Lula voltou – interregno do fascismo

Kartick Chandra Pyne, Trabalhadores, 1965.
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Por LEO VINICIUS LIBERATO*

Não foi uma ascensão das lutas que fez Lula voltar, mas o medo do fascismo por uma parte da elite

Em 2015 escrevi que quando Lula voltasse, ele teria que lidar com uma classe trabalhadora (a então chamada classe média) em processo de proletarização. As tecnologias de apassivamento do lulismo serviam apenas para a classe trabalhadora industrial, empregada, formal.[1]

Henri de Man, dirigente do Partido Operário Belga e que acabou se tornando colaborador dos nazistas, foi muito arguto ao descrever um fato social que estava na base da emergência do fascismo. A classe média em processo de proletarização e aqueles que ressentem a perda de um status social constroem uma espécie de defesa psíquica, uma “falsa consciência”, perante essa situação. Para iludir a percepção desse declínio e o sofrimento resultante, que tem essencialmente origem econômica, esses grupos sociais transfeririam seu ressentimento econômico para objetos não econômicos. Esses objetos foram, por exemplo, o nacionalismo e o racismo no nazismo. Por sua vez, a hostilidade desses grupos sociais ao marxismo e a expressões políticas e ideológicas dos proletários, seria uma forma de negar e se afastar imaginariamente da sua condição de proletarização.[2]

O antipetismo tem sido uma significação central ao desenvolvimento do neofascismo brasileiro. Ao mesmo tempo que ele direciona o ressentimento a um objeto não econômico, ele ajuda a negar imaginariamente a proletarização e o medo de decadência social ao representar hostilidade a uma expressão política e simbólica dos proletários. Naquele ano de 2015 essa base do fascismo já era bastante visível. Vide as manifestações antipetistas pelo impeachment de Dilma Rousseff. Mas sua primeira aparição se deu durante as manifestações de junho de 2013, após a burguesia passar da criminalização à ressignificação das manifestações pela redução da tarifa de transporte. Fenômeno que na época foi denominado de “revolta dos coxinhas” por militantes de esquerda que estavam nas ruas.[3]

O fascista francês Maurice Bardèche sintetizou muito bem em 1961 que o fascismo era o partido da nação em cólera: o partido principalmente “dessa camada da nação que usualmente se satisfaz com a vida burguesa, mas que as crises perturbam, que as atribulações irritam e indignam, e que intervém então brutalmente na vida política com reflexos puramente passionais, quer dizer, a classe média”.[4] A dialética entre direita e esquerda em junho de 2013, e que em geral está na gênese dos fascismos, detalhei já em outro lugar.[5]

No entanto, o fascismo atravessa as classes sociais. Sem isso ele não ganha a dimensão social para se impor. O neofascismo brasileiro (e não apenas o brasileiro evidentemente), se difunde a grupos e indivíduos de diferentes origens sociais, explorando ressentimentos, medos, inseguranças e frustrações de diferentes ordens, através de processos estudados e descritos pela psicologia social e de massas. De 2018 para cá esse neofascismo alcançou uma massa crítica e chegou a um ponto de não retorno… Mas não nos adiantemos.

Em 2018 escrevi após a prisão de Lula que ele só retornaria após uma ascensão, que estava e está fora do nosso horizonte, de lutas sociais intensas e significativas. Só desse modo seria reaberto o canal de integração das lutas e conflitos sociais cuja ascensão dos quadros sindicais e do PT no Estado foram a consequência. O golpe de 2016 e a prisão de Lula impunha uma agenda coerente que adequava a ampliação da taxa de lucro a uma baixa organização e uma baixa pressão dos trabalhadores.[6] Não é necessário canal de integração de conflitos se eles são pouco significativos.

Em 2021, diante da libertação de Lula pelo STF, que foi um dos atores de sua prisão e impedimento, e da mudança da mídia burguesa em relação ao petista, discuti se Lula estaria voltando.[7] E em 2023 podemos então dizer que Lula de fato voltou, e não foi por um ascenso das lutas da classe trabalhadora, mas porque uma fração da burguesia e de estamentos do Estado se sentiram ameaçados pela extrema direita. Lula era o único capaz de vencer Jair Bolsonaro, por isso ele foi solto e reabilitado por atores que alguns anos antes se empenharam em prendê-lo por preferirem, acima de tudo, um governo que não oferecesse nenhuma concessão aos proletários, através do ultraliberalismo de um Paulo Guedes. Não foi uma ascensão das lutas que fez Lula voltar, mas o medo do fascismo por uma parte da elite. E, aliás, o fascismo só ascende em momentos de degeneração da organização e das lutas da classe trabalhadora.

