Elogio ao amor

Imagem: Cátia Matos
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Por DIOGO FAGUNDES*

A visão de amor de Alain Badiou não visa reforçar qualquer crença na monogamia muito menos na família tradicional ou outro regime normativo de arranjo amoroso

Frequentemente me deparo com pessoas que, ao saberem que estudo a filosofia de Alain Badiou, me falam: “ah, ele é legal mas acho sua visão sobre amor muito tradicional/monogâmica” e variações do gênero.

É algo que decorre provavelmente do fato de seu livro mais acessível e conhecido (pelo menos no Brasil) ser o “Elogio ao amor”. Trata-se de uma visão, portanto, compreensível, afinal, ninguém é obrigado a ler longos tratados filosóficos ou saber o contexto completo da obra do autor para emitir simples julgamentos. No entanto, nem por isso esta opinião está menos errada.

Começamos do começo: a visão de amor do Badiou não visa reforçar qualquer crença na monogamia muito menos na família tradicional ou outro regime normativo de arranjo amoroso – seja tradicional ou contra-tradicional. Aqui vão alguns apontamentos breves sobre isso.

i) O contexto histórico-biográfico: o filósofo francês é filho de dois intelectuais franceses tipicamente de esquerda, que viviam num regime nada monogâmico. Seu pai tinha amantes, assim como sua mãe, que era uma feminista seguidora de Simone de Beauvoir. O próprio Alain Badiou teve Jean-Paul Sartre como mestre de sua juventude e o considera responsável por sua conversão à filosofia. Como sabemos, este vivia um relacionamento nada tradicional com a Simone.

Mais tarde, Badiou assumiu filhos com três mulheres diferentes (Françoise Badiou, Cécile Winter, Judith Balso), o que implica que sua vida nunca foi pautada por qualquer tipo de monogamia. Seu conceito de “fidelidade” – que serve para política, ciência e arte também – nada tem a ver com conjugalidade tradicional, portanto. É simplesmente um operador de continuidade e consistência no tempo: o amor verdadeiro é aquele que dura, é o “duro desejo de durar”, como dira o poeta Paul Éluard, superando desafios e impasses, criando uma vida nova.

ii) Teoria: muitos se apegam a um suposto conservadorismo de Badiou por ele afirmar que o amor é o registro do Dois (ou seja, ele não toleraria arranjos mais numerosos) e por manter a ideia de posições masculinas e femininas (menosprezaria, assim, a questão das diversas sexualidades transgressoras).

A questão é que Dois aqui não tem significado de contagem numérica banal mas, sim, de cifra conceitual mallarméneana — do mesmo modo que a política, para ele, levaria ao Um da igualdade e fraternidade, mas isso obviamente não quer dizer que a política é feita por uma só pessoa, justamente o contrário. Para isso, recomendo o tratado teórico dele sobre o conceito de número (“Le nombre e les nombres”), um dos seus melhores e mais esquecidos livros.

Dois significaria simplesmente a marca da diferença, ou melhor da experiência construída a partir da diferença e não da identidade. Obviamente uma definição tão ampla assim comportaria qualquer tipo de diferença, incluindo poliamor e o que quer que você queria imaginar.

O lance do masculino-feminino é um pouco mais complicado, no entanto. Aqui Badiou se vê simplesmente como um continuador do Lacan, que conceituou essas posições através de uma escrita lógico-predicativa nas conhecidas e um tanto esotéricas “fórmulas da sexuação”, um jeito de lidar com a tal impossibilidade da relação sexual. Não tem nada a ver com duas entidades essenciais inscritas em alguma forma de tradição imutável ou arquétipo cultural jungiano, pelo contrário. Com estas fórmulas Lacan tentava justamente negar a complementaridade de pólos masculinos e femininos presentes em cosmologias tradicionais, ao estilo yin-yang.

Não cabe aprofundar isto aqui, mas Badiou bebe totalmente deste espírito. Não se trata de “essencializar” nada, mas de inscrever a diferença no seio da relação sexual, impossibilidade qualquer perspectiva fora da sexuação (uma variação do dito lacaniano de “não existe metalinguagem”), qualquer “terceiro sexo” ou ser assexuado (ao estilo da figura tradicional do anjo) capaz de unificar o impasse sexual. Homem e mulher, nesse caso, não implicam descrições empíricas, mas posições subjetivas diferentes, presentes também em relações homossexuais ou de qualquer tipo concebível. Recomendo um engajamento com o Lacan do seminário XX – um dos seus mais famosos, mas menos lidos – para entender pelo menos qual é o background de qual Badiou parte.

Por fim, se Badiou pode ser acusado de algo, é, sim, de ver o amor de forma platônica, se entendermos isso de forma não vulgar: amor é pensamento, como diria Fernando Pessoa. Portanto, não se resume — apesar de incorporar, o que o difere da amizade – às fúrias voluptuosas do desejo sexual. Para ele – e isso soa mais “idealista” em relação a certo cinismo contemporâneo – é errado entender o amor a partir do desejo sexual simplesmente.  Na realidade, a dialética intricada entre desejo e amor é um dos problemas mais centrais de qualquer processo amoroso.

