Lenora de Barros

Imagem: Lenora de Barros
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Por PEDRO PENNYCOOK*

Considerações sobre a exposição em cartaz na Pinacoteca, em São Paulo

Quem visitar a exposição Minha Língua será imediatamente capturado pelo esforço de Lenora de Barros em articular diferentes dispositivos de expressão da singularidade. Logo na primeira sala da Pinacoteca encontramos Linguagem, peça que sintetiza temas fundamentais para seu exercício criativo: há nessa sequência fotográfica a vontade de expressar a materialidade da linguagem, despi-la de suas pretensões representativas e tomá-la como expressão corporificada. Ao contrário do que milênios de metafísica nos ensinam, o corpo aqui passa a ser locus de produção de verdade. É através dele que a linguagem encontra forças para se confrontar à submissão ascética da razão.

Linguagem, 1990-2022. Foto: Diogo Barros[i]

A artista expõe aqui a intimidade de sua própria língua, capturada em diferentes décadas, para expressar sempre uma singularidade fissurada pela enunciação: Lenora de Barros nos lembra como todo sujeito habita nas ranhuras que a linguagem produz no corpo. Por ser um músculo exposto, exteriorizado, a língua é um caso particularmente interessante de contato entre socius e soma; a linguagem fissura a carne e, em certa medida, a fabrica. Fabrica-a como se nos lembrasse não haver corpo a priori — só há corpo como resultado de sua fabricação pela sociabilidade.

O que há de interessante nessa sequência são as modificações nos traços esculpidos pelo tempo. Eles gravam na carne a sucessão de encontros com a fala, com o sexo, com a alimentação que nos torna quem somos. Os traços da língua estão ali, perpetuamente modificados, como um fragmento exposto de verdade: lembram-nos como o corpo se inscreve no social ao multidiversificar sua presença em nossos tecidos, assim como a história de um corpo singular é sempre a história dos encontros que o produziram.

Como órgão, a língua organiza certa socialização da singularidade ao tracejar enunciações possíveis. Seus “desenhos” não são ornamentos, como diria Eduardo Viveiros de Castro. Eles funcionam como cartografias de nossas experiências concretas com a realidade: são os estriados que resultam do contato com o outro, dos atritos com o mundo. Vemos o interesse constante de Lenora de Barros nesses contatos, em experimentá-los em seus perigos inerentes, ao longo de toda a exposição.

Em Poema, a língua da artista percorre uma máquina de escrever. Esse encontro poderia ser interpretado como uma metáfora da representação, tal qual somente ao traduzir-se pela máquina fosse possível comunicar o que na língua vibra. Mas acredito ser mais interessante pensá-lo a partir de seu caráter de choque. Se pensamos que o poema é justamente a capacidade da língua produzir o novo ao se subverter desde dentro, desde uma suspensão de suas próprias regras, a obra ganha outro sentido, não exatamente análogo à representação. Poderíamos, ao invés, acentuar o atrito produzido por duas tecnologias de linguagem que colidem sensualmente, que se deixam confrontar em seus diferentes regimes de expressão.

Poema, 1979-2014. Foto: Diogo Barros.

Há algo da insistência no irreconciliável entre fala e escrita, aqui. Ela não deixa de aludir às nossas tão viciosas dualidades: razão e afeto, corpo e mente, órgão e máquina, técnica e teoria, metal e carne. Confrontadas nas fotografias, nossas dicotomias aparentes se embaraçam. Fazem-no não como maneira de dignificar um polo em detrimento de outro, mas de permanecer na produtividade de um encontro que colide máquinas de diferentes configurações.

O acontecimento estético resguarda algo do poder em suspender nossas formas atuais de vida, libertando os objetos para significações novas. Boa parte do esforço artístico contemporâneo está em balançar dualidades, como as entre objetos técnicos e objetos artísticos. Poema problematiza tais barreiras ao estetizar a realidade concreta e dignificar a arte com certa capacidade tecnológica, a saber, a força para intervir e transformar o real.

A língua de Lenora percorre a máquina de escrever como quem a lubrifica; ela dança com suas teclas, penetra suas engrenagens; desestabiliza sua sistematização em vistas de se encontrar com o radicalmente diferente, criar um meio de expressão que também a produz-outro. Finalmente reencontrados, desejo e tecnologia propiciam uma nova forma de relação ao corpo.

