Impactos sociais da pílula anticoncepcional

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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira

1.

O uso da pílula anticoncepcional provocou uma das maiores re-evoluções culturais e socioeconômicas da humanidade. Logo nos primeiros anos, após a difusão, houve a redução de gestações não planejadas e adiamento da primeira maternidade. O anticoncepcional oral permitiu maior controle sobre o momento das gestações, reduzindo nascimentos precoces e imediatos.

Permitiu um acesso mais fácil à educação e ao mercado de trabalho para mulheres jovens. Com menos gravidezes precoces, mais mulheres puderam concluir estudos secundários e adiar entrada nesse mercado, em vez de aceitar empregos exigentes de baixa qualificação. Houve efeitos rápidos no aumento da participação feminina no mercado de trabalho quando o acesso ao contraceptivo aumentou.

Mudança agregada no capital humano possibilitou as trajetórias de carreira profissional bem-sucedida das mulheres. A possibilidade de planejar família favoreceu investimentos educativos e carreiras de longo prazo, alterando padrões ocupacionais e de renda feminina. Pesquisas apontam ganhos de escolaridade, participação no mercado de trabalho e renda associadas ao acesso à contracepção.

Também aconteceram transformações sociais indiretas. Houve “renegociação de papéis domésticos”, embora ainda parcialmente, maior presença feminina em profissões qualificadas e, ao longo das décadas, maior pressão por participação política e por direitos reprodutivos.

Nas décadas seguintes, registrou-se uma queda sustentada da fecundidade (taxa de filhos por mulher) e envelhecimento demográfico. Em países onde o contraceptivo se difundiu, a taxa média de filhos por mulher caiu muito, com efeitos persistentes sobre a estrutura etária da população.

No Brasil, a queda do número de filhos por mulher foi de TFR ≈ 6,28 filhos por mulher em 1960 para TFR ≈ 1,56 filhos por mulher em 2022. Portanto, passou de uma fecundidade típica de sociedades pré-transição demográfica (6+ filhos) para níveis abaixo do nível de reposição (≈2,1) e consequente queda da população. Esses números estão nos Censos e nas estimativas demográficas.

A queda começou a tornar-se consistente a partir da difusão dos métodos anticoncepcionais, nas décadas seguintes aos anos 1960, mas também envolveu urbanização, escolaridade, mercados de trabalho e políticas públicas. Aconteceu um processo sistêmico complexo com emergência de uma nova cultura socioeconômica.

2.

Quanto ao efeito no orçamento familiar, sobrou mais espaço para pagar aluguel e despesas urbanas, não foi automático nem universal. A transição rural-urbana e a queda da fecundidade modificaram muito o padrão de despesas familiares, mas isso não significa ter “sobrado” dinheiro para morar nas cidades para a maioria.

A urbanização aumentou a necessidade de pagar por habitação (aluguel ou compra), transporte, saneamento, eletricidade, escolarização e serviços de saúde. Esses custos em áreas rurais eram internalizados por autoabastecimento, moradia própria etc.

Em muitas cidades brasileiras o aumento da demanda por moradia gerou pressão sobre preços e déficit habitacional com favelização em suas periferias. Desse modo, a renda disponível para outros itens nem sempre aumentou proporcionalmente. Levantamentos de despesa domiciliar (POF/IBGE) mostram mudanças na composição do gasto ao longo das últimas décadas e indicam forte peso dos gastos de moradia nas famílias urbanas.

Em termos práticos, para alguns grupos – famílias de renda média/alta e mulheres com maior escolaridade e renda própria – houve maior liberdade financeira relativa para alugar ou comprar em áreas urbanas. Para muitos migrantes de baixa renda houve maior aperto orçamentário e informalidade habitacional.

Mulheres puderam estudar mais e ultrapassaram os homens na universidade. Esta é uma tendência clara e mensurável. No Brasil, o aumento do nível educacional feminino foi marcado e, segundo IBGE/Censo 2022, entre pessoas de 25 anos ou mais a proporção com Ensino Superior completo era 20,7% nas mulheres e 15,8% nos homens, isto é, o nível educacional feminino já superou o masculino nesse recorte.

O avanço feminino na Educação Superior ocorreu ao longo das últimas décadas, quando as mulheres passaram a ter maior escolaridade média já desde os anos 1980–1990, enquanto muitos se dedicaram mais ao trabalho manual.

Isso teve forte impacto no mercado de trabalho. A maior escolaridade aumentou a inserção feminina em ocupações qualificadas e elevou a participação no mercado formal. Contudo, persistem desigualdades salariais e segregação setorial/ocupacional com mulheres concentradas em determinados ramos de “cuidadoras” (e não “engenheiras”) com diferenças salariais em relação a homens.

O acesso à contracepção e à educação melhorou as chances de as mulheres competirem por vagas qualificadas e construírem carreiras longas. Em setores com valorização da escolaridade e de formação contínua, mulheres com maior escolaridade obtiveram ganhos relativos. Estudos empíricos mostram aumentos na participação feminina e ganhos salariais médios vinculados ao acesso à contracepção e ao planejamento familiar.

