Por Lucius Provase*
Em 31 de março 2006, José Serra anuncia que irá concorrer à posição de Governador do Estado de cuja capital, São Paulo, havia sido prefeito pelos últimos 15 meses. Na ocasião do anúncio de sua renúncia ao cargo, proferiu as seguintes palavras para justificar o fato de que, mesmo tendo assinado e registrado em cartório documentos de que não iria renunciar, o fez: “Naquele momento, eu disse a verdade. As circunstâncias passaram a ser outras. Naquele momento não tinha por que não o fazer [assinar]”[i].
Doze anos depois, João Dória toma a mesma atitude. O prefeito da cidade de São Paulo renuncia, mesmo tendo assinado documento registrado em cartório dizendo que não o faria. A explicação diante do ato, no entanto, marca uma diferença grande entre este e o outro renunciante. Dória disse que: “Firmar um documento ou não firmar um documento têm o mesmo valor, independentemente de documento ou não”[ii]. Evidente que, tal como José Serra, João Dória disse, mais tarde, que se tratava de um chamamento, que sua candidatura era uma demanda do povo entre outras explicações comuns a esse tipo de situação.
Em que pese o cinismo[iii] das declarações de ambos, chama a atenção o fato de que, no caso de Dória, não houve, em um primeiro momento, a tentativa de relativizar ou negar o documento assinado, ainda que, como Serra, utilizando a desculpa das circunstâncias. Dória simplesmente descarta a existência do documento ao dizer que assinar ou não assinar uma carta compromisso teria o mesmo valor de verdade.
O comportamento de Dória se explica por aquilo que chamo aqui de perda do lastro discursivo[iv]: sem um comum sobre o qual construir a experiência, os discursos acabam por apenas expressar vivências. Ou seja, não é possível construir aquilo que Jacques Rancière chama de “dissenso”, a perturbação do sensível, o conflito sobre o que é esse sensível, um conflito entre as formas do dizível, do visível. Esta ferramenta fundamental da construção democrática, justamente porque repousa no princípio da igualdade, torna-se virtualmente impossível de ser construída.
Sem um lastro que sustente o comum, as contradições deixam de ser um ponto importante da construção do político, já que elas, as contradições, implicam um conflito de experiências. No entanto, se o que passa a valer são as vivências[v], torna-se impossível dizer que elas são contraditórias[vi]. Esse cenário, que produz uma mudança epistemológica e nos levou a um tipo de política que se pauta na construção das fake news e tem sido explicado como “pós-verdade”, mantém estreita relação com a crescente financeirização do capital, a tal ponto que a perda do lastro discursivo pode ser relacionada à perda do lastro financeiro.
No que segue, proponho, justamente, esmiuçar essa relação e buscar demonstrar como a mudança epistemológica é, também, uma mudança no funcionamento econômico do sistema em que vivemos. Adianto que não se trata de retomar a combinação “base x superestrutura” de Karl Marx, mas sim de pensar como dois sistemas simbólicos, a economia e a linguagem, se interpelam e transformam-se um ao outro em um momento em que a experiência do tempo vem sendo reduzida a vivência do presente.
A perda do lastro
A percepção de que há um descompasso entre o tempo vivido e o tempo histórico é uma marca profunda de um momento recente da história da humanidade que chamamos de pós-modernidade[vii]. Seja como uma compressão do espaço-tempo, na percepção de David Harvey ou uma distância irrecuperável entre espaço de experiência e horizonte de expectativa (Reinhart Koselleck), pensar o presente com o tempo regulador das experiências humanas, e não mais o passado (história mestre da vida) ou o futuro (o progresso, a utopia, o porvir, a revolução), modifica de maneira brutal o modo como os elementos simbólicos da sociedade, entre eles o discurso e o dinheiro, funcionam.
No caso do discurso, o excesso de presente provoca a perda do lastro discursivo, o que, por sua vez, impossibilita a construção de um espaço comum[viii], novamente falando com Rancière, que permite que a atividade política, e poética, seja o espaço de cidadania por excelência, posto que, sem um comum pressuposto, não há lugar para o dissenso. Ora, sem um tempo comum e com o presente aparecendo como o único tempo de construção do vivido acontece uma perigosa inversão: aquilo que antes era experiência, o vivido passível de ser compartilhado, torna-se pura vivência, o vivido em sua individualidade.
