Mas em que mundo tu vive?

Dorothea Tanning, Algumas rosas e seus fantasmas, 1952
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Por HOMERO VIZEU ARAÚJO*

Considerações sobre o livro de José Falero

O título, Mas em que mundo tu vive?, interpela o leitor desavisado, trazendo já alguma disposição para a polêmica, talvez exigindo que o público preste atenção ao mundo que o cerca. Sendo um livro brasileiro, mais do que isso, um livro que trata de Porto Alegre, mas de certa Porto Alegre em contraste com a Lomba do Pinheiro, a pergunta parece enunciar a necessidade de conhecer a cidade, mais, contemplar o bairro periférico e pobre da cidade.

E talvez aqui José Falero já demandasse que se acrescente um terceiro adjetivo ao bairro: preto. Sim, vida brasileira, preta, pobre em periférica em Porto Alegre. Em termos talvez abusivamente abstratos da minha parte (afinal temos aqui crônicas, não ensaios), é evidente no livro uma extraordinária dinâmica entre centro (branco e confortável) e periferia (preta ou parda e pobre). Dinâmica/ movimento cujo pivô é o cronista José Falero, a repassar sua experiência de humilhação, pobreza e resistência, equilibrando-se entre os diversos bicos e subempregos a que se submeteu em sua vida.

Ele, morador da Lomba do Pinheiro, mais especificamente da Vila Sapo, é o narrador personagem, o que rende mais um dos efeitos notáveis do livro, a desafiar o leitor que, um tanto desconfiado enquanto cidadão branco e confortável, pode se perguntar até que ponto as estórias que se contam aqui talvez sejam manipuladas, digamos, ficcionalmente pelo autor. No que me diz respeito, quanto mais as crônicas sejam invenção, melhor: a demonstrar a força e garra do cronista.

Mas esta voz que emerge da periferia fala de que mundo? Para a classe média, mesmo aquela de boa vontade e razoavelmente informada, aquela que não se deixou levar pelo consenso boçal recente, mesmo para ela, este mundo que Falero recria com sua prosa enxuta, argumentativa e irônica tem muito de irreal. Em que mundo essa gente preta, pobre e periférica vive? Isso quando não estão virando cimento e limpando nosso chão, como lá pelas tantas nota o cronista implacável. Ou quando estão nos servindo em supermercados, bares, lojas, etc. Ou nos assaltando? Pedindo algum no sinal fechado?

E já é difícil comentar o livro porque, indo rápido, o final do último parágrafo que acabou de ser lido incide no lugar comum de que da periferia emergem nossos serviçais mas também nossos algozes, sob a forma de assaltantes, ladrões improvisados, traficantes, etc. Mas não notar o quanto a humilhação e a pobreza da periferia porto-alegrense é também uma façanha gaúcha seria perder muito do impacto deste livro.

Ao sabiamente discernir, analisar, em meio ao âmbito narrativo, o autor denuncia o clichê (violência e degradação da favela) e expõe as opções de resistência, que podem ir do inconformismo informado (a posição do cronista José Falero) ao conformismo inconformado de quem aguenta e sobrevive, ou ainda à violência de quem não atura a humilhação e miséria e parte para o revide. São posições esquemáticas, admito, embora ajudem a entender as situações e conflitos que as crônicas enunciam e reelaboram. Por outro lado, levando em conta a consistência do conjunto, o livro pode ser lido como uma autobiografia espantosa.

Em que mundo tu vive? é resultado de uma disposição argumentativa, configura um esforço de exposição. As crônicas/contos estão divididas em quatro partes, o que já enuncia o quanto há de organização no conjunto: 1. Assalariados, 2. Em construção, 3. Branco é a vó e 4. Entre as tripas e a razão. A combinação entre a experiência de trabalho no centro urbano e opressão versus comunidade periférica e pobreza está saliente em 1. Assalariados e 2. Em construção, mas percorre todo o resto.

Contudo, para captar a autobiografia estruturada, e uso o termo de propósito, é necessário sofrer o impacto dos relatos da violência sob trabalho mal pago, que estão em 1. Assalariados, para depois extrair do resto do livro a infância já acossada pela abordagem violenta da polícia (Excesso de exceções), o pai zelador explorado em prédio de classe média (Perseguição), a experiência de aprendizado escolar entre inútil e humilhante (Campo minado), a fome que afasta da escola (Campo minado), a contestação à autoridade mediante solidariedade com os rebeldes (Dia D). Que um autor de texto certeiro, que este pensador objetivo e argumentativo tenha sido praticamente expulso da vida escolar é um atestado de incompetência do sistema de ensino, num quadro que deprime.

