Por EUGÊNIO BUCCI*
Capítulo do livro recém-lançado
O incerto alguém e o dono da máquina
O nosso problema é que a máquina é um fator de incerteza muito maior para você do que você para ela. A maior parte das dúvidas a seu respeito seu smartphone já contabilizou e precificou. Os aplicativos e os algoritmos sabem quase tudo do que está por trás dos seus dedos que digitam e dos seus olhos que se movem de modo atarantado percorrendo cada milímetro quadrado da tela. É por isso que a máquina “adivinha”, no instante mesmo em que você digita o “v”, que você vai escrever “vazio”, ou “valor”, ou “vício”.
O nosso problema está do outro lado, quero dizer, está do lado de cá. O nosso problema é que você não tem ideia de como a máquina faz para saber tudo sobre você. O nosso problema é que do lado de lá existe um conjunto de operações complexas, muito lucrativas e inacessíveis para você. A gente não sabe direito o que se passa do lado de lá. Quase ninguém sabe. As únicas pessoas que têm algum conhecimento a respeito do lado de lá são aquelas que têm a chave do cofre onde as big techs – como a Alphabet, que é dona do Google e do YouTube, ou a Meta, proprietária do Facebook e do WhatsApp – trancafiam os códigos de seus algoritmos. São pouquíssimas pessoas.
A nossa vida caiu numa assimetria sem paralelos. Do lado de lá, o centro nervoso do “mundo digital”, monopolizado pelos conglomerados de tecnologia, é fonte de enormes incertezas para a imensa maioria da humanidade. Os algoritmos, controlados pelos gigantes da tecnologia, já equacionaram quase todas as indefinições que poderiam restar sobre o comportamento das pessoas. Do lado de cá, a gente olha para os conglomerados e não enxerga o que eles guardam. Eles têm paredes opacas.
Você vai fazer um exame de sangue. O seu clínico geral tem certas expectativas em relação aos resultados. Pelos sintomas que avaliou, ele considera a possibilidade de que apareçam marcadores de uma ou outra enfermidade. Esses indicadores são mais ou menos prováveis, conforme o parecer clínico do seu médico. De todo modo, até que saiam os índices do laboratório, você não passa de um sistema com um determinado grau de entropia. Quanto mais incerteza houver em relação aos possíveis resultados do seu exame no laboratório, mais valor terá a informação que vier de lá.
Mas existem todas as condições tecnológicas para que os algoritmos saibam das probabilidades do seu exame com mais acurácia que seu clínico de carne e osso. Assim como o celular antecipa, tão logo o seu dedo aperta a letra “v” no WhatsApp, que a sua intenção é escrever “vírus” ou “viral”, um sistema que tenha acesso ao banco de dados do seu laboratório e a milhares de outros bancos será capaz de projetar as tendências prováveis dos resultados. Essas tendências prováveis estarão baseadas nos padrões estatísticos extraídos dos dados dos seus exames anteriores combinados com dados de milhões ou bilhões de outros pacientes.
Um aglomerado de zeros e uns dentro do seu celular poderá antecipar, com uma boa margem de certeza matemática, quando o diagnóstico terrível aparecerá para a sua pessoa. E por que os sistemas querem saber sobre o futuro da sua saúde? Isso mesmo: porque essa predição tem valor de mercado, notadamente para as companhias de seguro. Existem também as consequências, digamos, propedêuticas dessas previsões clínicas. Adestrados pelo big data, os médicos se comportam cada vez mais como gestores de risco: administram a “carteira” de indicadores clínicos de seus pacientes (colesterol, glicemia, triglicérides e por aí vai) com o objetivo de tirá-los dos grupos estatísticos menos favoráveis. O bem-estar e a saúde se reduzem a arranjos probabilísticas.
O tratamento que nós recebemos nos consultórios é uma variante de métricas atuariais, com a finalidade de nos retirar dos quadrantes em que os sinistros têm mais chance de ocorrer. Os profissionais da medicina se comportam mais ou menos como os operadores das bolsas de valores ou como os gestores de fundos de ações. Quanto aos hospitais, vão ficando parecidos com os bancos de investimento.
Trocando em miúdos (em zeros e uns), a incerteza é um bem (ou um mal) que se distribui de forma iníqua no mundo digitalizado: ela é maior, é imensa, é intransponível para os humanos que não são donos de fortunas, de grandes empresas ou do poder; ela é reduzida, bem administrada e lucrativa para os donos das companhias que valem bilhões ou trilhões de dólares e para os que comandam a máquina da política.
No mais das vezes, nós vemos essa iniquidade como uma fissura entre humanos e máquinas, mas, para dizer a verdade, estamos falando aqui de uma fissura entre classes sociais. A diferença é que os de cima, a elite da elite da elite, têm a propriedade da tecnologia, da qual extraem ganhos com a incerteza, enquanto os de baixo só perdem com ela. O nosso problema, enfim, não reside na tecnologia, mas nas relações de propriedade que a amarram.
*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de A superindústria do imaginário (Autêntica).
Referência
Eugênio Bucci. Incerteza, um ensaio. Como pensamos a ideia que nos desorienta (e orienta o mundo digital). Belo Horizonte, Autêntica, 2023, 140 págs (https://amzn.to/3Qyfigp).