Isso porque o presente sem mediação não permite o acúmulo discursivo, o mínimo múltiplo comum, necessário para a percepção de contradições, continuidades, partilhas e distâncias entre o dizer e o dito, entre enunciação e enunciado. A demanda pelo real, a insistência em marcas que, de alguma forma, deem sustentação e “verdade” ao discurso[ix], assim como uma clara mudança epistemológica na forma como a arena pública se organiza são todas consequências desse cenário.
No entanto, a perda do lastro discursivo não foi causada apenas pelo “presentismo” que vem se instaurando desde a década de 1970. Como no caso de outra fundamentação simbólica fundamental para o mundo contemporâneo, a moeda, o discurso teve seu lastro corroído pela “hipersemiotização”: o sistema simbólico passa a operar com referentes mais fluídos, transformando-se em um sistema autorreferenciado, além de funcionar em um conjunto de regras que só se aplica a contextos pré-determinados.
Isso foi facilitado pelo modo como regimes discursivos naturalmente hipersemiotizados, como a propaganda, o direito e a própria arte, ao menos, a arte em sua caminhada desde os anos de 1920, foram produzindo objetos que aceleraram essa corrosão. Ainda, como no caso da moeda, cujo abandono do lastro fez com que se tornasse um sistema simbólico autorreferencial, a linguagem foi, aos poucos, com a perda de seu lastro, ocupando-se de si mesma.
A relação que procuro estabelecer aqui, no entanto, ainda que assim possa parecer, não é de causa e efeito, na qual primeiro viria a propaganda, a arte e o direito, depois a perda do lastro. Trata-se de um processo concomitante, com essa hipersemiotização reforçando um processo histórico da perda do lastro.
Vejamos, de início, o caso específico da propaganda. É possível dizer que esta atrela à linguagem a uma falsa simbologia, pois depende de uma referencialidade material cujo eixo operador é a própria linguagem simbólica que decorre do processo de “referenciação”. Ou seja, seu funcionamento é tautológico também no nível simbólico. Jean Baudrillard usa a metáfora de um sistema sem sintaxe. Ele também vê que a publicidade instaura um código universal, o status. Por isso que a primeira vista pode parecer que a publicidade instaura um lastro, no entanto o tipo de referencialidade utilizada por esse sistema, que poderia produzir um lastro comum para o discurso, por ser tautológica, cria um vazio que se reafirma.
O lastro instável, que se pauta em uma suposta objetividade da materialidade por si só, invertendo a equação do pensamento ocidental: é o objeto, agora, quem define o sujeito, independente do contexto, num movimento que iguala forma e conteúdo. Essa hipersemiotização faz com que a linguagem publicitária gire em falso a partir de uma pretensa objetividade da materialidade linguística de seus signos. Combinada ao excesso de presente, temos um elemento fundamental na perda do lastro discursivo. A presença da propaganda faz com que nos acostumemos a um uso da linguagem que independe de uma negociação com outros sistemas simbólicos. Aquele conjunto de valores simbólicos expressos em uma propaganda não necessita de outros valores simbólicos para tomar-se como verdade.
A prevalência do direito no cotidiano, a judicialização da vida, é outro ponto ligado à perda do lastro discursivo. A linguagem jurídica apresenta-se, desde a sua forma, com uma pretensa hiperobjetividade, até por ser a linguagem sem autor por excelência. A função-sujeito jurídica seja ela ocupada por um juiz, um desembargador, um advogado, é o sujeito que enuncia na ausência de subjetividade.
As vozes que falam por essa pura objetividade que é o sujeito da enunciação jurídica não conseguem ocupar o lugar de sujeito, pois, diferentemente da linguagem literária, a linguagem jurídica rejeita a ocupação da voz. Essa falsa ausência, pois a voz está sim ocupada, cria uma atmosfera cuja perda de lastro é um pressuposto. Novamente faz-se uma materialidade, que longe de se mostrar como um referente sólido, por ser também tautológica[x], refere apenas a si mesma.