STF e Rede Globo, dois atores de primeira ordem na prisão de Lula e impedimento do PT, tiveram que reabilitá-lo para se esconderem atrás da sua candidatura, de modo a se defenderem do fascismo que ajudaram a alimentar. Personagem esse sim de contornos míticos pela sua história de vida, Lula volta em idade avançada como o único que poderia “salvar” a todos nós da besta fascista. Acrescentou esse prólogo a sua impressionante biografia. E a perspectiva com uma reeleição de Jair Bolsonaro seria o aparelhamento mais profundo do Estado, incluindo o sistema eleitoral. Um fechamento do regime aos moldes da Turquia de Erdogan, da Rússia de Putin, da Hungria de Orbán ou da Venezuela de Maduro.

A aposta dos setores da direita que tiveram que usar Lula como instrumento na batalha contra o fascismo que os ameaçava, provavelmente está na inelegibilidade de Jair Bolsonaro e na repressão jurídica a parte de seus apoiadores. A intenção nesse sentido seria, dando o exemplo, levar as lideranças da extrema direita a se comportarem como tucanos para terem sobrevida política. Dando certo, ficariam assim livres para se livrarem de Lula e do PT se novamente puderem. Mas essa intenção esbarra na realidade social. Existe uma massa de cerca de metade da população disposta a votar em extremistas de direita. Políticos de extrema direita são uma demanda efetiva hoje, e seu mercado eleitoral mostra-se bem maior que o da direita.

Os fascismos na Itália e Alemanha caíram por derrota militar. Uma Alemanha arrasada, com lideranças nazistas presas ou mortas e com o nazismo proibido. Foi assim que o nazismo foi derrotado. Os países europeus com regimes fascistas que se mantiveram neutros na Segunda Guerra tiveram longevas décadas de regime, até que o fascismo caísse por desgaste e pela ascensão das lutas dos trabalhadores nos anos 1970. Casos de Espanha e Portugal.

O fascismo não é fenômeno eleitoral, mas social. Se existe um dinamismo e ousadia nas lutas sociais, que historicamente costumam aparecer em movimentos de esquerda, hoje eles são características dos movimentos de extrema direita. Por sua vez os índices eleitorais apontam que no mínimo um terço da população brasileira vota por identificação, não importando o que o governo do seu objeto de identificação faça. Nem uma política deliberada de morte em massa da população durante uma pandemia é capaz de alterar isso.

O investimento libidinal, a identidade comum criada nos processos eleitorais, de mobilização e de compartilhamento de narrativas, toda a experiência de gozo e de libertação do superego (ou melhor, a substituição da sua referência social pela do líder libertador), tudo isso já estabeleceu em nível de massa uma nova relação com a realidade e a sociedade que não se apaga ou se substitui de um dia para o outro. O nível de massa crítica, de ponto de não retorno do fascismo, se dá não apenas pelo resultado de mecanismos de psicologia social e de massas na última década, mas também pelo fascismo ter se difundido a todos os estratos sociais. Da professora de yoga, passando pelo seu vizinho, seu colega de trabalho… Enfim, está em todos os segmentos e principalmente naqueles que historicamente foram os eixos exógenos do fascismo: as Igrejas e as Forças Armadas.

É preciso frisar que a base para ascensão do fascismo no Brasil e no mundo é material, como foi na ascensão do fascismo histórico. É preciso olhar para o trabalho e para a economia e buscar seus elementos: (i) um horizonte de expectativas decrescente e que só se aprofunda;[8] (ii) ampliação da desigualdade econômica, com açambarcamento e concentração de riqueza e poder nos bilionários;[9] (iii) uma realidade vivida no trabalho no contexto neoliberal que é a base da insensibilidade social e da emergência da virilidade como defesa psíquica.[10]. Aliás, é preciso ressaltar que Christophe Dejours já mostrava como o trabalho sob o neoliberalismo podia ser analisado pela ótica do trabalho de eliminação nazista.

(iv) Uma economia capitalista global com pelo menos quatro décadas de estagnação relativa, comparada às décadas do pós-guerra;[11] historicamente o fascismo só se estabelece como regime em economias estagnadas, que se tornam incapazes de avançar pelo caminho do aumento da produtividade e da mais-valia relativa.[12]

A esses aspectos materiais, econômicos, junte-se o que Guy Standing e Paolo Virno já apontaram sobre as características da composição da classe trabalhadora no pós-fordismo. Há mais de dez anos Guy Standing já alertava que a tendência do precariado, da insegurança econômica crônica, era alimentar movimentos e lideranças fascistas. Com base em estudos de psicologia ele apontava que: “Pessoas inseguras produzem pessoas com raiva, e pessoas com raiva são voláteis, propensas a apoiar uma política de ódio e amargura”.[13] E se somarmos a isso o que Paolo Virno procurava mostrar há mais de vinte anos, teremos uma dimensão mais acurada do problema.