Acho que não é óbvio, mas há uma coerência implícita que rende unidade entre as memórias infantis/juvenis e a consciência adulta. A violência e arbitrariedade policial estão na infância que sai para brincar na periferia, mas também na abordagem do trabalhador pobre e quase preto, nisso reside parte da força e da ironia mórbida de Excesso de exceções.

O bando de crianças estava brincando de esconde-esconde em um dos núcleos de casas pobres da Lomba do Pinheiro, e o carro chega e freia cantando pneu. A abordagem interrompe o folguedo aos berros, com os meninos desnorteados e apavorados.

Eu não fazia a menor ideia do que estava acontecendo, claro, mas a ignorância não me livrou do pânico absoluto. Pensei que aqueles homens nos fariam o pior de todos os males. Pensei que estavam nos confundindo com alguém que tivesse feito algo errado, muito errado. Apontavam-nos armas. Gritavam sem parar. Faziam perguntas que eu não sabia exatamente como deveria responder. Mexiam nos nossos bolsos.

Uma tia minha apareceu e fez um escândalo. E até hoje, quando penso nela, sou incapaz de dissociá-la de uma certa aura heroica. Foi um alívio sem tamanho vê-la surgir para nos livrar de uma possível surra, ou até mesmo de uma possível morte.

– Mas o que é isso? Que absurdo é esse? Vocês não têm mais o que fazer?

– A gente só tá fazendo o nosso trabalho, dona. É só o nosso trabalho.

Era só o trabalho deles. E continuou sendo só o trabalho deles através dos anos todos da minha vida, à medida que iam se desenrolando. (p. 114)

Quem acompanhou o estúpido e previsível desfile de subempregos e bicos de 1. Assalariados, vai encontrar o adulto que volta ao colégio para terminar o Ensino Médio depois dos 30 anos de idade, depois de ter sido expelido pelo sistema de ensino público na adolescência. É uma espécie de ápice da iniquidade que José Falero enuncia e organiza, entre argumentativo e bem-humorado, naquele ponto de vista inconformado informado que tento captar aqui.

É um procedimento de compreensão e denúncia muito refinado, que não apela para humor estridente e degradante, muito longe do rebaixamento. Uma estranha e desconcertante lucidez, que implica distanciamento, mas também empatia visceral. Quando, no andamento da prosa, a cena sentimental ou abrutalhada excita a imaginação do leitor, o autor providencia a reflexão que se vale da sintaxe organizada por cujo e por nexos causais e explicativos, uma espécie de esforço civilizatório do autor, que, no entanto, a julgar pelo tom e sobriedade, não parece levar muita fé no resultado do esforço.

O inconformado parece explicar algo que lhe parece evidente, abominável e naturalizado, algo que não exigiria explicação se o embrutecimento não fosse a regra e as exceções não excedessem em muito o tolerável. Enfim, o ritmo da prosa e algum rompante didático também comportam ironia e sátira, o que compõe a complexidade do procedimento, cuja dinâmica tentarei examinar em uma crônica ali adiante.

Do ponto de vista do perfil psicológico, o narrador reconhece sua tendência à depressão e melancolia, mas sempre disposto ao humor. Na abertura de “Pereba eterno”: “Quando cheguei, meu primo Jorge Rodrigo Falero Cordeiro, o Pereba, já estava aqui, caçando um jeito de burlar a depressão que se abate sobre os da nossa estirpe. É inútil, portanto, que eu tente me recordar do mundo sem ele”.

O texto é sobre o primo Pereba, que morreu há pouco, com quem José Falero dividiu conversa e experiência. É uma comovente elegia ao talento de seu primo, que marcou a comunidade, seu povo, mas talento que tinha de suportar a consciência da abjeção com que o Brasil trata os pobres.

O Pereba era justamente o oposto do resignado e alienado. A amargura que o atormentou nos anos seguintes provinha, não tenho dúvida alguma, da insatisfação, da falta de perspectiva, da consciência de que merecemos muito mais do que está ao nosso alcance neste país de merda, do grau exemplar em que abominava as injustiças praticadas contra nós todos os dias em todas as esferas sociais.

Daí que a narrativa se encerre com um trecho de rap feroz e contido, com o lirismo da evocação do primo morto ganhando batida bruta no final, num lance arrojado de retórica.

“Insônia” é uma crônica longa que ilustra em grande estilo a altura alcançada pelo autor Falero. A abertura é corriqueira e um tanto óbvia.

Tentei dormir, mas não rolou. Então, vou contar uma história. Na verdade, algumas histórias. Todas verídicas, por mais incríveis que possam parecer.

