Por CILAINE ALVES CUNHA*
Perfil do crítico literário agraciado hoje com o título de Professor Emérito da FFLCH-USP
João Adolfo Hansen ingressou na carreira docente da Universidade de São Paulo em 1983 quando, em agosto, foi aprovado em concurso de seleção de professores para a área de literatura brasileira, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas. Realizou suas pesquisas de pós-graduação por esse mesmo departamento. Tornou-se professor titular cinco anos após a defesa, em 2002, de sua tese de livre-docência.
Sua dissertação de mestrado (O O: A ficção da literatura em Grande sertão: veredas, 1983) concretizou-se num momento em que a recepção dessa obra dividia-se em dois campos. Alguns estudiosos avaliavam que ela não teria enfrentado a miséria do sertão brasileiro com realismo, enquanto outros propunham que Guimarães Rosa teria feito uma “revolução” de rupturas e desvios estéticos, uma espécie de Joyce da metalinguagem sertaneja.
Em outra direção, João Adolfo Hansen procurou demonstrar que o projeto literário e utópico de Guimarães Rosa reescreve a própria língua, matéria de sua ficção, com sentido eminentemente político de recusa e crítica das linguagens instrumentais, degradadas nos usos petrificados como mito e ideologia. Naquele momento em que circulava a leitura de que a obra de Guimarães Rosa continha um viés místico conservador, o trabalho de João Adolfo Hansen abordou dispositivos ficcionais dessa literatura que, de acordo com ele, forçam os limites da significação e do sentido. Na figuração do sertanejo pobre e iletrado, o romance encena os limites ideológicos da particularidade histórica da razão instrumental contemporânea, desrealizando as lógicas dominantes.
Nessa ótica, Guimarães Rosa sempre afirma em sua arte que desumanidades também existem na língua e no discurso. De acordo com o crítico, Grande sertão narrativiza versões litorâneas e ilustradas da “cultura brasileira” que, desde o século XIX, retomaram e transformaram as representações coloniais, tratando do sertão em projetos de integração nacional, civilização e controle. As versões ilustradas da cultura litorânea são corroídas pela mimese de Ideia, que Guimarães Rosa metaforiza, ao apropriar-se de procedimentos da “metáfora sem semelhança” de platônicos, para constituir a voz de Riobaldo como lugar por onde passam, dissolvidos, diversos lugares-comuns.
O trabalho de João Adolfo Hansen retomou parcialmente o ensaio de Antonio Candido, “O homem dos avessos”, de 1957, sobre Grande sertão: veredas. Nele Candido propõe que Guimarães Rosa cita, estiliza e parodia textos fundamentais da Literatura Brasileira – a prosa dos românticos, José de Alencar, Taunay e Franklin, Távora; a prosa de realistas e naturalistas, como Luzia-Homem e Os Sertões; os modernistas paulistas de 1922 e os autores nordestinos de 1930. O O: A ficção da literatura em Grande sertão: veredas discute, enfim, o sentido político dessa efetuação e a define como racionalização negativa da forma que encena uma utopia linguística e literária.
A premiada tese de doutorado (1988) de João Adolfo Hansen intitulou-se A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. Sua concretização baseou-se em consultas a Atas e Cartas do Senado da Câmara de Salvador, entre 1640 e 1740, cartas de governadores da Bahia no século XVII, em documentação da visita do Santo Ofício da Inquisição à Bahia no início do século XVII, em manuais inquisitoriais – como o de Nicolau Eymerich e Francisco Peña, Directorium Inquisitorum, além do Malleus maleficarum, por H. Kramer e J. Sprenger – e em tratados de retórica e poética que circulavam no tempo.
O trabalho evidenciou que, como gênero retórico-poético, a sátira seiscentista é homóloga das práticas de denúncia e confissão inquisitoriais. A razão da sátira atribuída a Gregório de Matos e Guerra fundamenta-se no Direito Canônico orientado, de acordo com João Adolfo Hansen, pela doutrina católica que afirma o dogma da luz natural da graça inata como condição da legalidade e legitimidade das leis positivas da cidade. Sua enunciação compõe distinções aparentes de “legal”, “legítimo”, “eterno”, “natural”, “positivo”, “puro” e “impuro”, ordenando-as segundo os padrões retóricos da representação de uma racionalidade em que a ortodoxia e a hierarquia são nucleares.
Nessa ótica, há um grande princípio ordenador das representações luso-brasileiras no século XVII, interpretado teologicamente segundo a grande oposição metafísica que vinca todas as práticas do tempo e opõe o finito e o infinito. Tal oposição complementar repete, de acordo com João Adolfo Hansen, Aristóteles, Santo Agostinho e principalmente Santo Tomás de Aquino que procura demonstrar a presença do infinito divino, aconselhando providencialmente o livre-arbítrio do juízo finito nas causas temporais. Articulada com a doutrina do juízo silogístico, do De anima III, a doutrina de Santo Agostinho faz com que, na poesia, a ordem do conceito engenhoso – modelada em termos retórico-poéticos pelas três analogias escolásticas de atribuição, proporção e proporcionalidade – seja simultaneamente dramatização do conceito teológico-político da ordem que rege a hierarquia em termos providencialistas.
