O anjo da história

Angelus Novus, 1920, Paul Klee, tinta nanquim e tinta à óleo sobre papel, 31,8 x 24,2 cm, Museu de Israel
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Por CIDNEI MARSCHALK*

O anjo estaria de costas para o futuro por estar olhando para o passado e para os vencidos e derrotados pelo suposto progresso da história

Traduzido em símbolo do anjo da história por Walter Benjamin, o quadro do autor suíço Paul Klee, transformou-se, sob a posse de Benjamin, em uma estrutura revolucionária e assumiu a partir de então uma história própria, independente do autor da pintura (Baptista, 2008).

Como todo símbolo, sua função foi assumida por Walter Benjamin como presentificadora de informações que não podem ser traduzidas na forma de palavras. Seu nome foi cogitado para o título de um jornal, embora esse projeto não tenha se materializado, e sua análise serve de base para a exposição do conceito de história com que Walter Benjamin viria a reconfigurar o estudo desse campo de pesquisa.

Na nona tese do seu ensaio “Sobre o Conceito de História”, Benjamin escreveu: “Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso”.

O anjo estaria de costas para o futuro por estar olhando para o passado e para os vencidos e derrotados pelo suposto progresso da história. O anjo traria uma chave para abrir as portas para a recordação da história que se decanta em imagens, recalcadas no inconsciente. Defendia um processo de presentificação anamnésica, que seria um tipo de ética da descontinuidade do fluxo da história que vem sendo construída para recontextualizá-la.

Onde a historiografia vigente celebra a glória dos heróis genocidas, o materialista histórico deve manter distância, celebrar esses acontecimentos seria o equivalente a ter empatia com a catástrofe, para ele a história não deve apenas se apoderar da tradição dos oprimidos, mas refundá-las, trazendo uma esperança para a libertação e construção de um novo espaço para os mortos, para a fundação de um novo começo.

Walter Benjamin teria feito uma “revolução copernicana” na história, assim como Darwin fez na biologia, Newton na física e Freud na psicologia. Isso se deve ao fato de afirmar que o passado é sempre uma interpretação do presente, portanto nunca é algo estático e imóvel ou linear, mas sempre passível de transformação. Ele tenta mostrar que a história pode ser sempre reinterpretada e remodelada, pode ser contada a partir da perspectiva dos vencidos, dos derrotados, pois segundo ele, a história da forma como é narrada é sempre sob a perspectiva dos vencedores e das classes dominantes. Narrando a história à contrapelo, resgatamos a memória dos mortos e humilhados do passado e damos a eles um lugar no presente.

Sendo assim, Walter Benjamin contraria as visões positivistas e evolucionistas de história que teriam uma visão dogmática e ortodoxa de progresso, construída em cima de um conceito teleológico de história linear, que estariam impregnando inclusive o materialismo histórico de sua época, o tornando vulgar, tal como propõe György Lukács em sua crítica ao realismo soviético da arte.

Walter Benjamin tinha descendência judaica, e no judaísmo foi buscar a ideia do tempo propício, que deve ser capturado, pois nos escapa. Afirmava que o passado não se foi, mas ele escapa de nossas mãos se permitimos, se cada vez que o passado reluz no presente e não percebemos que ele nos foge. O passado está em ruínas, mas as ruínas reluzem no presente, e que em cada geração ainda está presente uma tênue força messiânica, que traria uma esperança de mudança social e uma salvação para os mortos da história.

A verdadeira história universal, fundada na rememoração de todas as vítimas, sem exceção, somente será possível na futura sociedade sem classes. Friedrich Nietzsche, citado em epígrafe por Walter Benjamin, é tomado como advertência de que a historiografia deve servir ao presente “para favorecer o acontecimento de um tempo futuro”, interrompendo a continuidade da opressão.

A ascensão do nazismo na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, obrigou Walter Benjamin a exilar-se na França em 1933, afastando-se da obra de Paul Klee. Dois anos mais tarde uma amiga a leva para Paris, onde permaneceu com Walter Benjamim até o momento em que, com o pacto de não agressão entre Stalin e Hitler e a fronteira leste da Alemanha estando livre da invasão soviética, os nazistas avançam com suas tropas para a Europa Ocidental, forçando Walter Benjamin a tentar escapar pela fronteira da França com a Espanha, em junho de 1940. Ao ser detido atravessando a fronteira, Benjamin comete suicídio.

Antes de deixar a capital francesa, Walter Benjamin teve o cuidado de retirar o desenho da moldura e colocá-lo junto aos escritos que gostaria que fossem salvos da catástrofe eminente. Seus textos e a obra de Klee ficaram aos cuidados do escritor e filósofo Georges Bataille, então funcionário da Bibliotèque Nationale que, escondeu o material até o fim da Segunda Guerra Mundial.

