Lula não é infalível

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Por VALERIO ARCARY*

Quando e em quais circunstâncias o papel do indivíduo poderia ser insubstituível?

“Dispensa argúcias a defesa da boa causa” (Sabedoria popular portuguesa).

A polêmica sobre a possibilidade de Geraldo Alckmin vir a ser o vice em uma chapa com Lula precipitou outra discussão, igualmente, importante, porém, talvez mais complexa. Foi argumentado que todos na esquerda, mesmo os que não pertencemos ao PT, devemos confiar que “Lula sabe o que faz”. Na verdade, a rigor e até agora não se sabe, publicamente, se essa hipótese é séria e, tampouco, se Lula estaria ou não inclinado a defendê-la. Mas, mesmo admitindo que o faça, a sua opinião não deveria diminuir ou, muito menos, interditar o debate. A eventual decisão de aceitar Alckmin estabelece um perfil à candidatura de Lula que condiciona, de muitas e variadas maneiras, o destino da luta contra Jair Bolsonaro, e a perspectiva do que seria, em caso de vitória, o governo em 2023, e não afeta somente o PT.

Devemos conversar, portanto, sobre o lugar das lideranças. Lula, por ter uma influência excepcional, não deve ser criticado? Em especial, quando estamos diante do embrião do que pode ser considerado um certo “culto à personalidade”. Não é um fenômeno novo, e não deveria nos surpreender. Evidentemente, a popularidade de Lula é imensa, e seu papel tem importância estratégica para derrotar Bolsonaro, mas isso não o faz infalível. Ninguém tem clarividência.

Mas, a terrível ansiedade diante do perigo de um segundo mandato tem alimentado uma paixão de que “vale tudo”. Afinal, indo ao âmago da questão, quando e em quais circunstâncias o papel dos indivíduos poderia ser insubstituível, se é que esses momentos merecem ser considerados?

As experiências bárbaras de culto à personalidade que se disseminaram a partir do processo pioneiro na ex-URSS, onde Stalin, ainda vivo, se fez glorificar por uma indústria de propaganda tão poderosa, quanto a força do aparelho policial-militar que instituiu o terror como política de Estado, devem alimentar grande prudência, senão pudor, em relação ao tema do lugar do indivíduo na  história. O ainda hoje presente regime ditatorial na Coréia do Norte que ao legitimar a transição do poder de pai para filho ao longo de três gerações, instituiu a primeira “monarquia” que se reivindica “socialista”, convida tanto ao desprezo, quanto inspira o sarcasmo. Mas não diminui a importância do problema teórico-histórico.

O papel do indivíduo na  história é um tema, especialmente, espinhoso para os marxistas. E isso, por duas razões. Em primeiro lugar, porque a historiografia tradicional, das cronologias e dos grandes acontecimentos sublinhava de tal maneira o lugar das personalidades, que a  história tinha se transformado em um ramo colateral da narrativa biográfica. O marxismo se afirmou, como já vimos, em uma luta irreconciliável contra essas concepções, colocando a ênfase da explicação nas articulações “subterrâneas” das contradições econômico-sociais.

A  história tradicional das “grandes narrativas” políticas tinha exacerbado até o limite a importância dos partidos, e de forma ainda mais superlativa das grandes personalidades. O lugar do acaso e fortuito era tal, que a ausência de qualquer personagem histórico teria, supostamente, gerado terríveis paradoxos: o exemplo “clássico”, ad absurdum, sendo, “e se o nariz de Cleópatra fosse um pouco menor?”. Mas, nem sempre se conseguiu escapar do erro simétrico, que seria pensar a  história, somente, como um processo evolutivo/convulsivo anônimo de mudança de “estruturas sociais”.

A reação a esses excessos, e à influência “objetivista” do estruturalismo não se fez esperar, quando vários ex-marxistas se fizeram arautos das novas teses desvalorizadoras das “grandes sínteses”, e insistiram na importância da incerteza e do aleatório. O pós-modernismo radicalizou, em um outro extremo, a reivenção do subjetivismo e da  história como mais um forma de narrativa.