Após analisar a recepção da poesia atribuída a Gregório de Matos e Guerra, desde a biografia escrita pelo Licenciado Manuel Pereira Rabelo, no século XVIII, passando pelas Histórias da Literatura do século XI e XX, João Adolfo Hansen compara o sistema de produção, circulação e consumo moderno com o antigo, ressaltando que este não se baseia em noções como “autor”, “autoria” e “originalidade”. Antes se constitui como imitação de tópicas e preceitos das doutrinas teológico-políticas e retórico-poéticas, prevista no costume.
O crítico também rejeita a possibilidade, considerada anacrônica, de que as letras coloniais seiscentistas pudessem ser compreendidas de acordo com a teleologia nacionalista ou com a noção de “ruptura”. Ao restabelecer a participação da poesia atribuída a Gregório de Matos e Guerra no sistema cultural português e confrontar a antiga concepção de história providencialista com a aquela que define o andamento da história de acordo com um vetor linear e progressivo, o trabalho de João Adolfo Hansen tornou inócua a possibilidade de que ela pudesse ser lida como manifestação em germe do “espírito” da nação, ou como crítica da vida social e da tradição. Sua tese também se dedica a uma reflexão sobre a insuficiência da noção moderna “estilo de época ‘barroco’”, não apenas por essa designação escapar ao tempo antigo ao qual se aplica, mas, sobretudo, por considerar que ela estreita a multiplicidade de questões que envolvem os estilos artísticos em cada obra e em cada tempo.
Ao interligar o estudo da poesia atribuída a Gregório de Matos e Guerra a suas práticas históricas e sociais, A sátira e o engenho reorientou em outras bases os estudos das letras coloniais, com a abertura de várias questões e possibilidades de pesquisa sobre ela, inclusive colocando em circulação procedimentos poéticos e gêneros artísticos quase fora de circulação e que evidenciam a riqueza da produção letrada do período colonial.
Após sua defesa de doutorado, João Adolfo Hansen desenvolveu pesquisas sobre os mais diferentes temas sobre seu campo de atuação, interligadas a outras áreas das Ciências Humanas, como Artes Plásticas, Filosofia, Política e História, sempre se baseando em pesquisas de arquivos e estabelecendo correlações entre elas e o presente da enunciação do estudioso. Expandiu a partir de então suas pesquisas pelo espaço e pelo tempo, ampliando o número de questões históricas, antropológicas, retóricas e artísticas de que veio se ocupando. Seus trabalhos concentram-se numa análise crítica e documental das práticas de representação luso-brasileiras, produzidas entre os séculos XVI ao XVIII, e da historiografia literária e artística que, desde o século XIX, vem se ocupando delas.
Em suas pesquisas posteriores a sua tese, sobre práticas de representação luso-brasileiras, João Adolfo Hansen traça um recorte temporal localizado desde a colonização – com o estabelecimento do Governo Geral, a vinda da missão da Companhia de Jesus, chefiada por Manuel da Nóbrega, no século XVI –, o início da União Ibérica, em 1580, e, depois, a partir do século XVII, incluindo o Estado do Maranhão e Grão-Pará, até a expulsão definitiva dos jesuítas e as reformas do Marquês de Pombal, no século XVIII.
Na realização de seus trabalhos, cruza práticas discursivas e não discursivas dos séculos XVI ao XVIII com discursos de documentos oficiais – de Câmaras municipais, atas e cartas, regimentos de Governadores, ordens-régias, processos, pleitos e agravos de Tribunais, livros de alfândegas, contratos de compra e venda de escravos, inventários etc. –, com textos do Direito canônico; com várias retóricas gregas e latinas, outras as redefinindo escolasticamente e realizando a doutrina da emulação de letrados e artífices, que fazem a representação do poder real para o chamado “corpo místico” do Império português. No cruzamento, estabelece homologias entre discursos ficcionais e não ficcionais e neles recupera a mimetização de princípios doutrinários e de preceitos teológico-políticos que regeram a representação colonial.
