Por MOHAMMED ELHAJJI*
Apresentação do livro recém-lançado de Mario Luis Grangeia
Do sistema migratório luso-brasileiro
Como abordar a questão migratória transnacional? Como identificar suas múltiplas facetas e situá-las em seu contexto social, cultural, econômico e político? Que métodos e que teorias adotar no afã de adentrar sua historicidade e projetar suas implicações a médio e longo prazo? Como definir o grau de sucesso da empreitada migratória – seja a nível individual ou comunitário? São questões gerais que se aplicam ao fenômeno de modo amplo, permitindo o esboço de uma imagem inteligível do objeto de pesquisa e estudo.
No entanto, nem todas as migrações, nem todas as práticas migratórias em toda época e todo lugar são iguais ou passíveis de serem apreendidas a partir dos mesmos parâmetros. Há situações nas quais a problemática, pelo particularismo de sua história e especificidade de sua significância social e cultural, exige uma aproximação igualmente exata e sui generis. Cenários nos quais, além das possíveis generalizações paradigmáticas e metodológicas, é preciso afinar as claves que concedem ao evento sua identidade própria.
É o caso das dinâmicas migratórias entre Portugal e Brasil, que começam já nos primórdios da colonização e se estendem até os deslocamentos contemporâneos; iniciando-se enquanto percursos de sentido único para se tornarem, ao longo do tempo, trocas demográficas mútuas e contínuas. Dinâmicas que se configuram, ao mesmo tempo, em bases estruturais da relação sistêmica entre os dois países, e manifestações conjunturais decorrentes do contexto social ou político que determina o sentido dos fluxos.
Primeiro, trata-se, originalmente, de uma relação imperial / colonial; na qual os fluxos humanos cumpriam um papel social, cultural e político de posse, ocupação e formação da nova nação e transformação da matriz primordial. Em termos simbólicos e imaginários, além da possibilidade de enriquecimento material, a passagem Norte-Sul era (e, em alguma medida, continua) pregnante de uma forte carga fantasmagórica de cunho libidinal e subjetivação emancipatória.
Para os portugueses, antes de ser um destino geográfico, Brasil é um lugar imaginário, um escape mental do rígido arcabouço social ibérico, marcado pela tradição e rigor moral. Não seria muito arriscado afirmar que, no fundo, todo português tem algum tipo de fantasia associada aos trópicos e suas criaturas fantásticas.
Por outro lado, não são muitos exemplos, na história moderna da humanidade, em que a relação entre colonizador e colonizado inverte os polos do poder e a pirâmide societal. Passada a era colonial, Portugal é rebaixado de seu status de metrópole à figura indigente do “portuga” (aparentemente) simplório que só cabe no humor raso e preconceituoso que conhecemos. O próprio falar luso é reduzido à condição de “sotaque”, e suas expressões gramaticais e sintáticas consideradas como meros regionalismos.
No entanto, apesar ou em função dessa dialética identitária, as trocas entre os dois lados do Atlântico vão se consolidando enquanto “recuo estratégico” para ambas as partes. A cada episódio de crise econômica ou política em um dos dois países, constata-se um densificação subsequente dos fluxos rumo ao outro. Mobilidade que pode ser definitiva ou temporária, assemelhando-se, às vezes, mais a um transumância sazonal que a uma emigração no sentido tradicional.
Assim, ao longo das décadas, a circulação entre a península e o subcontinente vai se tornando um reflexo espontâneo, quase natural, reforçado pela língua comum e respaldado na figura jurídica da “igualdade de direitos” – ilustração eloquente da continuidade cidadã e subjetiva entre os dois territórios. Brasileiros em Portugal ou portugueses no Brasil, o movimento histórico, geográfico e simbólico permite ao sujeito migrante de experimentar modalidades inéditas de ser, simultaneamente, o mesmo e o outro: uma alteridade próxima ou uma mesmeidade distante; uma forma identitária relativa e relacional, na qual as posições de anfitrião e hóspede são continuamente compartilhadas e intercambiáveis – se não, francamente embaralhadas.
De fato, essa atração recíproca acaba constituindo propriamente um sistema migratório (luso-brasileiro) único. Do mesmo modo que a Terra e a Lua formam um sistema único; sendo “os dois corpos unidos por uma forte ligação gravitacional e afetando-se mutuamente”, as migrações (ou seriam elas, no plano macro-histórico, transumâncias?) entre Brasil e Portugal não podem ser compreendidas sem considerar este aspecto sistêmico da relação entre os dois povos, suas culturas, e suas identidades.
O livro de Mario Luis Grangeia nos proporciona, justamente, os recursos fenomenológicos necessários para a compreensão da temática em sua totalidade e abrangência. Seu método, plural e modular, permite montar a imagem geral dessa realidade histórico-subjetiva em segmentos ao mesmo tempo autônomos e complementares. O resultado é um puzzle progressivo que se revela, no final, uma obra plena e oferece uma paisagem completa e inteligível do fenômeno.
Observação, conversação, testemunho, análise discursiva, relato historiográfico ou arqueologia documental, a abordagem panorâmica por ele adotada se destaca por sua acessibilidade, compreensibilidade e amplitude. Ilumina e destaca as várias facetas e níveis do objeto exposto de modo igual, sem deixar ângulos cegos ou regiões obscuras; retratando desde os aspectos materiais de ordem econômica, política e jurídica até as dimensões de cunho simbólico como as práticas culturais, as relações sociais ou a produção de imaginários relacionados a essa mobilidade histórica.
No entanto, o principal diferencial do estudo de Mario Luis Grangeia é sua potência narrativa, seu estilo convidativo e sua enunciação exata, que tornam sua leitura não apenas agradável, mas sobretudo uma experiência subjetiva viva, afetiva e absolutamente humana – como um caloroso abraço fraterno.
*Mohammed ElHajji é professor titular da Escola de Comunicação da UFRJ.
Referência
Mario Luis Grangeia. Irmãos de além-mar? Portugueses e a imigração no Brasil. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 2024, 192 págs. [https://amzn.to/4f93ASw]
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA