Quem matou meu professor?

Imagem: Robert Rauschenberg
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Por SERGIO ANDRADE YENDO*

Comentário sobre o livro recém-lançado de Diego Ramirez Luciano

Diego Ramirez Luciano, mestre em filosofia pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), brinda-nos com outro livro filiado à literatura libertadora. Se na obra de estreia, A escola do tucano”, o exame bem-humorado da sociedade paulista, mediante minudente inventário crítico da rica fauna local, conduziu-nos pelo interior de uma locomotiva sucateada pelo tucanato ao longo de décadas (com equivalentes ideológicos aqui e acolá Brasil afora), bem como ao reconhecimento de (des)semelhantes no safari piratiningano, herdeiro de A revolução dos bichos, sem o arremate desesperançado a partir de sujeitos indistinguíveis.[i]

Agora, em Quem matou meu professor?, Diego Ramirez Luciano – lastreado nos diálogos do protagonista do romance, Carlos, com forças antropomorfizadas – dedica-se às agonias existenciais do professorado, e em certa medida de todos nós enquanto comunidade, em que perdurante noite intranquila[ii] e dia condescendente confundem-se, e em que mil formas de morrer em vida surgem do memento mori coletivo, organizado e registrado pelo escritor em prosa.

O autor fotografa – munido de politeísmo secularizado presente na interlocução de fatores sociais com Carlos, na verdade construções interativas do humano para o humano, portanto, a rigor, um monólogo, orientado por oráculo dantesco – uma sociedade, na melhor das hipóteses, agonizante, que suplica por outra forma de viver,[iii] pautada pela responsabilidade planetária do homo sapiens, demiurgo do Antropoceno,[iv] à luz de outro modo de produção.[v]

O título anuncia não só a finitude antecipada do educador: ele escancara o destino e a efemeridade de todos os viventes. O livro, desde a capa, profetiza o cataclismo pessoal – que remete à imagem de Justine, expetante, com medidor de arame a postos, no filme Melancolia, de Lars von Trier[vi] –, bem como a mortalidade social indistinta de quem ensina e de quem aprende, de quem escreve e de quem lê, de quem se insere e de quem é excluído do âmbito da linguagem, atributo formativo e destrutivo da espécie humana. Porém, mais importante do que trazer à tona a transitoriedade humana apenas em si considerada, breve capítulo da longeva jornada terrestre, é a razão do óbito do professor, o percurso de Carlos até o sabido fim, com apreensão de fatores subjacentes, que desvela a condição desesperadora da periferia do capitalismo, relegada à ignorância das causas, à claustrofobia nas minas ouro-pretanas, à anulação de alternativas pelo receituário neoliberal, ao grande mal-entendido dos artífices importados, ao equivocado determinismo da solidão.[vii]

A série de ficção científica“Altered Carbon,[viii] embora cambaleante vez ou outra na versão audiovisual do livro homônimo, suscita reflexões acerca do papel da memória para a composição da humanidade em um mundo habitado por imortais – graças ao avanço tecnológico que encapsulou a mente, tornando os corpos meros receptáculos, descartáveis, em geral. As lembranças, assim, adquirem o destaque merecido, sobrepondo-se, em certa medida, às exterioridades, à compleição das pessoas. Porque as recordações definem quem somos e, talvez mais relevante, quem podemos vir a ser, as experiências acumuladas, até mesmo os traumas carentes de superação, são imprescindíveis para todos nós, individual e coletivamente.

Nesse sentido, o testamento inesperado e implícito de Carlos – personagem do messianismo pedagógico de Quem matou meu professor?, encaminhado à morte pela internacionalizada sociedade brasileira por trinta moedas de cinco centavos – atravessa, na fugaz trajetória de um educador, quinhentos anos de contínuo esquecimento, quinhentos anos de exploração de uns sobre outros, quinhentos anos de passado ainda presente, cujos perduráveis acontecimentos apocalípticos são revividos nas agressões de alunos a professores em escolas, na depreciação salarial da categoria, na escassez de incentivos ao aperfeiçoamento profissional, na desvalorizada progressão na carreira, no assédio de pais em locais de ensino, nas intervenções de superiores sobre o conteúdo das aulas e das provas etc.

Praticando observações saramaguianas, consciente da responsabilidade social do escritor, Ramirez Luciano não emudece, não é indiferente às causas inadiáveis que batem à porta.[ix] A propósito, a aspiração por mudanças é indissociável das atividades letivas do autor, professor nas redes pública e particular. A obra sob análise, desse modo, ganha traços autobiográficos. O formador, o preceptor, vocacionado para as letras, cujo amadurecimento literário completa-se com “O Dilema de Baltazar” (título provisório, no prelo), paulatinamente, apurou o radar textual imprescindível para os escritores notáveis, capazes de identificar trechos despiciendos.[x] Apropriando-me das palavras do errante Holden Caulfield, de O apanhador no campo de centeio, o livro bom desperta no leitor a vontade de ser amigo do escritor[xi]. É o caso.

