Subjetividade e pandemia

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Por Alysson Leandro Mascaro*

Empreendedorismo, meritocracia, apego à fé ou crença na autoridade dos líderes políticos e religiosos são alguns dos constituintes ideológicos das subjetividades hoje.

A sociabilidade quotidiana sofre um choque com a pandemia de coronavírus. Deslocamentos ao trabalho, à escola, ao comércio, de viagens, de pronto são limitados em favor de uma quarentena nas residências. Explodem as contradições da sociedade capitalista: a maioria da população, trabalhadora, depende da venda de força de trabalho, em atividades em grande parte suspensas; vários setores, precarizados, se sustentam na prestação de serviços, que não mais ocorrem; pequenos empresários veem ruir seus negócios; bancos são imediatamente salvos.

Em favor da contenção da circulação do vírus, deve-se ficar em casa: a maioria não tem condições mínimas de habitação; praticamente todos não têm estrutura psíquica ou arcabouço de convívio para lidar com a reclusão e com a vida intensamente compartilhada; as carências intelectivo-culturais não permitem fruir de momentos de não-trabalho. O sistema de saúde se esgarça: desde o golpe de 2016, a experiência do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro tem sido desmontada, com limitações constitucionais de teto de gastos e incentivos à saúde privada.

No conjunto desse quadro, a subjetividade sofre. O que se pensa, o que se deseja, o que se reprime, o que se almeja, tudo isso advém da materialidade das relações sociais, moldada por aparelhos que constituem a intelecção de mundo. Numa sociabilidade capitalista, desde sempre cada sujeito sabe que a intermediação geral das relações se faz mediante a mercadoria: tudo é comprado ou vendido, tudo vale dinheiro. O direito é seu corolário imediato: ter é apropriar-se por direito, dispor é realizar contrato, tudo o que for contra tais paradigmas é crime.

Os seres humanos dispõem de acessos distintos ao capital: alguns o têm em suficiência para gozar a vida e comprar o trabalho alheio; a maioria não o tem e busca vender sua força de trabalho para amealhar salário. Por isso e por óbvio, a orientação da vida, no capitalismo, é sempre capitalista: lucrar, negociar, trabalhar, ter. É a verdade da vida material.

A ideologia é material. Ela advém das relações sociais concretas. Por vender força de trabalho, as classes trabalhadoras são orientadas a se orgulhar de suas capacidades: eficiência, força ou destreza corporal, boa saúde – corpo. O capital, sendo o contrastante da pobreza, orgulha-se de sua distinção: raro, especial, inteligente, belo – cérebro. No seio dessa base material da ideologia, determinada pelas relações de produção, fincam-se os aparelhos ideológicos, que sobredeterminam essa mesma materialidade. Família, escola, religião ou meios de comunicação de massa são constituintes concretos da subjetividade.

Com base em tais aparelhos, numa situação como a da pandemia de coronavírus, não se trata apenas de sofrer: o sofrimento está permeado por inteligibilidades como as que dizem ser o vírus um castigo de Deus, ou de que quem tem fé não adoece, ou de que com autoestima será possível trocar o emprego que se vai perder por negócio pessoal lucrativo. Empreendedorismo, meritocracia, apego à fé ou crença na autoridade dos líderes políticos e religiosos são alguns dos constituintes ideológicos das subjetividades hoje.

A sociabilidade capitalista tradicionalmente esgarça as subjetividades, mas, via de regra, cada qual sofre seu calvário sob a ideologia de que a culpa é sua ou a desgraça diz respeito apenas a si. No entanto, a pandemia expõe questões básicas e gerais que cindem esse horizonte ideológico: a natureza é comum, a saúde é coletiva, a riqueza capitalista é feita pela exploração dos trabalhadores e, por fim, a vida plena e saudável é incompatível estruturalmente com as formas sociais da acumulação.

Tais fundamentos basilares se confrontam com os sustentáculos da ideologia, como Estado e direito. Diz-se que a política é o bem comum, que todos são iguais perante a lei, que todos são cidadãos, mas os cidadãos das periferias padecem de quarentena em condições insalubres e sem emprego. Diz-se que os países do mundo vivem num concerto internacional de soberania e igualdade entre nações, no entanto os EUA confiscam tranquilamente máscaras direcionadas a outros países, em ato de pirataria moderna.

Também o direito apresenta um bloco de princípios como os de direito social, mas a realidade contrasta o direito à habitação aos que vivem em favelas, o direito à dignidade nas condições de trabalho a desempregados ou assalariados de fome, o direito à saúde à ausência de hospitais. Quase sempre, na reprodução quotidiana do capitalismo, esse aparato ideológico só se rompe aos desgraçados individualmente; mas, na pandemia, rompe-se estruturalmente.

Trata-se de uma dialética difícil de manutenção ou quebra: as formas sociais do capitalismo constituem as subjetividades porque as relações sociais são exatamente moldadas em tais talhes. Por isso, mesmo nas crises estruturais há a tendência de que não se acabe a exploração e as dominações. A acumulação muitas vezes retorna, e ainda mais forte.

Em 2008 explodiu a crise do neoliberalismo. Nos anos seguintes, golpes pelo mundo todo, guerras e a expansão da tecnologia das redes sociais levaram multidões à miséria, mas o discurso neoliberal da meritocracia e do empreendedorismo só aumentou. É possível que a crise de agora venha a fazer com que frações do capital fracassem a fim de que outras frações aproveitem tal banquete falimentar para maior acúmulo.

Mas também é possível que a crise seja estrutural a ponto das subjetividades se esgarçarem. Pode haver um ponto em que não se creia mais em políticos mitos, em milícias de ódio de internet, em discursos religiosos contra a ciência, em meritocracia num capitalismo de desastre. Se assim o for, é preciso uma vanguarda social – mundial – que muito rapidamente amalgame a ideologia e a esperança das massas. Para que se lute, é preciso que haja sentido. Para que a luta seja persistente, resiliente e vitoriosa é preciso que seja racional: a ciência sobre o funcionamento do capital, sua crise e sua superação é fundamental no presente.

A saúde não é apenas o biológico, o natural. Por todo o século XX até hoje, a melhor filosofia da saúde insiste na relação entre o vital e o social – assim o é com Georges Canguilhem, Michel Foucault, Jacques Lacan, Louis Althusser, Dominique Lecourt, Hans-Georg Gadamer, Jaime Breilh. Por isso, uma pandemia revela não o vírus, mas a fragilidade da vida sob as condições de sociabilidade presente.

Se a economia não fosse para a acumulação, o mundo já poderia ter casas suficientes e dignas para o repouso de quarentena, o trabalho poderia ser pausado universalmente sem a intranquilidade da dependência de salário, a saúde seria pública no mundo todo, a educação emancipada de orientações à eficiência poderia ser bastante para o ócio ser objeto de gozo. O capitalismo instituiu esta subjetividade presente; a crise do capital e a pandemia a quebram. Com urgência, que de uma subjetividade contraditória e fraturada possa sair a transformação de nosso tempo.

*Alysson Leandro Mascaro é professor da Faculdade de Direito da USP (Largo São Francisco). Autor, entre outros livros, de Crítica da legalidade e do direito brasileiro (Quartier Latin).

 

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