Subjetividade e pandemia

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Alysson Leandro Mascaro*

Empreendedorismo, meritocracia, apego à fé ou crença na autoridade dos líderes políticos e religiosos são alguns dos constituintes ideológicos das subjetividades hoje.

A sociabilidade quotidiana sofre um choque com a pandemia de coronavírus. Deslocamentos ao trabalho, à escola, ao comércio, de viagens, de pronto são limitados em favor de uma quarentena nas residências. Explodem as contradições da sociedade capitalista: a maioria da população, trabalhadora, depende da venda de força de trabalho, em atividades em grande parte suspensas; vários setores, precarizados, se sustentam na prestação de serviços, que não mais ocorrem; pequenos empresários veem ruir seus negócios; bancos são imediatamente salvos.

Em favor da contenção da circulação do vírus, deve-se ficar em casa: a maioria não tem condições mínimas de habitação; praticamente todos não têm estrutura psíquica ou arcabouço de convívio para lidar com a reclusão e com a vida intensamente compartilhada; as carências intelectivo-culturais não permitem fruir de momentos de não-trabalho. O sistema de saúde se esgarça: desde o golpe de 2016, a experiência do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro tem sido desmontada, com limitações constitucionais de teto de gastos e incentivos à saúde privada.

No conjunto desse quadro, a subjetividade sofre. O que se pensa, o que se deseja, o que se reprime, o que se almeja, tudo isso advém da materialidade das relações sociais, moldada por aparelhos que constituem a intelecção de mundo. Numa sociabilidade capitalista, desde sempre cada sujeito sabe que a intermediação geral das relações se faz mediante a mercadoria: tudo é comprado ou vendido, tudo vale dinheiro. O direito é seu corolário imediato: ter é apropriar-se por direito, dispor é realizar contrato, tudo o que for contra tais paradigmas é crime.

Os seres humanos dispõem de acessos distintos ao capital: alguns o têm em suficiência para gozar a vida e comprar o trabalho alheio; a maioria não o tem e busca vender sua força de trabalho para amealhar salário. Por isso e por óbvio, a orientação da vida, no capitalismo, é sempre capitalista: lucrar, negociar, trabalhar, ter. É a verdade da vida material.

A ideologia é material. Ela advém das relações sociais concretas. Por vender força de trabalho, as classes trabalhadoras são orientadas a se orgulhar de suas capacidades: eficiência, força ou destreza corporal, boa saúde – corpo. O capital, sendo o contrastante da pobreza, orgulha-se de sua distinção: raro, especial, inteligente, belo – cérebro. No seio dessa base material da ideologia, determinada pelas relações de produção, fincam-se os aparelhos ideológicos, que sobredeterminam essa mesma materialidade. Família, escola, religião ou meios de comunicação de massa são constituintes concretos da subjetividade.

Com base em tais aparelhos, numa situação como a da pandemia de coronavírus, não se trata apenas de sofrer: o sofrimento está permeado por inteligibilidades como as que dizem ser o vírus um castigo de Deus, ou de que quem tem fé não adoece, ou de que com autoestima será possível trocar o emprego que se vai perder por negócio pessoal lucrativo. Empreendedorismo, meritocracia, apego à fé ou crença na autoridade dos líderes políticos e religiosos são alguns dos constituintes ideológicos das subjetividades hoje.

A sociabilidade capitalista tradicionalmente esgarça as subjetividades, mas, via de regra, cada qual sofre seu calvário sob a ideologia de que a culpa é sua ou a desgraça diz respeito apenas a si. No entanto, a pandemia expõe questões básicas e gerais que cindem esse horizonte ideológico: a natureza é comum, a saúde é coletiva, a riqueza capitalista é feita pela exploração dos trabalhadores e, por fim, a vida plena e saudável é incompatível estruturalmente com as formas sociais da acumulação.

Tais fundamentos basilares se confrontam com os sustentáculos da ideologia, como Estado e direito. Diz-se que a política é o bem comum, que todos são iguais perante a lei, que todos são cidadãos, mas os cidadãos das periferias padecem de quarentena em condições insalubres e sem emprego. Diz-se que os países do mundo vivem num concerto internacional de soberania e igualdade entre nações, no entanto os EUA confiscam tranquilamente máscaras direcionadas a outros países, em ato de pirataria moderna.

Também o direito apresenta um bloco de princípios como os de direito social, mas a realidade contrasta o direito à habitação aos que vivem em favelas, o direito à dignidade nas condições de trabalho a desempregados ou assalariados de fome, o direito à saúde à ausência de hospitais. Quase sempre, na reprodução quotidiana do capitalismo, esse aparato ideológico só se rompe aos desgraçados individualmente; mas, na pandemia, rompe-se estruturalmente.

Trata-se de uma dialética difícil de manutenção ou quebra: as formas sociais do capitalismo constituem as subjetividades porque as relações sociais são exatamente moldadas em tais talhes. Por isso, mesmo nas crises estruturais há a tendência de que não se acabe a exploração e as dominações. A acumulação muitas vezes retorna, e ainda mais forte.

Em 2008 explodiu a crise do neoliberalismo. Nos anos seguintes, golpes pelo mundo todo, guerras e a expansão da tecnologia das redes sociais levaram multidões à miséria, mas o discurso neoliberal da meritocracia e do empreendedorismo só aumentou. É possível que a crise de agora venha a fazer com que frações do capital fracassem a fim de que outras frações aproveitem tal banquete falimentar para maior acúmulo.