O retrato de nosso tempo aponta para fora da moldura. Para Diego Ramirez Luciano, não se trata da arte pela arte, desvencilhada de fundamentos sociais. No plano de fundo de Quem matou meu professor?, reside a premente politização da arte em resposta à estetização que oculta o elemento político existente na produção artística. Se, conforme Walter Benjamin, a “autoalienação atingiu um grau que lhe permite vivenciar sua própria destruição como um gozo estético de primeira ordem”[xii] (e. g. Futurismo), é incontornável a luta pela vida – não pelo simulacro de vida bovina em que nos encontramos, encenação mal-ajambrada de A Santa Joana dos Matadouros, de Bertolt Brecht[xiii] –, pois Goethe acertou: “Imagino que seja o mais nobre de nossos sentimentos a esperança de permanecer mesmo quando o destino parece nos ter conduzido para uma total inexistência.”.[xiv]

Logo, para anular o velho pacto das elites nacionais, antes de mais nada, é preciso rememorar criticamente os episódios constitutivos da brasilidade, tais como o genocídio negro, a ditadura militar e a atuação lavajatista da imprensa nos últimos anos[xv]. Essa é a rota combativa que devemos seguir, como alternativa ao novo paradigma brasileiro: o Estado suicidário,[xvi] que se versifica, considerada a obra resenhada, no Canto XIII de A divina comédia: “Ressentindo-me então do mundo injusto,/ Por fugir seus desdéns, buscando a morte,/ Comigo iníquo fui eu, que era justo”.[xvii]

*Sergio Andrade Yendo, advogado, é mestre em direito político e econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Referência


Diego Ramirez Luciano. Quem matou meu professor?. Belo Horizonte, Caravana, 2022.

Notas


[i] ORWELL, George. A revolução dos bichos: um conto de fadas. Tradução de Heitor Aquino Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 112.

[ii] KAFKA, Franz. A metamorfose. Tradução de Torrieri Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 11.

[iii] Cf. KOYAANISQATSI: LIFE OUT OF BALANCE. Direção: Godfrey Reggio. Produção: Godfrey Reggio. Estados Unidos: American Zoetrope e Institute for Regional Education, 1982.

[iv] CRUTZEN, Paul J. Geology of mankind. Nature, vol. 415, 3 de janeiro de 2002. Disponível em https://rdcu.be/cZOT3. Acesso em 16 de novembro de 2022.

[v] LÖWY, Michael. ECOSSOCIALISMO: o que é, por que precisamos dele, como chegar lá. Tradução: Victor Neves. Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, UFBA, v. 13, n. 2, pp. 471-482, agosto de 2021.

[vi] MELANCOLIA. Direção: Lars von Trier. Produção: Meta Louise Foldager, Louise Vesth. Dinamarca, Suécia, França, Alemanha: Zentropa Entertainments, Memfis Film, Slot Machine, Liberator Productions, Film i Väst, Danmarks Radio, Arte France Cinéma, Sveriges Television, Canal+, Centre National du Cinéma et de l’image animée, CinéCinéma, Edition Video, Nordisk Film, Det Danske Filminstitute, Eurimages, Swedish Film Institute, Filmstiftung Nordrhein-Westfalen, 2011.

[vii] MÁRQUEZ, Gabriel García. A solidão da América Latina. In: Cem anos de solidão. Tradução de Eric Nepomuceno. 81. ed. Rio de Janeiro: Record, 2013, pp. 11-12.

[viii] ALTERED CARBON. Criação: Laeta Kalogridis. Baseado no livro “Altered Carbon”, de Richard K. Morgan. Produção: John G. Lenic. Estados Unidos: Virago Productions, Mythology Entertainment, Phoenix Pictures et alii, 2018/2020.

[ix] SARAMAGO, José. Os escritores perante o racismo. Quatro cinco um. São Paulo: Associação Quatro Cinco Um, 18 de junho de 2020. Disponível em https://www.quatrocincoum.com.br/br/artigos/literatura/os-escritores-perante-o-racismo. Acesso em 16 de novembro de 2022.

[x] HEMINGWAY, Ernest. The Art of Fiction No. 21. [Entrevista concedida a] George Plimpton. The Paris Review, Paris, edição 18, primavera de 1958. Disponível em https://www.theparisreview.org/interviews/4825/the-art-of-fiction-no-21-ernest-hemingway. Acesso em 16 de novembro de 2022.

[xi] SALINGER, J. D. O apanhador no campo de centeio. 18.ed. Tradução de Álvaro Alencar, Antônio Rocha e Jório Dauster. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 2012, p. 23.

[xii] BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Tradução, apresentação e notas: Francisco De Ambrosis Pinheiro Machado. 1. reimpr. Porto Alegre: Zouk, 2012, p. 123.

[xiii] BRECHT, Bertolt. A Santa Joana dos Matadouros. Tradução e apresentação de Roberto Schwarz. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

[xiv] GOETHE, Johann Wolfgang von. Escritos sobre literatura. Organização e tradução: Pedro Süssekind. 3 ed. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012, p. 29.

[xv] SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.

[xvi] SAFATLE, Vladimir. Bem-vindo ao estado suicidário. Disponível em https://www.n-1edicoes.org/textos/23. Acesso em 21 de novembro de 2022.

[xvii] ALIGHIERI, Dante. Inferno. Tradução de José Pedro Xavier Pinheiro. Jandira: Principis, 2020. E-book.

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