Posteriormente, o anjo foi enviado ao filósofo alemão Theodor W. Adorno, então exilado nos Estados Unidos, com quem Walter Benjamin se correspondia, e que retornaria à Europa somente em 1949. Após anos de disputa entre Stefan Benjamin, filho único e herdeiro legal de Benjamin, e G. Scholem, um notável estudioso do misticismo judaico e grande amigo do filósofo, Angelus Novus chega em Jerusalém em 1972. Enfim, o “mensageiro da Cabala”, como Walter Benjamin o chamou algumas vezes, encontrou seu destino final como parte do acervo do Museu de Israel, onde permanece até hoje.

De acordo com Michael Löwy (2005), estamos habituados a classificar as diferentes filosofias da história segundo seu caráter progressista ou conservador, revolucionário ou nostálgico do passado. Walter Benjamin escapa a essas classificações. É um crítico revolucionário da filosofia do progresso, um adversário marxista do progressismo, um nostálgico do passado que sonha com o porvir, um romântico partidário do materialismo. Ele é, em todo o sentido da palavra, inclassificável.

Theodor W. Adorno o definia como um pensador “distante de todas as correntes” e seu messianismo utópico distingue-se pelo seu caráter estritamente impessoal: é a era messiânica do porvir presente em cada geração de forma tênue que o interessa e não a pessoa do Messias. Nada é mais distante de sua abordagem espiritual e política que o culto religioso de um salvador carismático, de um profeta ou de um herói milenar.

Walter Benjamin, teria quase sido professor de literatura alemã na Universidade de São Paulo (USP), mas, de acordo com Löwy, por culpa de alguma instância incompetente, a Universidade perdera a oportunidade de incluir Walter Benjamin em seu corpo docente.

Em seu livro Walter Benjamin: aviso de incêndio – uma leitura sobre das teses ‘Sobre o conceito de história’, Michael Löwy recorda que numa carta a Walter Benjamin, datada de 23 de setembro de 1935, o historiador da cultura e nome fundamental da crítica literária do século XX, Erich Auerbach, referia-se a possibilidade de um contrato de Walter Benjamin com a USP já nos primeiros anos de sua fundação. Este documento foi descoberto pelo pesquisador Karlheinz Barck, nos arquivos de Walter Benjamin conservados na Academia de Artes da Republica Dernocratica Alemã.

Escreve Erich Auerbach em 23 de setembro de 1935, de Roma: “Caro Senhor Benjamin, Justamente agora, minha mulher descobre na Neue Zürcher Zetitung do último sábado a sua colaboração. Que alegria! Que o senhor ainda esteja aí, que escreva, e estes sons da pátria desaparecida. Dê-nos por favor sinal de onde e como está. Há um ano pelo menos, quando se procurava um professor para ensinar literatura alemã em São Paulo, pensei no senhor (…), mandei seu endereço para as instâncias competentes – mas a coisa não deu em nada…”.

Erich Auerbach referia-se à fundação da Universidade de São Paulo, ocorrida no ano anterior, e cujas primeiras turmas de professores foram recrutadas entre intelectuais europeus, como Claude-Lévi Strauss, num projeto de “modernização periférica”, que permanece até hoje.

Michael Löwy complementa: “Algum escritor brasileiro deveria inventar um conto com a história imaginaria da estadia do ilustre exilado antifascista no Brasil dos anos 1930: sua chegada a Santos em 1934, onde teria sido recebido por alguns colegas da USP (…); suas primeiras impressões sobre o país e sobre São Paulo, a Universidade, os estudantes; seu difícil aprendizado da língua portuguesa; sua tentativa de ler Machado de Assis na língua original, com o intuito de uma interpretação materialista; sua prisão pelo Dops (…), denunciado como agente do comunismo internacional; seu interrogatório policial (…), seu encarceramento em um navio-prisão, onde encontra e se torna amigo de Graciliano Ramos; as notas que toma num caderno comparando Graciliano com Brecht; e sua angústia, enquanto espera que o libertem ou que o deportem para a Alemanha”.

Cidnei Marschalk é doutorando em sociologia na Universidade de São Paulo (USP).

Referências


BAPTISTA, M. R. Sobre anjos e folhas secas: em torno do Angelus Novus de Paul Klee. HORIZONTE – Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, v. 7, n. 13, p. 127-141, 3 dez. 2008.

BEMVINDO, V. “Escovar a história a contrapelo”: contribuições de Walter Benjamin para a concepção dialética da história. Revista Trabalho Necessário, v. 18, n. 35, p. 20-37, 23 jan. 2020.

BENJAMIN, Walter. “Sobre o Conceito de História” (1940). In: Obras Escolhidas, v. I, Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet.

IMBROISI, Margaret; MARTINS, Simone. Angelus Novus, Paul Klee. História das Artes, 2023. Disponível em: https://www.historiadasartes.com/sala-dos-professores/angelus-novus-paul-klee/

LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de História”. São Paulo: Boitempo, 2005.


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