Suas pesquisas abordam representações correspondentes aos processos colonizadores da “política católica” da monarquia absoluta espanhola e portuguesa, nos Estados do Brasil e do Maranhão e Grão-Pará, ocupando-se de assuntos tais como: a doutrina escolástica do Estado português definido como “corpo místico” de ordens e estamentos subordinados à pessoa imortal do rei; a hierarquia fundada no “pacto de sujeição” antiluterano e antimaquiavélico e na desigualdade dos privilégios determinada pela “razão de Estado”; o substancialismo do dogma católico da luz natural da graça inata, que define a participação proporcionada da natureza e da história na substância metafísica de Deus; a analogia escolástica, que em suas três espécies metafísicas, lógicas e retóricas – atribuição, proporção, proporcionalidade – qualifica todos os tempos históricos e representações deles como história providencialista; o mercantilismo, doutrinado segundo a tese de Giovanni Botero do “interesse” oposto às teses de Maquiavel e Hobbes da guerra de todos contra todos; o exclusivo metropolitano; a monocultura açucareira e a busca dos metais; a educação jesuítica; a catequese dos índios; a escravidão dos negros; a “guerra justa” contra o gentio bravo e quilombolas; a racionalidade de Corte, como ética e etiqueta, retórica e poética da agudeza, discrição de atos e civilidade de maneiras dos “melhores” ou “gente de representação”; o predomínio da oralidade e das formas do tempo breve da audição; sobre a educação de príncipes pelo gênero “espelho”; a nenhuma autonomia estética da poesia e da prosa; a circulação manuscrita dos textos; a ausência de regimes autorais iluministas e pós-iluministas, como “expressão”, “subjetividade psicológica”, “direitos autorais”, “originalidade”, “plágio”; a definição de “autor”, “obra” e “público” segundo os princípios substancialistas das noções de “corpo místico” e “bem comum” exteriores à concepção de “autor”, “obra” e “público” da literatura nacional; a concepção substancialista ou não cartesiana do signo, que não distingue conceito e imagem; a auctoritas da mimese aristotélica etc.
Ocupa-se ainda de outras sátiras e da lírica de Gregório de Matos e Guerra, de textos de Manoel da Nóbrega, Antônio Vieira, de Serafim Leite e outros da Companhia de Jesus, de Pero Vaz de Caminha, Camões, Dante, Giulio Camilo, Tomás Antônio Gonzaga, Silva Alvarenga, Cláudio Manoel da Costa entre outros.
As pesquisas de João Adolfo Hansen também examinam diversas obras, autores e categorias históricas e artísticas próprias dos tempos modernos e contemporâneos. Produziu outros diversos trabalhos dedicados a autores, artistas plásticos, teóricos da literatura, historiadores e categorias próprias deste tempo: sobre a obra de Michel de Certeau, Roger Chartier, Eric Auerbach, Dante, Camões, Cervantes, Sousândrade, Castro Alves, Machado de Assis, Augusto dos Anjos, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, a poesia marginal nos anos 1970, Saramago, Hilda Hilst, Glauco Mattoso, Régis Bonvicino, Verônica Stigger, Hélio Oiticica, Rubens Gerchman e Carlos Bracher; sobre as noções de “autor” e de “autoria”, a experiência do tempo e da temporalidade após a Revolução Francesa e a Revolução Industrial.
Trouxe contribuições inestimáveis para o ensino das letras coloniais, dos diferentes autores da literatura brasileira, de outras literaturas e das artes modernas; para a historiografia, a teoria e a crítica literária do presente. Na sala de aula, conquistava a todos com sua sofisticada simplicidade, com humor e ironia, com uma doação intelectual que não media esforços e com um senso agudo da constante transitoriedade e da diversidade dos tempos históricos. A essas e tantas outras contribuições, soma-se ainda seu embate profundo e rigoroso com a cultura e a política brasileira contemporânea.
*Cilaine Alves Cunha é professora de literatura brasileira na FFLCH-USP. Autora, entre outros livros, de O belo e o disforme: Álvares de Azevedo e a ironia romântica (Edusp).
Referências
HANSEN, João Adolfo. Agudezas seiscentistas e outros ensaios. Org. CUNHA, Cilaine. LAUDANNA, Mayra. São Paulo: Edusp, 2019. Prêmio Mário de Andrade, da Fundação Biblioteca Nacional.
__________. Reunião, organização e estudos literários, juntamente com Marcello Moreira, de Gregório de Matos. Poemas atribuídos. Códice Asensio-Cunha. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, 5 vols. Grande Prêmio da Crítica, Associação Paulista de Críticos de Arte, 2014.
__________. A Sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do Século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Prêmio Estudos Literários Jabuti, 1990.
__________. Drummond e o livro inútil. Rio de Janeiro/ Copenhague: Pequena Biblioteca de Ensaios, 2020.
__________. O que é um livro? São Paulo: SESC-SP, 2013.
__________. Alegoria. Construção e interpretação da metáfora. São Paulo/Campinas: Hedra/Editora Unicamp, 2006.
__________. Solombra ou A sombra que cai sobre o eu. São Paulo: Hedra, 2005.
__________. A sátira e o engenho. Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. Cotia/ Campinas: Ateliê Editorial/ Editora da UNICAMP, 2004.
__________. O O. A ficção da literatura em Grande sertão: veredas. São Paulo: Hedra, 2000.
__________. Carlos Bracher. Da mineração da alma. São Paulo: Edusp, 1998.
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