Não vou citar, pra não ficar chato, mas esses dias, lá no Cap, onde eu estudo, disseram que tenho cara de ladrão. Disseram isso com todas as letras: que tenho cara de ladrão.

A seguir vem a fala do colega entre boçal, bem-humorada e complacente, tudo isso na escola, onde José Falero estava empenhado em finalmente encerrar o ensino médio. Depois de registrar o caráter preconceituoso da intervenção, o cronista evita o conflito: “E até pensei em perguntar ao camarada como é que é uma cara de ladrão, mas, nesses últimos tempos, tenho me esforçado para me manter fora de discussões inúteis.”

Isto é, depois de anotar o exercício de preconceito, vem o recuo um tanto malicioso, de quem anotou, mas está atento para a sólida barreira ideológica ou para o bom senso conservador, para ficarmos em duas variáveis bem conhecidas. Depois de breve digressão, vem o fim de parágrafo que abre para o episódio seguinte: “Mas se existe a cara de ladrão no âmbito do senso comum preconceituoso deste país, também existe a cara de vítima, e essa cara eu sei que não tenho. Os ladrões não parecem me ver como uma vítima em potencial”.

Aqui a malícia cresce, porque ladrões também se movem no terreno de supostas aparências e clichês, em que o senso comum preconceituoso atua. Se cara de ladrão é preconceito, cara de vítima ganha qual configuração? Ou melhor, na sociedade cindida entre ladrões e vítimas, com destituídos e espoliados aguentando segregação e degradação, como não incidir na fórmula de que os pobres são ameaças contra os quais as possíveis vítimas (mais ou menos confortáveis) projetam seus temores?

“Insônia” prossegue implacável rumo ao episódio seguinte, onde nosso herói encontra-se em uma parada de ônibus, de noite, quando surge um interlocutor que pede uma passagem de ônibus. Diante da negativa, vem o desabafo entre irado e jocoso:

– É foda! Passei a tarde toda pedindo uma passagem pras pessoas, e todo mundo se fazendo de louco! Não vou voltar a pé pra casa, irmão. E não vou pedir carona também. Daqui a pouco, vou é tocar alguém pra cima, na real, não quero nem saber. Não queria fazer isso, mas vou ter que fazer.

E o cronista anota que não se tratava de ameaça, porque as feições e trejeitos do solicitador eram amistosos, isto é, o pedinte na pindaíba considerava o cronista um semelhante, um irmão. Falero riu, se divertindo com a expressão “Tocar alguém pra cima”, uma fórmula eufêmica e plástica.

Ele não se aguentou e acabou rindo também.

– Mas é, mano! Porra, o que que custa pagar uma passagem pro cara, né?

O cronista aproveita a deixa e revela que em algum momento da vida passou a imaginar estratégias para quando fosse assaltado. Apesar de, como revelou acima, não ter o perfil adequado, é sempre bom estar preparado para algum ladrão iniciante ou amador agressivo e desatento. O texto evolui, sem mais, para outra ocasião, outra parada de ônibus, uma ocasião e parada excepcionais, quem diria. Foi a única vez em que Falero sofreu uma tentativa de assalto. Ele estava acompanhado de um amigo e são intimados por dois assaltantes, um deles com faca.

José Falero tenta argumentar (“Porra, mano, tu vai roubar a gente, é isso mesmo?”), recebe resposta agressiva, mas a cena degringola para uma divisão da miséria entre pés-rapados, tão hilária quanto a cena do pedinte da parada anterior, mas enquadrada pelo equívoco de ameaças e faca à mostra. O cronista explora a situação que já está rendendo riso no comparsa mais descontraído do assaltante com a faca:

– O mano, eu perguntei se tu ia mesmo roubar a gente porque é isso aí que tu tá vendo: a gente aqui é fodido, mano. A gente não tem nada e tu vai roubar a gente?

O cronista se aferra ao esforço pedagógico e segue: não temos nada a oferecer, eu e o parceiro esperando ônibus, com barba malfeita e fumando cigarros vagabundos. A argumentação é interrompida por um sinal de alarme de carro do outro lado da avenida, sinal acionado por um casal que saíra de um restaurante. Estabelecida a empatia com o assaltante, vai o alerta.

Apontei na cara dura:

– Olha lá, mano. Olha lá o dinheiro indo embora. É lá que tá o dinheiro, mano, e não aqui na parada do ônibus. Aqui só tem fodido.

O cara da faca me olhou bem sério. Depois, balançou a cabeça e disse:

– Tá bom. Me dá um cigarro aí, então.

