Por JOSÉ LUÍS FIORI & ANDRÉ FERRARI HAINES*
Milei representa algo menos disruptivo e inovador do que pode parecer à primeira vista, quando se olha apenas para as esquisitices desse animador de televisão
Expressiva vitória eleitoral do candidato de extrema direita, nas eleições presidenciais argentinas do dia 19 de novembro de 2023, deve interromper ou abortar – mais uma vez – o projeto de criação de um bloco de poder internacional no Cone Sul da América. Como foi concebido pela primeira vez, durante os governos de Vargas e Peron, na primeira metade da década de 1950.
E é muito provável que venha a suspender a entrada da Argentina no grupo do BRICS, deixando um ponto de interrogação com relação ao processo de expansão do Mercosul que está em pleno curso. E com certeza deve ensejar uma reorganização do sistema partidário argentino que funcionou nestes últimos quarenta anos, depois do fim da terrível ditadura militar daquele país que durou de 1976 a 1983.
Representa, no entanto, algo menos disruptivo e inovador do que pode parecer à primeira vista, quando se olha apenas para as esquisitices desse animador de televisão que chegou à presidência da República do seu país dois anos apenas depois de iniciar sua carreira política.
Reproduzindo um pouco, neste sentido, o caso do atual presidente do Chile, que também se elegeu presidente da República sem nunca ter participado de qualquer outra eleição ou cargo executivo, como aconteceu também com o presidente americano Donald Trump.
O próprio personagem caricato e o histrionismo do novo presidente reproduzem um fenômeno que vem se repetindo e multiplicando dentro da extrema direita ocidental, com a escolha de figuras cômicas e falsamente disruptivas como forma de galvanizar os jovens e o desencanto radical das pessoas.
O primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, talvez tenha sido, aliás, o primeiro desta série de comediantes, palhaços e animadores de programas televisivos que alcançaram o governo de seus países através de uma combinação de suas interpretações com o uso extremamente eficiente das redes sociais. Depois de Silvio Berlusconi, foi o caso também de outro italiano, Giuseppe Grillo, o comediante que criou o Movimento 5 Estrelas e se transformou do dia para a noite no terceiro maior partido da Itália.
Do próprio presidente Donald Trump, que também saltou diretamente da televisão, dos campos de golfe e da especulação imobiliária para a presidência da maior potência do mundo. E como não lembrar de Volodymyr Zelensky, de profissão palhaço, e que também saltou dos circos e da televisão diretamente para a presidência da Ucrânia.
O novo presidente da Argentina sempre foi um animador de programas de televisão, muito mais do que um professor de economia, coisa, aliás, que sabe muito pouco apesar das aparências.
E foi nestes programas de televisão, onde ele sempre foi um “quase comediante”, que ele desenvolveu sua retórica contra tudo e contra todos, ora saltando, ora cantando, ora se fantasiando e fazendo afirmações que escandalizavam a sociedade argentina, mas que foram conquistando o apoio de uma massa jovem, deslocada e desempregada da população cada vez mais desalentada com o estreitamento de suas “oportunidades” fora do mercado regulamentando de trabalho na Argentina.
A campanha do novo presidente argentino assumiu direta e explicitamente, como seu ideal, o projeto “utópico-retroativo” de voltar a 1860 e retomar o caminho da Argentina entre 1860 e 1930, sem a menor consideração pelo fato de que a humanidade, o capitalismo e seu próprio país mudaram radicalmente durante os últimos 150 anos.
Guardadas as devidas proporções, seria o mesmo se a Inglaterra quisesse voltar à sua “Era Vitoriana”, e reconquistar seu império colonial do século XIX, utopia retroativa, aliás, que ocupou um lugar central no imaginário coletivo dos ingleses que aprovaram o Brexit que está na origem da crise profunda e da decadência atual da própria Inglaterra.
O certo, contudo, e o mais importante para pensar o futuro argentino, é que o novo presidente de extrema direita, com suas esquisitices e aberrações, só conseguiu se eleger no segundo turno, graças ao apoio integral da direita tradicional comandada por Mauricio Macri, e que votou em Patricia Bulrich, no primeiro turno.
O novo presidente se elegeu com o apoio de Mauricio Macri e Patricia Bullrich, e este apoio só aconteceu depois de um acordo envolvendo a divisão de funções e cargos dentro do novo governo.