Uma das objeções mais perturbadoras ao marxismo como teoria da  história é a acusação feita a Karl Marx ora de determinismo fatalista ou economicismo simplista. A demolidora “acusação final” seria a sua “arrogante” pretensão de descoberta de uma direcionalidade perceptível que, sendo conhecida, poderia ser alterada e reorientada. A fúria pós-modernista denuncia há décadas: não é possível um conhecimento sobre um sentido histórico imanente.

E desdenham: o “controle de uma obra de engenharia” econômico-social? O socialismo seria o reconhecimento de um sujeito social que “não existe”. Mais um fatalismo milenarista e apocalíptico precedido por uma revolução escatológica. O marxismo seria uma teleologia igualitarista da  história entendida como um vir a ser… que já é, porque o destino do futuro, já teria sido revelado pelo determinismo histórico.

Mas o marxismo não afirma que a história esteja prenhe de sentido. Ao contrário, o marxismo defende que a humanidade poderá vir a oferecer uma direção ao seu futuro, se conseguir superar os desenlaces cegos das lutas de classes que dilaceram a vida social. Reconhece a incerteza, identifica a possibilidade, mas não anuncia o imponderável. A ausência de finalismo não se deve confundir com a ausência de protagonismo.

O marxismo ajudou a procurar uma explicação mais razoável, não porque diminuísse à condição de causalidades de “décimo quinto grau” a importância das personalidades, mas porque tentava demonstrar que as escolhas, em cada encruzilhada histórica se colocavam entre poucas hipóteses, previamente condicionadas, por inúmeros fatores, muito além das vontades dos homens e mulheres que comandavam.

Será uma “ilusão de óptica” política a conclusão de que Lula seria insubstituível para derrotar Bolsonaro nas eleições de 2022? Ainda que com menor talento, e imprimindo o “seu estilo” à luta contra o neofascismo, é plausível pensar que, das fileiras do petismo ou da esquerda, pudesse emergir uma outra liderança capaz de vencer? A verdade é que a presença da grande personalidade é, ela mesma, um fator de bloqueio para a irrupção de outros que poderiam ocupar o seu lugar. Não surgiu. A dialética da autoridade política remete ao tempo necessário de uma experiência política.

Ainda assim, é “irresistível” nos perguntarmos se haveria tempo para alguém conquistar a autoridade necessária para derrotar Bolsonaro. Há quatro anos não foi possível, apesar do desempenho de Fernando Haddad. A conjuntura de 2022 se desenha, felizmente, menos desfavorável do que a de 2018. Três anos de governo de extrema-direita foram devastadores e o desgaste de Bolsonaro, embora lento, se mantém contínuo, não foi interrompido. De qualquer maneira, as lições da  história recomendam máxima prudência.

Ninguém se faz a si mesmo sozinho. O “eclipse” de outros, nos últimos quarenta anos, não ocorreu, também, em função do excesso de luminosidade que cercou Lula? Outros teriam estado à altura das necessidades colocadas pela liderança de greves de massas entre 1978 e 1981? Teriam sido capazes de unir correntes tão distintas na esquerda para construir, pela primeira vez, um partido de trabalhadores com influência de massas?

Mesmo admitindo a força do argumento da “ilusão de ótica”, uma questão permanece insatisfatória. De novo, voltamos ao mesmo problema metodológico: quais foram as relações entre o sujeito político coletivo e as lideranças individuais no processo? Sem a força social liberada pelo ascenso de massas nos anos oitenta, e sem a radicalização política impulsionada pelo PT na luta contra a ditadura e na oposição ao Colégio Eleitoral que levou Sarney ao poder, teria se constituído um partido que permitiu a um operário de origem nordestina chegar à presidência por eleições?

Ou, em outras palavras, o PT e a CUT, o MST e a UNE, as organizações sindicais, populares, camponesas e estudantis que ocuparam o lugar de sujeitos políticos e sociais que deslocaram o lugar que foi do MDB e de Brizola, na etapa da luta final contra a ditadura, não foram chaves para poder compreender o papel de Lula? A grandeza da relação de confiança que Lula preserva nas amplas massas trabalhadoras, nos setores organizados e nas camadas populares, se explica pela sua capacidade, mas, também, por uma experiência de luta e organização coletivas.

Interpretações unilaterais sobre a “genialidade” favorecem visões “messiânicas”. Não ajudam.

*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).

 

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