E dei o cigarro e eles foram embora. (FALERO, 2021)

Este assaltante falhado e seu parceiro relax são tratados por “manos” e aceitam a lábia do cronista, que apela para os assemelhados assaltantes e lhes aponta os consumidores que, saciados por uma refeição, ao que tudo indica, têm cara de vítimas. Alarme, carro, restaurante, um conjunto de signos a evocar um padrão de consumo que a rapaziada da parada de ônibus só pode contemplar, invejar, atacar, etc.

Lembremos: a primeira parada de ônibus, o cronista se encanta com a expressão metafórica (tocar alguém pra cima) no quadro da hipótese de assalto, um assalto entre pobres talvez, para obter a quantia para pagar a passagem. Na segunda parada o quadro evoluiu para o assalto mal-sucedido em que a retórica convincente – e, para o leitor artística – abre espaço para a aliança, o conselho e incitação ao ataque a quem tem o que perder.

Claro que aqui a boa vontade e interesse do leitor ilustrado, também ele frequentador de algum restaurante, são testados. O bom humor e a ginga do quarteto despossuído ganhou contornos mais sinistros, em que uns aconselham, e talvez planejam, enquanto outros executam. É argumentável que o julgamento de José Falero sobre preconceito no topo da crônica sofreu sério abalo. As aparências que alimentam o preconceito enganam mas nem tanto, o que equivale a dizer que os ricos e remediados se sentem ameaçados pelos pobres por excelentes razões, isto é, as razões de quem se encontra objetivamente privilegiado e conivente em uma sociedade desigual em escala abjeta e delirante.

Entre paradas, conceitos, fala popular e conversa entre manos, o cronista arma a situação em que o protesto contra o preconceito é contestado, e, se não estou muito errado, o contraste leva do preconceito estúpido a uma reveladora e provocadora cena contemporânea, na qual comparece também humor patético. Trata-se de um tipo de esquete brechtiano em que se apanha o ziguezague da disputa de classes de um ponto de vista supostamente ameno, em que a parceria gentil e lírica entre cronista e leitor, tão típica da crônica brasileira, sofre uma torsão nem tão sutil, entre gentil e provocadora. Ou hostil e maliciosa? Ambígua e pedagógica? Como é de se esperar em prosa complexa, as camadas se interligam. Para mim, um feito estético notável e excepcional. Mas a crônica ainda não acabou, vejamos.

José Falero corta e anota que, entre outros subempregos, foi porteiro em prédio de bairro confortável porto-alegrense. Nesta condição, travou alguma convivência com certa jovenzinha vinda do interior. Como ela votou no Aécio Neves contra Dilma, a quase amizade sofreu algum abalo, com José Falero sendo excluído do Facebook. Rumo ao final do texto, segue este trecho malicioso e devastador.

“Ela tinha vindo do interior pra cursar direito em Porto Alegre. E o pai dela, então, simplesmente tinha comprado um apartamento pra ela. Na Bela Vista. No prédio onde eu trabalhava. Também lembro do carro zero que ela ganhou um tempo depois, e do iPhone de última geração que ela tinha. iPhone esse que roubaram dela num assalto, e que ela repôs logo na semana seguinte, comprando outro iPhone de última geração novinho em folha, assim, como quem compra bala de banana”.

Depois desta consideração, vem a oportunidade de falarem sobre assaltos, perdas e danos, em que José Falero narra parte da tentativa de assalto na parada de ônibus. E a jovenzinha entusiasmada com a coincidência narrativa interrompe:

– Pois é, criatura! A gente não tem nada e eles vêm querer roubar a gente! Não é um absurdo?

O cronista se prepara para gargalhar da piada que não existe, percebe o desentendimento irremediável e reforça o mal-entendido da moça.

– Ô. Bota “absurdo” nisso!

Com este final, voltamos àquela disposição da primeira cena da crônica, em que se evita entrar em discussões inúteis. Lá era tentar revelar o preconceito de quem associava Falero a assaltante, aqui é a condição privilegiada encarnada na menina, que se associa ao cronista na condição de vítima de assalto, tornando o diálogo um exercício de incompreensão. No primeiro momento, ali no início de Insônia, emergiu a acusação de que o cronista aparentava ser capaz do assalto, no segundo momento há associação descabida entre assaltados, com José Falero de fato simpático ao assaltante, mas associado por engano elitista à assaltada, que é gentil, aecista e um tanto distraída. No bairro chique, um mal-entendido cômico e acintoso entre a jovem branca e o empregado preto/pardo.

