O eixo da negação

Imagem: Ales Uscinau
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Por SLAVOJ ŽIŽEK*

A tarefa imediata sobre a Ucrânia é a de se opor aos novos populistas de esquerda-direita, e isto pode exigir o alinhamento com expoentes da democracia liberal capitalista

A esposa de um bêbado está na cama com seu amante quando seu marido chega aos tropeços e se enfia embaixo das cobertas. “Amor, eu estou tão bêbado que eu estou vendo seis pernas no pé da cama” diz ele. “Não se preocupe”, responde ela, “Vá ali até a porta e olhe de novo de lá.”. E quando ele o faz, fica aliviado “Você está certa, só tem quatro pernas!”.

Essa piada pode parecer vulgar, mas ela toca num fenômeno importante. Geralmente, esperamos enxergar uma situação de maneira mais clara olhando-a de um ponto externo do que se estivéssemos imersos nela. Entretanto, por vezes é precisamente essa posição externa que nos cega para a verdade. Na piada, a exclusão do marido (olhando da porta) cria uma falsa sensação de inclusão, na qual ele confunde as pernas do amante com as suas próprias.

Encontramos uma dinâmica similar no apoio do ocidente à Ucrânia. Nós dirigimos um olho cego para o fato de que, provavelmente, um grupo doméstico de oligarcas vai emergir como o maior vencedor do conflito ucraniano. Ainda assim, não deveríamos nos surpreender se a Ucrânia pós-guerra se revelar similar à Ucrânia pré-guerra: um lugar corrompido pela oligarquia e colonizado por grandes corporações ocidentais que controlam as melhores terras e os recursos naturais. Enquanto fazemos nossos próprios sacrifícios para o esforço de guerra, nós falhamos em enxergar que os ganhos serão apropriados por outros, exatamente como o bêbado que confunde os pés de outro homem com os seus próprios – talvez porque, no fundo, ele não queira reconhecer a verdade.

Podemos evitar esta armadilha? De 20 a 22 de junho deste ano, a organização pan-europeia Europe, a patient (Europa, um paciente) sediou discussões em Londres sobre a necessidade de proteger comunidades ucranianas da exploração econômica após a guerra. Iniciativas como essa são mais do que nunca necessárias, pois o apoio à defesa ucraniana deve estar de mãos dadas com preocupações ecológicas e de justiça social. Todas são igualmente importantes para o futuro do país. Nós, por exemplo, só podemos apoiar a Ucrânia inteiramente se também a liberarmos do jugo da indústria fóssil-combustível, que depende do petróleo russo.

A combinação de conflitos militares, ambientais e socioeconômicos está se tornando cada vez mais difícil de ser ignorada. Questões militares e ecológicas colidiram de forma dramática com a destruição da represa Kakhova, próxima de Kherson, no início de junho.

Mas a Ucrânia não está de modo algum sozinha. Quase no mesmo período, incêndios florestais no Canadá acabaram por sufocar Nova Iorque com uma névoa de fumaça marrom, dando aos habitantes da cidade uma amostra de algo que as pessoas do Sul Global já conhecem muito bem. Enquanto palavreiam sobre a crise climática e o colapso ecológico, países ocidentais ricos continuam a fazer pouco a respeito.

Esta perspectiva reduzida não está restrita à direita e ao setor corporativista. Muitos na esquerda hoje dizem apoiar a paz, enquanto ao mesmo tempo se acordam com regimes brutais, revisionistas e autoritários.

Para entender essa oposição “pacífica”, temos de retornar para a situação do início da Segunda Guerra Mundial, quando também havia uma coalizão direita-esquerda que se opunha ao envolvimento americano em guerras estrangeiras. Tanto então quanto agora, os “pacifistas” argumentavam que a situação na Europa não dizia respeito aos Estados Unidos. Eles simpatizavam estranhamente com o agressor e sustentavam que ir à guerra iria apenas enriquecer o complexo industrial-militar. Quando a Alemanha nazista disse ao Reino Unido, no verão de 1940, que eles queriam a paz, eles pensaram que a Grã-Bretanha deveria ter aceito a oferta generosa de Hitler.

Como todas as boas mentiras, esta contém algum resquício de verdade. O comentarista político conservador americano Patrick J. Buchanan ofereceu uma versão deste argumento em 2008, defendendo que, se Winston Churchill tivesse aceito a proposta de Hitler de 1940, o Holocausto teria sido menos severo.

Além disso – prossegue o argumento – assim como Winston Churchill levou o Império Britânico à ruína ao provocar guerras desnecessárias, o presidente americano George W. Bush levou os Estados Unidos à ruína ao seguir o exemplo de Churchill. Como muitos na esquerda, Patrick J. Buchanan não acredita que os Estados Unidos deveriam oferecer garantias a países onde não tenham interesses vitais.

Ouvimos uma nova variação deste motivo no contexto da guerra da Ucrânia. Supostamente, a desintegração da União Soviética teve o mesmo efeito do tratado de Versalhes: ela criou um desejo previsível de vingança contra os vencedores da última guerra. Assim como no passado, essa nova aliança direita-esquerda é guiada por teorias da conspiração, como aquelas propagadas sobre as vacinas por Robert Kennedy Jr e pelos seguidores de Donald Trump. Ela denuncia as medidas contra o COVID como um instrumento de controle. Ela rejeita auxiliar a Ucrânia, já que isto serviria ao complexo militar-industrial da OTAN. E, num caso exemplar de negação, dispensa as maiores ameaças que enfrentamos como se fossem meras artimanhas das grandes corporações para explorar a classe trabalhadora.

A política da negação – de ver apenas quatro pernas – é, claro, abertamente otimista. Ela implica que nós não precisamos enfrentar nenhum novo perigo; nós podemos seguir como se eles não existissem.  Ela é um produto do populismo tanto na direita quanto na esquerda, e é uma das principais razões para estarmos agora numa “recessão democrática”. Como observa Grace Blakely, da Tribune: “O autoritarismo está crescendo apesar da previsão liberal de que a expansão dos livres-mercados iria resultar em mais democracia – isto acontece porque o capitalismo sempre irá defender hierarquias sociais frente à ameaça da igualdade econômica”.

Podemos levar essa afirmação mais adiante: a ameaça à democracia vem também da falsa resistência populista ao capitalismo corporativo, que é bem ilustrada na recusa “pacifista” da esquerda em apoiar a Ucrânia, na medida em que isto iria “apenas” beneficiar empresas de defesa. No final das contas, a Ucrânia já foi colonizada por corporações ocidentais há tempos, e só pode ser liberada através de uma reconstrução “verde” e equitativa.

Para escapar de nossa difícil situação, não podemos apenas nos agarrar à democracia liberal pluripartidária. Devemos, isso sim, buscar novos meios de construir um consenso social e estabelecer ligações ativas entre partidos políticos e sociedade civil. A tarefa imediata é a de se opor aos novos populistas de esquerda-direita, e isto pode exigir o alinhamento com expoentes da democracia liberal capitalista – assim como na Segunda Guerra Mundial os comunistas lutaram ao lado das democracias “imperialistas” ocidentais contra o fascismo, sabendo muito bem que o imperialismo era seu inimigo último. Eles foram companheiros curiosos, mas que ao menos podiam ver o que realmente estava acontecendo.

*Slavoj Žižek, professor de filosofia na European Graduate School, é diretor internacional do Birkbeck Institute for the Humanities da Universidade de Londres. Autor, entre outros livros, de Em defesa das causas perdidas (Boitempo).

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