Um corpo insubmisso, radicalmente singular e inevitavelmente erótico. O erotismo ocorre onde nossas pretensões reflexivas de desvendamento do outro são suspensas. Nesse respiro de tempo, abrimo-nos à experimentação somática com o desejo. Poema nos mostra como, ao desejar, somos agenciados por um impulso ao inusitado.

As ranhuras de Linguagem emergem desde encontros como esse. Encontros com singularidades cujas velocidades divergem das nossas e que escrevem suas marcas para nos expulsar da insipidez da mesmidade ou da privatização do corpo. Eles nos lembram como há pouco ou quase nada de natural na corporeidade; ou mais precisamente, as naturezas, sempre múltiplas, de nossos corpos são fabricadas por encontros entre si, suas naturezas resultam da interação com as demais.

Michel Foucault falava de um contato sináptico entre corpo e poder. Essa é uma metáfora por demais cerebral, acredito. Melhor seria falarmos nas fissuras em tecidos, nos percursos que se estriam carne adentro. A língua resguarda corporalmente algo da exposição ontológica que nos constitui no campo social: em certa medida, ela presentifica seu tecido (simbólico) ao rasgá-lo em nossos tecidos (musculares). Sempre rasgues minúsculos, pequenos cortes, caminhos erráticos. As peças nos convidam ao confronto com esse rasgo não como violência – eles são por onde a vida se torna possível. São formas de experimentação, laboratório de bactérias infinitas, microrganismos significantes.

Coisa em si, 1990. Foto: Diogo Barros

Essa cultura de bactérias da língua se intensifica em Coisa em si. Como bom pesquisador em filosofia, a referência a Kant me salta aos olhos. Ela deve ser entendida como o chamamento final a dissolver a tirania da representação sobre nossos corpos. Trata-se ali de lembrar como o mais decisivo precipita-se da carne, como uma superfície lisa, à plena vista, e que desliza sobre a pele. Esse é o golpe final de Lenora de Barros para depor o juízo, se me permitem brincar com Artaud e Deleuze.

Vemos essa singularização da corporeidade em peças como em Homenagem a George Segal e Eu não disse nada. As impurezas que fermentam na língua se espalham pelo corpo, explodem em configurações ainda por encontrar forma. Elas nos despossuem de nossos anticorpos, nosso esquecimento da carne, ao produzirem anti-corpos em nós: corpos que não se submetem à judicação racional, corpos que não se adequam ao comunicável porque férteis de negatividade.

Lenora de Barros brinca com diversas modalizações da percepção. Através de ambientações sonoras e visuais, como em A cara. A língua. O ventre e Tato do olho, desestabiliza nossos viciados circuitos de sensibilidade. A arte passa a funcionar como uma reavaliação de nossas formas de relação singular à norma. Toda singularização ocorre por experimentações inusitadas. Ela permite o surgimento de novas corporeidades ao intervir diretamente no sensível, algo que a filosofia sempre se escusou. Enquanto a filosofia reter seu medo de misturar-se à experiência estética, ela permanecerá platônica, no sentido de fechar seus olhos para a materialidade do real.

O filosofismo ensina a morrer porque rechaça a vida, demite-se de sua infinitude. Permaneceremos aprendizes da morte, aprendendo indefinidamente a negar a força produtiva da negação, sonhando com a verdade estática e pálida das nossas pálpebras. A artista nos ensina, de encontro com esse modelo, que o mais decisivo pulsa na carne, em sua busca por fabricar novas formas de socialização do singular.

*Pedro Pennycook é mestrando em filosofia na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

A Pinacoteca de São Paulo abriga a exposição Lenora de Barros: Minha Língua, com curadoria de Pollyana Quintella, até o dia 9 de abril deste ano.

Nota


[i] As fotos das obras foram retiradas do artigo “Corpo e linguagem na obra de Lenora de Barros”, publicado no blog Artsoul, e seus créditos são de inteira autoria do crítico Diogo Barros. O artigo que acompanham também se trata de um interessante comentário à exposição. Ele encontra-se disponível em https://blog.artsoul.com.br/corpo-e-linguagem-na-obra-de-lenora-de-barros/

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