De outro ângulo, as anedotas sobre assalto ganham contraste e talvez pungência, agora iluminadas pela disputa política recente e pelo debate Facebook, o que também qualifica a inserção do cronista. A ruptura no Facebook não impediu o contato verbal relativamente sereno entre os dois, cujo desfecho, no entanto, é o desentendimento mediado pelo embrutecimento de classe e pelo autoengano complacente, uma vez que a moça não se dá por achada.

A hostilidade social e o desentendimento ideológico pautam o conjunto de textos e estabelecem grande unidade no livro, mas é possível pautar as crônicas de um livro inteiro sem que forma literária reelabore o conteúdo. Aqui há forma literária que explora hostilidade e desentendimento com amplitude e densidade, trazendo, para enredo e andamento de prosa, o atrito centro e periferia, cidade e subúrbio pobre.

Um atrito que pode virar sátira à disposição lírica e afetiva do cronista, que teria se enamorado de uma outra moça desavisada, também classe média, segundo a crônica “Leite derramado”. Falero e seu amigo, um “bruxo”, encontram-se dentro de um ônibus quando o bruxo investe contra as ilusões amorosas. Na parada de coletivo ou dentro dele são locais de sociabilidade para quem passa horas em deslocamento para sair ou voltar à Lomba do Pinheiro, note-se. Reproduzo um trecho da retórica extraordinária do bruxo bem-humorado e pessimista, que avalia as possibilidades do amor entre a dama e o periférico preto e sentimental.

“Não, não, isso aí é só a chegada, isso aí é só a chegada. Imagina depois, vocês dois enfurnados dentro do barraco, mil grau lá dentro, meia hora dando tapa no ventilador pra fazer funcionar, e quando o bagulho finalmente funciona, é ar quente pra todo lado, aquele bafo, parece até um secador de cabelo. A mina acostumada com tela plana, Smart TV, Full HD e o escambau, e aí tu liga aquela tua catorze polegada véia de guerra, que foi até da tua vó, aquela de tubão, da época que os botão era de girar, e na real já até sumiu a pecinha de plástico dos botão tudo e só dá pra trocar de canal e aumentar o volume com o alicate. A imagem toda chuviscada, cheia de fantasma ; o som, uma chiadeira só; e tu jogando a antena pra lá, jogando antena pra cá, tentando sintonizar no Faustão. Enquanto isso, o arzinho da tarde, em vez de te ajudar e ir lá pro outro lado, não, ele vem todinho pro lado da tua baia, trazendo o aroma do valão que passa lá atrás. Ah, mano te liga! E daí a coitada da mina lavada de suor dentro daquele forno que é o teu barracão, nunca que a coitada da mina suou tanto na vida, e ela pede pra tomar um banho, quase chorando já. Bah, imagina o fiasco! Tu na janela, gritando pra tua tia pra ninguém ligar o chuveiro lá na casa dela porque a mina vai entrar no banho, e se ligar dois chuveiro ao mesmo tempo é brete, dá ruim, cai o disjuntor e desliga tudo, fica todo mundo sem luz, porque é um gato só pra todo mundo e o bagulho não aguenta dois chuveiro ligado ao mesmo tempo. Beleza, daí a mina tá lá, no banho e chega alguém pra perguntar se tu tem um pouco de pó de café pra emprestar. Sempre tem um, é impressionante! Mentira, tá ligado? Nem quer pó de café coisa nenhuma, quer só fofocar, ficou sabendo que tu tava com a mina ali e quer dar um bico no naipe dela pra depois sair falando, e daí vem com essa de pó de café, na cara dura”. (FALERO, 2021, p.90).

Este bruxo, com sua verve popular galhofeira, é um exemplo da variação retórica que pontua os textos e garante, entre outros meios, a densidade da prosa. Em chave melancólica e feroz, a gíria da quebrada rende o terrível “Nego Pumba”, que versa sobre um antigo parceiro do narrador que se degradou no crack. No entanto, vale o registro que sob a comédia das agruras do amor, pulsa a condição de infracidadania periférica em contraste com as prerrogativas sociais de alguma elite, aquele atrito referido acima.

No conjunto das crônicas e na sua organização em livro, o que surge é antagonismo implacável, a deslocar o atrito para os momentos mais amenos das crônicas. Eu arrisco dizer que este volume é um acontecimento estético a saudar nossas façanhas gaúchas, uma homenagem irônica às pretensões civilizadas de Porto Alegre, nossa amena capital.

*Homero Vizeu Araújo é professor titular de literatura brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Referência


José Falero. Mas em que mundo tu vive?. São Paulo, Editora Todavia, 2021, 280 págs. [https://amzn.to/4hjxtjq]


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