Vale lembrar, também, do combate badiouneano ao ciúme, visto como meio de “fascistizar” a relação amorosa, um operador do “sujeito obscuro”, utilizando seu jargão. É o motivo para ele combater a visão de Marcel Proust sobre o amor.

iii) anti-conservadorismo e anti-identitarismo: por fim, gostaria de apresentar onde, sim, certas críticas às posições do Badiou poderiam se concentrar.

O filósofo já deixou claro inúmeras vezes que não tem o menor apreço pela figura do casamento no seu sentido jurídico e convivial (para ele a família é mais um problema a ser lidado, um tipo de status quo praticamente inexorável, mas que deve ser visto como algo reativo à verdadeira subjetividade amorosa), já tendo usado a conhecida frase de André Gide (“famílias, eu vos odeio!”) para indicar sua hostilidade ao núcleo basilar de todo particularismo e enraizamento de privilégios. Trata-se, de algo, já presente desde Platão, na verdade — perante o qual Badiou nem soa tão radical, pois acha extrema sua visão de uma total coletividade comunista neste aspecto (vide sua “hipertradução” da República platônica).

No entanto, isto não significa que ele celebre, em contrapartida simétrica, a transgressão sexual e as variadas identidades sexuais dissidentes. A este respeito, é útil ler o início do seu livro sobre São Paulo, quando faz uma espécie de diagnóstico da cultura contemporânea, criticando tanto as visões reativas e tradicionais (formas restritivas de conjugalidade) quanto a celebração da sexualidade “livre”. Deixe-me, então, explicar melhor este ponto.

Desde a segunda metade dos anos 70, Badiou critica teóricos e militantes que crêem fundamentar uma política a partir de uma mera identidade sexual minoritária. Isso não quer dizer que esses movimentos sejam nocivos. Devemos, apenas, lembrar que política, para Badiou, não se resume a “lutas sociais” e movimentos. Implica uma organização política e uma estratégia antagônica ao mundo vigente.

Neste sentido, ele sempre criticou, por um lado, aqueles que achavam que política é mera somatória ou federalização de lutas segmentadas (sexualidades, mulheres, negros, etc.) ou investimento de categorias individuais da existência (como “vida”, “nossas vidas”) na ação política. Este é um dos motivos da crítica dura que ele fazia ao Deleuze e Guattari nos anos 70, mas também, mais geralmente, ao combate contra tendências que viam na transgressão sexual formas de combate político (como a revista Tel Quel e seus teóricos, como Julia Kristeva). Para ele, isto seria amplificar o papel do sexo e das nossas vidinhas miseráveis na ação política e ideológica. Sua organização chegou ao ponto de cunhar a expressão “sexo-fascismo” para lidar com essa tendência bastante presente na fase decadente dos eventos do maio de 68 – isto, é, a partir de 1976 ou 1977. No fundo, isto se dá por uma razão mais profunda: Badiou é um anti-identitário e anti-individualista radical.

Isto, a meu ver – mas consigo entender quem possa fazer esta crítica, muito mais precisa que as acusações genéricas tradicionais – não implica moralismo, afinal Badiou está rigorosamente nem aí para as idiossincrasias e prazeres de cada um. Seu mote é aquele extraído de sua leitura de São Paulo: universalidade implica indiferença às diferenças. Pretender que algo tão amplo como a política se baseie em categorias identitárias ou experiências pessoais é desvirtuar sua destinação universal e confiná-la a guetos tribais ou lobbies de minorias não representadas (possivelmente cooptados pelo capitalismo, como vemos cada dia mais frequentemente).

Na minha opinião, é uma visão que tem atualidade, apesar de soar “conservadora”. Pense nas inúmeras caixinhas que cada vez mais são criadas para confinar tal ou qual sexualidade, conformando estereótipos de identidade reivindicados como traços de personalidades singulares e excepcionais. Isto gera fenômenos canhestros como o ator da Globo que se diz “ecossexual”, por ter tesão em gente ecológica. São formas de lacres individualistas tipicamente feitas para a era das redes sociais, reforçando aquilo que é a ideologia basilar do capitalismo: a falta de visão coletiva e ampla, o culto às particularidades, a começar pela primeira de todas – o Eu.

Trata-se, de algo, no entanto, que pode engendrar verdadeiros debates, muito mais do que controvérsias mal focadas sobre sua suposta (e falsa) apologia da monogamia ou da hetero e cis sexualidade.

Clarificando as coisas, podemos, enfim, discutir as divergências, principalmente com aquela tradição (Bataille, Kristeva, mesmo o último Foucault, a política de “minorias” do D & G, talvez remetendo até ao Max Stirner, que Badiou trata com desdém como alguém proto-deleuzeano…) que conferem à sexualidade e, mais amplamente, à individualidade, um papel predominante na ação coletiva.

*Diogo Fagundes é mestrando em Direito e graduando em Filosofia na USP.


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