As artes constituem uma terceira área de investigação. O alargamento do imaginário promovido pelas artes plásticas, sobretudo, ao longo do século XX, torna a apreciação de uma obra de arte confinada ao seu espaço de circulação: museus, galerias, colecionadores. Desde o urinol de Marcel Duchamp, até as performances, passando pela arte americana dos anos 1950, a pop e a op-art, Jeff Koons e seus contemporâneos, Damien Hirst, Adriana Varejão[xi], Cindy Sherman são muitos os exemplos de como essa elasticidade no conceito de arte afeta diretamente a percepção estética, algo que fica evidente quando a arte sai dos espaços já institucionalizados de produção de sentido (e algumas vezes até mesmo nestes)[xii]. O efeito discursivo imediato é a ideia de que tudo pode e tudo vale. A defesa de uma percepção estética comum torna-se cada vez mais difícil, e desnecessária, sem que o espectro ético-político tenha conseguido acompanhar essa diferenciação.
Esse processo que descrevi brevemente é coincidente com o que chamamos de modernidade e se dá ao longo do século XX, com a perda e/ou abandono de outro importante lastro: o financeiro [xiii]. Assim como os discursos acima contribuíram para que o lastro que sustentava a possibilidade de construção de um comum e, portanto, de um dissenso, o avanço da moeda sem lastro permitiu que diferentes discursos monetários crescessem e avançassem. E, assim como ocorreu com os discursos, a hipersemiotização da moeda fez com que esta figura simbólica fosse alvo de uma disputa epistemológica.
Um começo bem no fim – a crise de 2008 como exemplo da performatividade econômica
A perda do lastro discursivo é um processo que se dá ao longo daquilo que nos acostumamos a chamar de modernidade. O mesmo se dá com o capital: o processo de adoção do lastro[xiv] como forma de medir o valor de uma moeda só foi amplamente aceito e utilizado ao longo do mesmo período que chamamos de modernidade, posto que dependente de um aparato legal que apenas o Estado-nação poderia oferecer[xv]; ao mesmo tempo, e de forma um tanto paradoxal, foi também o período que viu o gradual abandono dessa maneira de lidar com a moeda, ao menos como ferramenta mundialmente compartilhada.
A discussão por trás da adoção ou não de um lastro para a moeda está diretamente relacionada à função da neutralidade ou não desta na economia. Entende-se por neutralidade o fato de que a moeda só afetaria as variáveis nominais (preço, câmbio, salários) enquanto as variáveis reais (PIB, emprego, consumo, etc.) estariam fora do alcance de qualquer variação na moeda. Disso depende que as três funções atribuídas à moeda, a saber, meio de troca, reserva de valor e unidade de conta, seriam as únicas possíveis a serem cumpridas por uma determinada materialização desse bem.
Por trás desse processo está a grande lacuna das teorias macroeconômicas: o que é uma moeda[xvi]? Embora pareça absurdo àqueles de fora dos estudos econômicos, as grandes teorias macroeconômicas não apresentam uma proposta sólida sobre o que é uma moeda na economia[xvii]. Isso se deve muito à naturalização de certa ideia de moeda, que vê a moeda como um objeto. Tal naturalização gerou mitos que, ainda hoje, imperam na condução das políticas macroeconômicas.
Tcherneva aponta três mitos principais: “(1) that money is a creature of the market born out of the necessity to facilitate barter; (2) that money is an object, usually of some intrinsic value (derived from precious metals) that is easily transportable and divisible; and (3) that in and of itself, money has little economic significance (it is “neutral”), serving only to simplify transactions but leaving employment, consumption, and investment decisions unaffected.”
Tcherneva, ao apontar alguns fundamentos das políticas monetárias como mitos que não se sustentam diante de evidências empíricas, coloca a moeda não só como uma ferramenta do Estado, mas como um campo simbólico que, em muitos aspectos se assemelha ao funcionamento do discurso. O mito três, de que a moeda seria neutra, ao ser questionado, aponta para uma característica importante dos fenômenos econômicos, característica da qual a moeda não escapa: o seu funcionamento performativo.