3.

Porém, barreiras institucionais (discriminação, divisão sexual do trabalho, faltas por cuidado, renda desiguais) e escolhas ocupacionais (setores feminizados com menor remuneração) limitaram ganhos plenos. Logo, houve vantagem relativa em formação e disponibilidade para carreiras longas, mas não uma vitória automática sobre as disparidades laborais de gênero.

Surgiram mais mulheres como líderes locais e mundiais, mas a representação continua desigual. Globalmente, a proporção de assentos parlamentares ocupados por mulheres cresceu nas últimas décadas, por exemplo, de ~11% em 1995 para ~27% em 2025, em média nos parlamentos europeus. Entretanto, ainda estão longe da paridade: muitos países, inclusive o Brasil, têm representação feminina menor diante a média regional/global.

Emergiram mais mulheres como líderes nacionais, ao longo do século XX e XXI, mas continuam sendo exceções e concentradas em determinados momentos ou países. Chefes de Estado ou do Poder Executivo ainda são raras.

Há aumento de mulheres em cargos municipais, lideranças comunitárias e em organizações da sociedade civil. No entanto, a violência política, assédio e barreiras estruturais continuem inibindo avanços uniformes.

O objetivo central da pesquisa de Joelma R. Santana e Silvia Waisse foi explorar os aspectos conceituais e historiográficos relacionados à difusão da pílula anticoncepcional no Brasil.[1] Focou na primeira década após sua introdução, em 1962, no estado de São Paulo.

O estudo analisou como a informação sobre o modo de ação do contraceptivo hormonal no organismo feminino, suas implicações associadas, e os supostos riscos e benefícios foram divulgados às usuárias potenciais.

O achado mais significativo foi a chegada da pílula anticoncepcional ter provocado debates intensos no país. Porém, estes se concentraram menos em questões científicas e mais em problemas morais, políticos e religiosos.

A pílula não foi inicialmente divulgada por meio de revistas femininas (com a exceção de Cláudia), devido o assunto não ser considerado parte do universo da mulher. Foi sim por meio de jornais e revistas de grande circulação destinados ao público em geral.

4.

O discurso inicial era próprio do neomalthusianismo. A pílula foi promovida no contexto da preocupação com a explosão demográfica, sendo vista como um remédio para conter o crescimento desordenado da população e o subdesenvolvimento. Inicialmente, o foco era o controle dos nascimentos para o “bem-estar de todos”.

As informações sobre a fisiologia reprodutiva e o modo de ação do contraceptivo hormonal foram pouco abordadas, sendo superficiais e, por vezes, equivocadas. Por exemplo, a mídia informava, equivocadamente, os hormônios artificiais induzirem uma falsa gravidez. Demonstrava a baixa qualidade da informação científica publicada.

Embora inicialmente a pílula tenha sido apresentada em uma “fase rosa”, com uma longa lista de vantagens e informações tranquilizadoras sobre segurança, as críticas se intensificaram a partir de 1966. Passou-se a questionar seus efeitos colaterais (como tromboses e problemas cardíacos), riscos futuros, e consequências morais/psicológicas.

A Igreja Católica foi a principal opositora do medicamento, causando grande polêmica e angústia entre os fiéis. Essa oposição culminou na Encíclica Humanae Vitae (1968), na qual reafirmou a proibição de métodos anticoncepcionais não naturais, classificando o seu uso como “pecado mortal” [?!].

Devido ao preço elevado da cartela, o uso disseminado inicialmente definiu a pílula como um fenômeno de classe média. A partir de meados de 1964, um novo discurso, o de “casal consciente adota contraceptivo”, passou a predominar. Para as camadas mais populares, a orientação era fornecida por entidades focadas no controle da natalidade, como a BEMFAM (Bem-estar Familiar no Brasil) e o SOF (Serviço de Orientação à Família).

Houve debates jurídicos sobre o direito do marido de anular o casamento se a esposa usasse a pílula sem seu consentimento, porque o marido era “o chefe da sociedade conjugal” pela lei de 1962. Além disso, a pílula foi associada a interesses internacionais e dominação norte-americana, com entidades sendo acusadas de genocídio e esterilização em massa nos países subdesenvolvidos.

Em suma, a pesquisa demonstrou a difusão da pílula ter ocorrido em um contexto de questionamento do conservadorismo, onde o debate sobre o planejamento familiar e o controle da natalidade rapidamente ofuscou os aspectos médicos e científicos do novo contraceptivo.

“Bendita ignorância” (ou “ignorância é uma bênção”) é uma frase justificadora de “não saber algo (a verdade ou os problemas) pode trazer paz ou felicidade, evitando o estresse e o sofrimento do conhecimento”… Consola os ignorantes.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/4dvKtBb]

Nota


[1] Joelma R. Santana e Silvia Waisse. Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 203-218, jul-dez 2016.


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