Paolo Virno apontava que no pós-fordismo toda a força de trabalho, incluindo as mais “garantidas” em termos de estabilidade e direitos, viveriam permanentemente a condição de exército industrial de reserva. Todos se enquadrariam nos conceitos marxianos de superpopulação flutuante, latente ou estagnada.[14] Em suma, toda a força de trabalho hoje em dia se aproximaria das condições objetivas do precariado, como descrito por Guy Standing.

O ponto de não retorno está dado pela dimensão, difusão e coesão sociais do movimento neofascista e por essa base material, relativa às tendências nas relações de trabalho e econômicas do capitalismo desde as últimas décadas. Mas a ideologia eleitoral da democracia burguesa penetra até mesmo na esquerda, para ocultar a realidade. Através das lentes dessa ideologia, eleições são capazes de fazer mágica, assim como governos. O olhar é desviado para as eleições e não para as mudanças na estrutura das relações sociais.

A volta de Lula será lembrada na história como o último suspiro de uma esquerda cuja base social já não existe. Uma esquerda que nasceu num país industrializado, baseada na força das lutas operárias e de uma classe trabalhadora assalariada. Lula foi simplesmente uma ferramenta do passado, de outra época, mas que ainda estava disponível, pelo capital eleitoral que mantém, para tentar frear o fascismo. Se o interregno que a eleição de Lula pode proporcionar será de quatro anos ou, com menor probabilidade, menos de quatro anos, ainda está evidentemente em aberto.

A democracia burguesa não possui meios adequados para lidar com o fascismo, mesmo se o quiser, na medida que o fascismo ganha tal dimensão como assistimos hoje em dia no Brasil. Em 2026 o assédio eleitoral, que já ganhou dimensão inédita em 2022, será certamente bem maior. Trata-se de aprendizado das lutas. E no caso a extrema direita aprende e difunde novos instrumentos de luta também. Contra uma indisciplina de massa como o assédio eleitoral de milhares de empresários e comerciantes de bairro por todos os cantos do país, o aparato repressivo colapsa, se mostra incapaz de contenção. E o assédio eleitoral é apenas um exemplo dos instrumentos que o neofascismo começou a aprender a usar em escala.

A questão é: qual a política adequada num interregno? Qual a ação adequada quando cessam as bombas sobre uma cidade devido a um cessar fogo circunstancial, ou quando forças conseguem fazer o inimigo recuar momentaneamente? Essa é a questão política realista, que a ideologia eleitoral da democracia burguesa joga para baixo do tapete. Devemos evacuar alguns postos e reagrupar onde achamos que é mais vital resistir e defender?

O fato é que uma esquerda que demonstrou ter pouca capacidade de ação coordenada para lidar com um golpe e perdas de direitos na última década, dificilmente terá capacidade de saber usar o interregno para se preparar para o longo inverno que virá. Ainda mais quando está afundada na ideologia eleitoral que nubla uma visão das tendências históricas em andamento. Até que a toupeira, quem sabe, emerja um dia novamente, deveríamos estar preparando os casacos e luvas de inverno para pelo menos uma geração.

*Leo Vinicius Liberato é doutor em sociologia política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Notas


[1] Que horas Lula volta? https://passapalavra.info/2015/09/106231/

[2] BERNARDO, João. Labirintos do Fascismo. Vol 1. São Paulo: Hedra, 2022.

[3] 20 de Junho: a Revolta dos Coxinhas https://passapalavra.info/2013/06/79726/

[4] Essa citação pode ser encontrada no texto do coletivo Passa Palavra, Os Perigos da “Nação em Cólera” https://passapalavra.info/2012/10/65171/

[5] Bem além do mito “junho de 2013” https://passapalavra.info/2018/07/121756/.

[6] Que horas Lula e Marielle voltam? https://passapalavra.info/2018/04/119630/. Republicado no livro A Ideia: Lula e o sentido do Brasil contemporâneo, organizado por Lincoln Secco e publicado em 2018 pelo Núcleo de Estudos de O Capital.

[7] Lula está voltando? https://passapalavra.info/2021/04/137400/

[8] ARANTES, Paulo. O Novo Tempo do Mundo. São Paulo: Boitempo, 2014.

[9] PIKETTY, Thomas. Uma Breve História da Igualdade. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2022.

[10] DEJOURS, Christophe. A Banalização da Injustiça Social. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1999.

[11] BENANAV, Aaron. Automation and the Future of Work. Londres: Verso, 2020.

[12] BERNARDO, João. op. cit.

[13] STANDING, Guy. O Precariado: a nova classe perigosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 224.

[14] VIRNO, Paolo. Virtuosismo y revolución: la acción política en la era del desencanto. Madri: Traficante de Sueños, 2003.

 

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