Juçara Marçal

Lynette Yiadom-Boakye, Uma paixão como nenhuma outra
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

Considerações sobre a música hoje a partir da consagração da parceria Juçara Marçal/ Kiko Dinucci

Os prêmios arrebatados por Juçara Marçal (álbum do ano, canção do ano, prêmio Multishow 2021) e seu parceiro e produtor musical Kiko Dinucci, permitem algumas reflexões sobre a música popular brasileira nos dias de hoje.

As transformações da canção no século XXI ainda incomodam a muitos. A incorporação definitiva da eletrônica na textura sonora, a busca incessante de uma simbiose com a imagem videográfica, a pesquisa de outras formas de discurso, o abandono da eufonia em troca da aspereza, do ruído, da incômoda dissonância, tudo isso faz com que espíritos mais conservadores sejam refratários a qualquer audição.

Dissonância é um termo chave nessa proposta. Não podemos esquecer que a bossa nova incorporou dissonâncias até então inexploradas na música brasileira, e por isso foi acusada de ser “jazzística”. O próprio jazz americano moderno (estou falando dos anos 1950!) foi muitas vezes acusado de fazer ruído, e não música. Em poucas décadas isso foi incorporado, assimilado, virou cultura. Hoje escutamos as bossas mais dissonantes como trilha sonora de bares, restaurantes e namoros, e soa (quase) natural.

A partir dos anos 1960, os instrumentos elétricos conquistaram um espaço definitivo na música popular de todo o planeta. Não só guitarra e baixo, que são apenas violões amplificados e distorcidos, mas instrumentos – principalmente teclados – que criam sons antes não existentes. Depois dos sintetizadores, moogs e similares, surgiram os samplers, que copiam e transformam e multiplicam sons.

A técnica gera uma nova estética? Claro, está mais que comprovado. Isso não significa o abandono das formas musicais anteriores, mas um acréscimo. A levada de violão acústico de Benjor é copiada e enriquecida (ou não, aí entra a questão do talento) de outros timbres, assim como o trompete de Miles Davis. E a tudo isso veio se somar o rap, o discurso poético sobre base rítmica que desbancou o rock em escala planetária como música mais amada pelos jovens.

A grande – enorme! – Elza Soares é uma das poucas estrelas de meados do século XX que mantém uma fina sintonia com essas mudanças. Gal, em seu disco mais experimental, Recanto, produzido por Caetano Veloso, demonstrou estar atenta e forte. O próprio Caetano em seu último álbum autoral, Meu Coco, incorpora vários elementos contemporâneos, provocando certo incômodo em seus antigos fãs.

No entanto, uma ou duas gerações de cantoras, cantores, compositores e compositoras floresceram neste século. E aqui temos de relembrar o filósofo alemão Theodor W. Adorno, que em 1938 publicou seu polêmico ensaio O fetichismo na música e a regressão da audição. O fetichismo a que se refere é uma releitura de Marx, que pontificou sobre o fetichismo da mercadoria. Adorno redefine a música como produto (mercadoria) cultural, e desfia uma série de considerações sobre música séria e música de consumo, concluindo que os valores estéticos se relativizam na Modernidade, mas continuam subordinadas a uma moral vigente.

Não cabe aqui se aprofundar nas considerações de Adorno, mas apenas pontuar que estas inquietações estavam presentes no início do século XX. Para muitos, o ensaio de Adorno era uma resposta a Walter Benjamin. O célebre A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1936) colocou em xeque questões importantes como a aura da obra única, a cópia, a reprodução gráfica, fonográfica, cinematográfica, etc. Ou seja, não existe um filme, gravura ou disco “original”, só cópias.

O disco morreu. O CD, seu sucessor, dá seus últimos suspiros. Música de consumo hoje é um produto virtual, embora nenhum youtube da vida tenha conseguido desbancar os shows ao vivo, presenciais, mesmo com pandemias de ignorância. Uma coisa é festa, dança, outra coisa é fruição estética, apreciação de uma obra, como queria o velho Adorno.

Mas o que tem a ver Juçara Marçal com isso? Tudo. A inquieta artista é bem mais que uma cantora. Toca, canta, compõe, e está presente nas principais formações musicais da cena paulistana do século XXI. Desde seu trabalho de pesquisa e recriação das canções ancestrais com o grupo A Barca, seja em trabalhos solo ou em rascantes interações com músicos de vanguarda como no grupo Metá Metá.

Juçara carrega em si a ancestralidade negra. Suas composições, próprias ou em parceria, remetem a entidades, sonoridades e poéticas africanas. Ao mesmo tempo, ela atravessa a corrente dominante da MPB como um corpo estranho, sem se curvar às bossas dominantes. Retempera e acrescenta à tradição pré-samba as experimentações sonoras contemporâneas, com direito a todas as distorções, ruídos, samplers e barulhismos que os tradicionalistas odeiam. Como intérprete, iluminou canções de Mauricio Pereira (Trovoa) ou Siba (Vale do Jucá) de forma definitiva, mas sempre negu a música-mercadoria, pra tocar no rádio.

Juçara recusa as formas dominantes da música popular e trabalha numa hipotética intersecção entre passado e futuro, numa geografia muito pessoal. Não é apenas uma intuitiva, mas uma acadêmica, formada em jornalismo e letras pela USP.  Não há dúvida de que ama e respeita os mestres consagrados, mas não vai sair por aí cantando samba-canção. Coloca-se de corpo e alma a serviço da invenção de um novo mundo sonoro. Um pé na África, outro em Marte.

Quer conhecer mais? Recomendo a audição atenta de seu trabalho-solo Oritá Metá (https://www.youtube.com/watch?v=91yEqOwNwiY). Tá tudo ali, de forma genial. E estranhamente bela.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES