A ópera em São Paulo

Wassily Kandinsky, Meda de Feno
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Por RUBENS RUSSOMANNO RICCIARDI*

Temos que valorizar corpos estáveis públicos como o do Theatro Municipal de São Paulo, para que haja muitos assim em todo o país

Eu tenho uma relação afetiva com o Theatro Municipal de São Paulo. Foi ali, tocando a Polonesa militar de Fryderyk Chopin, aos 13 anos de idade, em 1977, que me apresentei em público pela primeira vez – num concerto sob direção artística do maestro Rubens Leonelli. A partir de 1979, tornei-me aluno do maestro Olivier Toni – um ex-fagotista da própria Orquestra do Theatro, o qual me contava histórias inusitadas daquela instituição, incluindo os inesquecíveis concertos regidos por Heitor Villa-Lobos.

Comecei a frequentar os concertos e as récitas de óperas no Theatro Municipal desde os últimos anos de atuação do maestro Roberto Schnorrenberg. Foi também ali que passei a compreender a música num instigante contraponto entre o antigo e o novo, entre o regional e o cosmopolita, entre o clássico e o experimental. Mesmo nos tempos que morei no exterior, sempre procurava me informar sobre a sua programação.

Enfim, as boas novas, as quais me impulsionam a redigir este artigo, são que o Theatro Municipal de São Paulo vivencia atualmente a sua melhor fase, atingindo um nível técnico-artístico extraordinário. É importante, num país com complexo de vira-lata como o Brasil, que haja espaço não apenas para críticas, ainda que imprescindíveis, mas também para elogios aos empreendimentos e realizações de importância histórica.

Temos que aprender a valorizar não apenas os nossos talentos, mas também o nosso potencial nas grandes artes – aquelas solenemente ignoradas pela mais respeitável imprensa, pois esta dedica a sua idolatria pseudointelectual exclusivamente à indústria da cultura. Numa palavra, em nosso país, os palcos de ópera – cuja natureza artística é extrínseca à indústria da cultura – raramente são considerados. Ainda assim, os raros comentários tendem à crítica injusta ou meramente destrutiva. Temos que rever este estado contraproducente de coisas.

A história da ópera em São Paulo remonta ao século XVIII – pelo menos aos tempos de Morgado de Mateus, um governador iluminista e mecenas. Já o mais antigo mestre de capela “operário” (dizia-se, no período colonial, do músico que trabalhava na ópera) que se tem notícia, Antônio Manso, atuou na Sé e na Casa de Ópera paulistana na década de 70 do século XVIII. Natural de Sabará e tendo atuado anteriormente na Bahia, Antônio Manso foi elogiado pelo então governador Morgado de Mateus por conta da qualidade artística e da modernidade do seu repertório: “provido das melhores solfas de bom gosto do tempo presente” – lembrando que solfas são papéis com notação musical. A antiga Casa de Ópera paulistana se situava ao lado da Igreja dos Jesuítas no Pátio do Colégio. Foi demolida em 1870 – existiu por cerca de um século.

Colégio e Igreja dos Jesuítas (à esquerda) e os fundos da Casa de Ópera (à direita). Foto de Militão Augusto de Azevedo.

Entre os teatros paulistanos antigos já esquecidos, o mesmo trágico destino também marcou outras duas casas de ópera anteriores ao Theatro Municipal: o primeiro Theatro São José – na atual Praça João Mendes, funcionou entre 1864 e 1898 e foi destruído por um incêndio – um notável palco dos abolicionistas, onde se declamavam os versos de Castro Alves e onde se homenageou Luiz Gama post mortem; e o segundo Theatro São José – em atividade apenas por 10 anos, entre 1909 e 1919, tendo sido demolido pela Cia Light em 1924 e no seu lugar se encontra hoje o Shopping Light.

Primeiro Theatro São José.

Segundo Theatro São José. Foto de Wilhelm Gänsli.

Interior do segundo Theatro São José com fosso de orquestra, palco, plateia e camarotes.

Inaugurado em 1911, já por sua arquitetura monumental, o Theatro Municipal se tornou e ainda é o melhor espaço físico operístico na cidade de São Paulo. As suas estruturas de excelência encontram-se hoje em perfeito estado de conservação e uso.

Da esquerda para a direita: o segundo Theatro São José, o Viaduto do Chá e o Theatro Municipal. Foto de Aurélio Becherini.

O que mais nos interessa aqui, entretanto, é que às virtudes estruturais se soma ainda uma direção artística jamais vivenciada anteriormente em São Paulo. Desde que assumiu a liderança musical do Theatro Municipal, em 2017, o maestro Roberto Minczuk vem viabilizando alguns dos mais bem sucedidos projetos operísticos no Brasil: Der Rosenkavalier de Richard Strauss, O Amor das Três Laranjas de Sergei Prokofiev, O Navio Fantasma de Richard Wagner, La Fanciulla del West de Giacomo Puccini, La Traviata e Rigoletto de Giuseppe Verdi (com a brilhante direção de Jorge Takla) encontram-se entre as mais notáveis encenações.

Houve também novas encomendas de óperas inéditas: Navalha na carne de Leonardo Martinelli e Homens de Papel de Elodie Bouny – ambas as composições com libretos inspirados em dramas de Plínio Marcos.

Destaca-se ainda a talvez a melhor encenação de Il Guarany de Antônio Carlos Gomes em todos os tempos – não apenas pelo altíssimo desempenho técnico-artístico que envolvia os cantores e a orquestra na interpretação/execução musical, mas também pela inserção de iconografias artísticas e do pensamento crítico de Ailton Krenak, contextualizando o libreto de José de Alencar no mundo indígena – ou seja, ao qual pertence a história de fato e de direito.

Recentemente, o maestro Roberto Minczuk esteve à frente de mais uma alta performance artística com Madama Butterfly de Giacomo Puccini. Claro que o lugar de fala do artista é o universo inteiro, bem como a história das artes é a história das apropriações culturais. Assim como não há linguagem pura, pois toda linguagem é metafórica, também não há grande arte sem o tempero na linguagem enquanto fruto de um distanciamento crítico-inventivo em relação à cultura de origem. Não é por menos, Puccini, portanto, um compositor toscano, na sua transcendência inventiva, narra uma tragédia japonesa envolvendo os personagens Pinkerton e Cio-Cio-San (Madame Butterfly) – ele, um tenente ianque-estadunidense da Marinha dos EUA; ela, uma gueixa japonesa.

Não apenas pelo conglomerado de sonoridades apropriadas e revisitadas, tais como o Hino dos EUA ou a tradicional canção popular japonesa Sakura Sakura, mas em especial por toda uma inovação harmônica (superando a funcionalidade tonal), melódica (levando a emancipação da melodia romântica às suas dimensões mais derradeiras) e na orquestração (experimentando novos timbres e combinações), Puccini expõe um mundo musical que sempre ainda nos contagia e nos emociona.

Não obstante o drama se situar em Nagasaki, no início do século XX, de modo algum a Madama Butterfly pode ser considerada uma ópera datada nem muito menos condenada à obsolescência: por conta dessa admirável interpretação/execução no Theatro Municipal de São Paulo, envolvendo tanto a cena como a música e evidenciando o dinamismo da sua linguagem, a obra permanece instigante, surpreendente e nova.

A direção cênica de Livia Sabag merece elogios. Eu tenho presenciado uma série de encenações, não apenas no Brasil, mas mesmo em outros países, nas quais os diretores de cena parecem confundir, no universo da ópera, a poíesis (o processo inventivo de elaboração de obra de linguagem: ofícios do compositor, do libretista ou autor teatral, do coreógrafo etc.) com a práxis (a interpretação-execução da obra: ofícios do maestro, do cantor, do instrumentista, do bailarino, do ator, do diretor de cena etc.).

Claro que a práxis na encenação, por não dispor de solfa, é necessariamente mais inventiva que na música. Mas há, ainda assim, os limites da interpretação. Quem inventa a linguagem da obra são o compositor e o libretista – não o diretor de cena. Uma vez que não há duas encenações idênticas de uma mesma obra, a liberdade e mesmo a inovação experimental, por conta da incontornável idiossincrasia de cada diretor de cena, não podem ser confundidas com um vale tudo – como se outra obra diferente surgisse por meio de uma práxis leviana. A práxis artística, ao contrário, é um exercício hermenêutico que visa compreender e priorizar a poíesis. Portanto, a práxis não pode nem deve deturpar nem muito menos aniquilar a linguagem da obra.

No caso da comovente Madama Butterfly de Livia Sabag, temos uma encenação que valoriza a poíesis de Puccini e de seus libretistas: ela compreendeu o mundo da obra enquanto interação histórico-ontológica e extraiu dele os movimentos corporais e existenciais mais expressivos. Puccini foi ainda mais Puccini com a sua encenação.

Livia Sabag – direção cênica.

Toda a equipe atuou perfeitamente integrada, viabilizando uma belíssima unidade visual e expressiva na encenação – uma parceria com o Theatro Colón de Buenos Aires de grande êxito: Nicolàs Boni (cenografia), Caetano Vilela (iluminação), Sofia Di Nunzio (figurino), Matías Otálora (vídeo) e Tiça Camargo (visagismo).

Destaca-se ainda Maíra Ferreira, a regente do Coral Paulistano, o qual se encontra igualmente na sua melhor fase. Os principais cantores também estiveram esplêndidos, com destaque para Carmen Giannattasio (Cio-Cio-San / Madama Butterfly) – das mais belas e expressivas vozes que já ouvimos aqui no Brasil – e Celso Albelo (Pinkerton), perfeito tanto vocalmente como na dramaticidade em cena. Também os coadjuvantes Ana Lucia Benedetti (Suzuki) e Douglas Hahn (Sharpless) estiveram impecáveis.

Outra boa notícia foi a atuação memorável de Jean William (Goro). Recentemente, o reitor da Universidade de São Paulo, Carlos Gilberto Carlotti Júnior, afirmou que um dos orgulhos da nossa universidade, nos últimos anos, tem sido o seu potencial de viabilizar um amplo acesso ao ensino e à pesquisa de qualidade. Assim, em muitas famílias menos favorecidas, pela primeira vez, algum entre os seus filhos conseguiu estudar na USP – num processo com forte potencial para transformar não apenas a vida do uspiano, mas também a da sua família e mesmo de toda uma comunidade.

Jean William, natural de Barrinha e neto de Joaquim Apolinário, um boia-fria nos latifúndios de cana-de-açúcar aqui na Alta Mogiana, foi o primeiro na sua família a se graduar pela USP. Ele foi nosso aluno no Curso de Música pela USP em Ribeirão Preto – formou-se na classe da professora Yuka de Almeida Prado. Nada há de mais gratificante para um professor, quando o seu trabalho viabiliza uma carreira tão bem sucedida. O sucesso de Jean Willliam é o sucesso do ensino público e gratuito!

Jean William/Goro (à esquerda) e Celso Albelo/Pinkerton (à direita) em cena.

Por fim, a direção musical de Roberto Minczuk, à frente da Orquestra Sinfônica Municipal nas récitas de Madama Butterfly, pareceu-nos precisa nos andamentos, extremamente cuidadosa em cada detalhe, obtendo um equilíbrio perfeito entre orquestra, coral e solistas – seja nas intensidades mais fortes ou mais suaves – sempre atento ainda às sutilezas da escritura musical de Puccini e às alternâncias na atmosfera cênica. Roberto Minczuk é mais um excelente paradigma de um artista da práxis (maestro) que não apenas compreende a linguagem do artista da poíesis (compositor) em suas questões técnico-estilísticas, como sabe conduzir, com a expressão mais brilhante e virtuosa, a execução das suas sonoridades.

Roberto Minczuk – maestro do Theatro Municipal de São Paulo.

Por conta do atual nível artístico do Theatro Municipal, não apenas São Paulo está de parabéns, mas todo o Brasil. Temos que valorizar corpos estáveis públicos como o do Theatro Municipal de São Paulo, justamente para que haja muitos assim em todo o país.

*Rubens Russomanno Ricciardi é professor titular do Departamento de Música da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto-USP e maestro da USP Filarmônica.


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