Mas também é possível que a crise seja estrutural a ponto das subjetividades se esgarçarem. Pode haver um ponto em que não se creia mais em políticos mitos, em milícias de ódio de internet, em discursos religiosos contra a ciência, em meritocracia num capitalismo de desastre. Se assim o for, é preciso uma vanguarda social – mundial – que muito rapidamente amalgame a ideologia e a esperança das massas. Para que se lute, é preciso que haja sentido. Para que a luta seja persistente, resiliente e vitoriosa é preciso que seja racional: a ciência sobre o funcionamento do capital, sua crise e sua superação é fundamental no presente.

A saúde não é apenas o biológico, o natural. Por todo o século XX até hoje, a melhor filosofia da saúde insiste na relação entre o vital e o social – assim o é com Georges Canguilhem, Michel Foucault, Jacques Lacan, Louis Althusser, Dominique Lecourt, Hans-Georg Gadamer, Jaime Breilh. Por isso, uma pandemia revela não o vírus, mas a fragilidade da vida sob as condições de sociabilidade presente.

Se a economia não fosse para a acumulação, o mundo já poderia ter casas suficientes e dignas para o repouso de quarentena, o trabalho poderia ser pausado universalmente sem a intranquilidade da dependência de salário, a saúde seria pública no mundo todo, a educação emancipada de orientações à eficiência poderia ser bastante para o ócio ser objeto de gozo. O capitalismo instituiu esta subjetividade presente; a crise do capital e a pandemia a quebram. Com urgência, que de uma subjetividade contraditória e fraturada possa sair a transformação de nosso tempo.

*Alysson Leandro Mascaro é professor da Faculdade de Direito da USP (Largo São Francisco). Autor, entre outros livros, de Crítica da legalidade e do direito brasileiro (Quartier Latin).

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Ricardo Antunes Luiz Roberto Alves Ladislau Dowbor Francisco Fernandes Ladeira Benicio Viero Schmidt Vladimir Safatle Gilberto Maringoni Ricardo Musse Marcos Aurélio da Silva Luiz Carlos Bresser-Pereira Marcus Ianoni Osvaldo Coggiola Antonino Infranca José Geraldo Couto Jean Marc Von Der Weid José Dirceu Alexandre de Lima Castro Tranjan Yuri Martins-Fontes Ronald León Núñez Andrew Korybko Luiz Renato Martins Marcos Silva Tales Ab'Sáber Walnice Nogueira Galvão Leonardo Avritzer Manchetômetro Fábio Konder Comparato Bruno Fabricio Alcebino da Silva Luiz Bernardo Pericás Chico Whitaker Plínio de Arruda Sampaio Jr. Francisco de Oliveira Barros Júnior Eliziário Andrade Andrés del Río João Lanari Bo Valerio Arcary Everaldo de Oliveira Andrade Daniel Afonso da Silva André Márcio Neves Soares Mariarosaria Fabris Heraldo Campos Carlos Tautz Alexandre Aragão de Albuquerque Valerio Arcary Sergio Amadeu da Silveira Daniel Brazil Manuel Domingos Neto Lincoln Secco Eleutério F. S. Prado Ari Marcelo Solon Luiz Werneck Vianna Atilio A. Boron José Machado Moita Neto João Adolfo Hansen Marcelo Módolo Luciano Nascimento Eduardo Borges Boaventura de Sousa Santos Kátia Gerab Baggio Michel Goulart da Silva Samuel Kilsztajn Michael Roberts Elias Jabbour Annateresa Fabris Jean Pierre Chauvin Alysson Leandro Mascaro Maria Rita Kehl Otaviano Helene Alexandre de Freitas Barbosa Ricardo Fabbrini Thomas Piketty Paulo Fernandes Silveira Liszt Vieira Denilson Cordeiro Jorge Branco Henry Burnett Paulo Nogueira Batista Jr Celso Frederico Ronald Rocha Antonio Martins Luís Fernando Vitagliano Flávio Aguiar Antônio Sales Rios Neto Marcelo Guimarães Lima Bruno Machado Mário Maestri Rubens Pinto Lyra Airton Paschoa Renato Dagnino Paulo Martins João Paulo Ayub Fonseca Leonardo Sacramento Paulo Capel Narvai Celso Favaretto Carla Teixeira Remy José Fontana Rodrigo de Faria Fernão Pessoa Ramos Anselm Jappe Vinício Carrilho Martinez Eleonora Albano Juarez Guimarães Vanderlei Tenório Érico Andrade Marilia Pacheco Fiorillo André Singer Chico Alencar Paulo Sérgio Pinheiro Tarso Genro Dennis Oliveira Claudio Katz Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Michael Löwy José Costa Júnior Leda Maria Paulani João Carlos Salles Gerson Almeida Eugênio Trivinho Lucas Fiaschetti Estevez Berenice Bento Gilberto Lopes Ricardo Abramovay Flávio R. Kothe Fernando Nogueira da Costa Francisco Pereira de Farias Luiz Marques José Luís Fiori Afrânio Catani Jorge Luiz Souto Maior Eugênio Bucci Priscila Figueiredo Igor Felippe Santos Slavoj Žižek Marjorie C. Marona Luiz Eduardo Soares Tadeu Valadares Lorenzo Vitral Julian Rodrigues Bernardo Ricupero João Carlos Loebens Luis Felipe Miguel Dênis de Moraes Henri Acselrad João Feres Júnior Marilena Chauí Sandra Bitencourt Bento Prado Jr. Rafael R. Ioris Milton Pinheiro Gabriel Cohn José Micaelson Lacerda Morais Caio Bugiato Matheus Silveira de Souza Salem Nasser João Sette Whitaker Ferreira José Raimundo Trindade Daniel Costa Leonardo Boff Armando Boito Ronaldo Tadeu de Souza

NOVAS PUBLICAÇÕES