada daquelas palavras nojentas misturadas com a vaselina e o bafo que emanava da boca deles. Aí eu acordei, empapada de suor… Não consegui dormir mais.
Psi: Interessante… E quais são suas impressões desse sonho?
História: Impressões?… Outro dia ocorreu uma coisa curiosa com um colega, Prof. Antonio, um sujeito meio casmurro, ele entrou no elevador de seu prédio e em outro andar entrou um morador, advogado. O professor de bermudão e camiseta e o advogado de terno e gravata, mal cortado, de loja de departamento. Olhou para o professor e tentou puxar papo, tipo função fática, sabe? Você é professor, né? O professor acenou positivamente com a cabeça. Ao que o advogado retrucou, como se tivesse alguma informação de bastidor: De sociologia, né? E o Antonio: História. Foi a deixa para que o advogado passasse aos elogios, falou da importância dos professores, sobre como história é importante, e que o povo não sabe nada, que história é fundamental, e blá, blá, blá. Felizmente chegaram ao térreo e cada um seguiu seu caminho. Mas por que estou te falando isso? Me perdi…
Psi: Associação livre?
História: É…, acho que é. Lembrei! A impressão que me ficou do sonho foi muito ruim, foi essa…, essa indiferença cínica, sabe? Aqueles engravatadas na plateia, todos lustrados e ilustrados, como o rábula do elevador, cheio de data vênia. Todos consideram história importante, uns dizem que queriam ter se graduado em história, história é fundamental, mas, na real, todos estão pouco se lixando. É exatamente o mesmo papo de quando falam dos professores, que é a profissão mais importante, que são aqueles que formam todos os outros profissionais, mas não dão a mínima, nem para os professores, nem para a escola, nem para a história.
Psi: Você está um tanto ressentida, não?
História: Certamente! Você também estaria se estivesse naquele ringue, sendo humilhada por esses fascistoides de plantão, os lúbricos e os omissos. Em outros tempos eu até tolerava e buscava compreender… historicamente esse comportamento, os avanços e os recuos, as mudanças e as permanências, as rupturas. Mas nos últimos dez anos só vejo recuos, só recebo ataques, explícitos ou cínicos. E isso vai me dando uma angústia. Como naquela música do Itamar Assunção, “não há saídas, só ruas/viadutos e avenidas”. Conhece?
Psi: Não estou lembrada dessa música.
História: É como se todos quisessem me sacanear. Quando estavam fazendo essa reforma curricular, a BNCC…
Psi: BNCC?
História: BNCC, Base Nacional Comum Curricular. Quando estavam elaborando esse documento, lá na crise do governo Dilma 2, 2015, e havia duas reformas curriculares em curso, o Pátria Educadora e a BNCC. Coisa de maluco: 2 reformas sendo elaborados em 2 ministérios diferentes, no mesmo governo! Uma disputa ferrenha de projetos de poder diferentes. Com o aprofundamento da crise o grupo do Pátria Educadora foi defenestrado e com o golpe parlamentar do impeachment, em 2016, o grupo que tocava a BNCC levou a melhor. É assim: “Ao vencedor as batatas!”, já disse o Quincas Borba. Mas, como eu dizia, quando começou essa disputa eu ouvia falar sobre o fim da disciplina história e da área de ciências humanas, e pensava: não é possível, isso não vai acontecer. Não vão acabar com a disciplina história! Imagine…, eu estou presente no currículo brasileiro desde 1837! Eu falei, sou centenária. Fala a verdade, estou bem para a minha idade, não? E eu venho me renovando, me remoçando, novos temas, novos projetos, novas abordagens. Ando muito com a moçada, jovens historiadores, professores, pessoal de cabeça arejada, animados. São incríveis! Mas agora, parece que o golpe foi fatal…
Psi: Você está bem, não posso negar. Eu pegava!… Ops, desculpa aí. Fale mais sobre isso…
História: … Até me perdi no que estava falando. Sim, lembrei! Mas quando a BNCC foi homologada em 2017 e eu li no documento “Área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas”, que agrupa os “componentes curriculares” história, geografia, sociologia e filosofia, eu desabei. Eu fui jogada numa área disforme, fui chamada de componente curricular! Chorei, perdi o sono, bebi, fumei, cheirei “fumaça e óleo diesel” (grandes Chico e Gil!), fiz loucuras. “Tomei a mescalina de mim mesma”, como escreveu o Haroldo de Campos. Tive alucinações com aquelas fundações e institutos privados: Fundação Lemann, Ayrton Senna, Natura, Maria Cecília Souto Vidigal, Unibanco, Itaú, Roberto Marinho. Aí eu finalmente entendi quem havia ganho com as batatas! Machado de Assis foi um gênio! E agora eu estou me sentindo como se estivesse num velório. E o defunto sou eu! Olha o Machado de Assis novamente!
Psi: Sonhos lúbricos, humilhações, traições, angústia, velório, morte. Tem muita coisa aí para pensarmos. Vamos parar por aqui. Continuamos na próxima sessão.
*Antonio Simplicio de Almeida Neto é professor do Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Autor, entre outros livros, de Representações utópicas no ensino de história (Ed. Unifesp) [https://amzn.to/4bYIdly]
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