E o mais provável é que quem afinal governe a Argentina seja de novo Mauricio Macri junto com seu grupo de economistas e profissionais indispensáveis para um neófito isolado, sem partido, e sem contar com apoio – neste momento – de nenhum dos 23 governadores provinciais da Argentina, e contando apenas com 35 deputados e 8 senadores, num Congresso Nacional de 257 deputados e 72 senadores.
Deste ponto de vista, descontados os arroubos de campanha (tipo fechamento do Banco Central e dolarização), é de esperar que a política do novo presidente repita a mesma política econômica e social do governo de Mauricio Macri entre 2015-19, com um corte violento dos gastos públicos em educação, saúde e infraestruturas, aumento da tributação sobre os mais pobres e classes médias, e uma nova abertura e privatização da economia – com olho posto na mina dourada dos recursos naturais a serem explorados nas reservas de Vaca Muerta.
Uma política que em última instância, se propõe imitar a política econômica da Argentina entre 1860 e 1930, quando o país contava apenas com quatro ou cinco milhões de habitantes, e não tinha Banco Central, que só foi criado em 1935. Aliás, nem os Estados Unidos tinham um Banco Central, que só foi criado em 1913.
O que o novo governo propõe é – em última instância – a entrega do controle das divisas do país direta e “anarquicamente”, nas mãos da classe agroexportadora, descendente direta da velha oligarquia pampeana que governou o país até a década de 1930. Antes, portanto, do surgimento do “Estado de bem-estar social” argentino – que é exatamente o que o novo presidente se propõe a desmontar de forma integral.
O que muito provavelmente deverá provocar, como em outros lugares e ocasiões, a falência de dezenas de pequenas e médias empresas, fortalecendo o predomínio do enriquecimento financeiro através da tutelagem dos programas de austeridade e o endividamento contínuo e crescente no FMI.
Com o inevitável aumento da miséria da maioria da população que terá que sobreviver sem os atuais subsídios governamentais para transporte público, saúde e educação.
Em síntese, liberalismo antiestatal, anarco-mercantilização de tudo, inclusive dos órgãos humanos, individualismo radical inclusive na questão do seguro para a saúde e a velhice, e privatização definitiva do que foi reestatizado pelo governo de Alberto Fernandez.
Quase exatamente a mesma política do ministro Martinez de Hoz, durante a ditadura militar entre 1976 e 1983; de Domingo Cavallo, durante o governo peronista de Carlos Menem, entre 1989 e 1999; e do empresário direitista Maurício Macri, entre 2015 e 2019. Neste sentido, nada de novo debaixo do sol.
Uma mesmice que já custou caro aos próprios argentinos e que sempre teve um altíssimo custo social, em todos os países em que foi aplicada, sem trazer crescimento econômico sustentado, mesmo nos países anglo-saxões e nas grandes potências econômicas europeias que jamais aderiram, aliás, elas próprias, ao ultraliberalismo radical.
Aliás, se o novo presidente aplicar integralmente o seu programa econômico, o mais provável é que não termine seu mandato, como já aconteceu com outros presidentes que foram obrigados a renunciar antes do fim dos seus mandatos, atropelados pela hiperinflação.
Do ponto de vista geopolítico e da política externa, o que se deve esperar do novo presidente argentino, é uma imediata demonstração de admiração e fé nos Estados Unidos e por Israel, junto com uma peregrinação convencional a Kiev, com críticas à China e à Rússia, gestos de provocação com relação ao governo brasileiro e também suas invariáveis macaquices nazistas feitas especialmente para provocar as pessoas de esquerda.
Mas com certeza o empresariado e a direita tradicional argentina não permitirão que o novo presidente vá muito além das suas fanfarras de campanha, rompendo relações com China ou com o Brasil, nem é provável que os argentinos se retirem do Mercosul.
Neste sentido, a questão verdadeiramente importante, para calcular o futuro de mais longo prazo da Argentina, é saber o que passará com a sua população depois dessa nova intentona do capitalismo ultraliberal à qual a Argentina está se entregando.
*José Luís Fiori é professor emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de O poder global e a nova geopolítica das nações (Boitempo). [https://amzn.to/3RgUPN3]
*André Ferrari Haines é professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS.
Publicado originalmente no Boletim do observatório internacional do século XXI.
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