Carta ao “isentão”

Imagem: Kat Smith
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Por JEAN-PIERRE CHAUVIN*

No domingo, 30 de outubro, arma-te de disposição e te anima para participar do processo civilizatório

Pessoa de bem, que saúde, paz e consciência de classe estejam contigo.

Começo me desculpando por te enviar nova missiva. Mal terminado o primeiro turno, lá venho eu perturbar-te com novo texto que apela para a tua consciência. Porém, releva: a preocupação é legítima e nada há de ilegal em escrever cartas dirigidas a ti, ainda que abertas ao eventual maior público.

Não sei como anda situação no teu habitat, mas por aqui os dias esquentaram, não só por conta do desequilíbrio ecológico provocado pelos terráqueos. Sobrevivente, desde junho de 2013 (aos manifestos apoiados pela FIESP) a 4 de outubro de 2022, passando pelo desgovernado Michel Temer (que botou em marcha o projeto de destruição massivo em nome do futuro), e sofrendo a congestão de seu sucessor, não sei se engulo bem a alcunha de vitorioso, tão disseminada entre os cidadãos da tua estirpe.

Explico-me: uma vitória digna implicaria compartilhar o momento de êxito com todos aqueles que, em tese, perderam a batalha. Porém, como bem sabes, a questão é muito delicada: oficialmente, quase 700 mil concidadãos perderam a vida, em grande parte por conta da negligência do governo federal em admitir a gravidade da doença provocada pelo vírus, e graças à suprema incompetência de seus ministros, que nada sabiam de geografia cultura, ciência, direitos humanos ou antropologia.

Dos que sobreviveram à desfaçatez e à zombaria dos executores, muitos dentre nós ressentiram as variadas lutas simultâneas: à teimosia em existir somaram-se disputas em defesa dos direitos adquiridos, das liberdades de credo (e descrença), da orientação sexual, do pertencimento a determinada etnia, da possibilidade de estudar, da persistência em procurar empregos com salários e condições dignas etc.

Faz-me vênia. Sei que não ignoras essas questões. Bem que posso imaginar teu desconforto, em pleno domingo morno e parado, por ter que saíres de casa logo após o lauto café da manhã para depositar o voto compulsório, em meio à massa ruidosa e indiscreta. Sem contar o teu temor à violência, naturalmente repudiado por tua conduta exemplar. Mas, vê e repara bem na gravidade da situação presente: tu não estavas sozinho. Ao teu lado, pelo menos vinte por cento dos ciosos patriotas deixaram de votar – uns por resignação; outros, por preguiça; os terceiros, por covardia pura e simples. E nisso, tanto uns quanto outros agiram de modo a impedir que a democracia possível derrotasse o fascismo latente. Desde quando estacionar é se movimentar? Explico-te: deixar de votar consiste no ato de se fixar em casa (ou viajar para outro hemisfério), sob a pretensa justificativa de que político é tudo igual e nada muda. Nada mais derrotista, concordas?

Aí reside uma questão que já se tornou lugar-comum de quem pensa e repensa a história recente do país. Ao reproduzir essas fórmulas vazias, tu nivelas fascistas fundamentalistas a democratas e leigos; atribuis mesmo peso a desgovernantes e estadistas; finges ignorar que não há ponto de comparação entre o sujeito cuja “especialidade é matar” e qualquer outro ser humano.

E quando digo “qualquer outro”, observe que não restrinjo a tua liberdade de votar em quem julgasse mais conveniente (aquela liberdade, digo, por que lutamos durante 21 anos para sobre-existir). Entende, portanto, minha surpresa? Em nome da postura supostamente discreta, elegante ou isenta frente à polarização, tu deixaste de votar. Talvez seja mais cômodo alienar a decisão do país para aqueles que identificas, risonhamente, como ralé, povão, militância, sindicalistas, mortadelas e que tais.

Deixa-me te segredar algo? Polarizados nós sempre fomos. Desde que o Brasil passou a ser país, a partir do desígnio imperial anunciado em setembro de 1822, governistas e antigovernistas sempre se digladiaram, primeiro sob a alcunha de liberais contra conservadores; depois, de republicanos contra monarquistas; no terceiro momento, dos socialistas contra ditadores; em seguida, dos civis contra militares; finalmente, dos sociais-democratas contra os tiranos.

Se examinares os eventos de mais perto, perceberás que há enorme diferença entre aqueles que, bem ou mal, têm um projeto de país inclusivo e aglutinador e os sujeitos que se orgulham de sua incompetência desmedida, reforçada por desinformações veiculadas sob a forma das fake News por seus asseclas e repetidores, nas redes sociais e aplicativos de mensagens.

Para nos atermos ao essencial, tu hás de convir que os últimos quatro anos foram marcados pelo signo da violência física e verbal, pela destruição do ecossistema, pela retirada de direitos e pela propagação de inverdades. Decerto, percebeste como aumentou a quantidade de miseráveis, à beira da tua porta. Tudo em nome, lembra-te, da pátria (sob as mãos de entreguistas), da religião (sob a batuta de pastores que, a débito e a crédito, ordenam em quem os fiéis devem votar), do alto empresariado (que inoculou nos mais humildes a crença de que todos podem prosperar), dos industriais (que sobraram), dos microempreendedores (que passaram a se enxergar como bastiões da economia nacional) etc.

A questão maior e imediata é que, enquanto tu nos miravas com desprezo da sacada do teu apartamento nos jardins, ou te reconfortavas na sala acanhada do teu conjugado, a te queixares do som que chegava pelas janelas sem proteção antirruído, o futuro do teu país era violentamente disputado por um bando de motociclistas (montados feito cavaleiros do apocalipse, em veículos talvez mais caros que a tua morada) que faziam fila atrás (sempre atrás) do pastiche de Mussolini.

Faz-me um favor? Posiciona-te em defesa da democracia, no segundo turno. O futuro do país está logo ali. Sei, como tu, que o regime que defendo não é perfeito. Porém, se não queres que o enredo de O conto da Aia contamine a metade que ainda não foi submetida à necropolítica-teocrática-miliciana-empresarial-entreguista, vá por mim. Toma teu café, no domingo, 30 de outubro, arma-te de disposição e te anima para participar do processo civilizatório. Não o faças por causas particulares, quanto menos por mim. Faças pelo coletivo, ainda que tu não gostes de te misturar às gentes de que orgulhosamente costuma te distanciar.

*Jean Pierre Chauvin é professor na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Mil, uma distopia (Luva Editora).

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