Se as expectativas econômicas funcionam, sobretudo, como produtores de desempenho, afinal, se o mercado acha que o ambiente econômico em um determinado país vai se deteriorar, ele realmente se deteriora, a moeda também instaura relações que não são apenas de valor. A moeda como meio de troca e unidade de conta são catacreses; metáforas mortas que já não mais são compreendidas como tal.
No entanto, como se pode inferir dos comentários de Tcherneva, esse funcionamento discursivo ainda tem fortes efeitos no papel que a moeda exerce em nosso cotidiano. A moeda como meio de troca e como unidade de valor permeia todas as nossas práticas discursivas em torno da valoração, não apenas de bens materiais, mas também de bens simbólicos e culturais[xviii]: nosso imaginário, no que se refere a qualquer relação de valor, é tomado pela referência ubíqua da moeda. Assim, as comparações que fazemos (o meio de troca) acabam se tornando, também, uma valoração (unidade de valor).
Nessa perspectiva, pode-se compreender como a perda do lastro financeiro, ou a aceitação de que a moeda fiduciária seria algo antigo na História exerce um papel semelhante à perda do lastro discursivo. Em ambos os casos, o resultado é um vale-tudo epistemológico no qual cabe a cada indivíduo definir as regras de construção e produção de sentido, tornando-se inviável, e virtualmente impossível, a partilha do sensível.
No caso específico do lastro financeiro, nossa hipótese é de que ela constitui um evento financeiro, ou seja, performativo, na qual o papel que o lastro financeiro exerce é semelhante ao papel que a ideia de verdade exerce no discurso[xix]. Assim, o avanço da moeda creditícia, sem lastro algum, talvez encontre equivalência naquilo que chamamos de fake news e o fenômeno que se criou em torno da pós-verdade. A diferença fundamental é o arcabouço epistemológico construído para lidar com essa gradual perda do lastro.
O próprio caminho percorrido para uma moeda sem lastro passa por processos semelhantes, como a construção de um arcabouço jurídico-institucional que dê sustentação a moeda[xx], a transformação do sistema financeiro em um campo semiótico autorreferencial[xxi] e a necessidade de se ampliar o mercado de consumo a partir do aumento da produção econômica; sempre medida pelo PIB. A partir dessas referências, talvez fique claro o que se pretende em uma comparação entre fake news e moeda creditícia: evidentemente, não quer dizer que a moeda não exista ou que ela não tenha validade; quer dizer que sua existência e validade dependem de um conjunto epistemológico que mais força tem, conforme maior é o grupo que partilha esse conjunto.
A força epistemológica da moeda fiduciária ficou muito clara na crise de 2008, ao mesmo tempo mostrou como o intrincado sistema financeiro só pode funcionar sem um lastro físico[xxii]. Evidentemente, pela quebra no contrato de pagamento das hipotecas, o sistema iria ruir eventualmente. No entanto, quando ficou clara a frágil arquitetura do sistema de subprimes, que vendia dívidas de pessoas que nunca conseguiriam pagá-las, o sistema imediatamente ruiu. Ou seja, antes mesmo de seus efeitos começarem a ser sentidos, quando se descobriu que o arcabouço que sustentava aquelas operações era performativo.
Começa-se a compreender a relação entre o lastro discursivo e o lastro financeiro. Sem um sistema discursivo aberto, cuja epistemologia que o sustenta esteja fragmentada, a performatividade do sistema seria mais facilmente questionável. Sem um comum, sem a possibilidade de partilhas, é mais fácil impor a epistemologia do mercado como a única epistemologia universal. Compreende-se então de que forma a régua do mercado passa a ser o regulador das expectativas.
Fake News – moeda e discurso
Há uma generalizada compreensão de que as fake news não são um fenômeno recente e que o uso de mentiras como ferramenta política é, e sempre foi, comum. Por outro lado, há, também, a compreensão de que o que vivenciamos hoje, a chamada pós-verdade, exibe características únicas. Seja pela velocidade, trazida pelas redes sociais, com que as informações se espalham, seja pelo fato desta ser uma mudança verdadeiramente epistemológica[xxiii], o que chamamos de fake news não é um fenômeno que pode ser tratado como uma nova relação entre mentira e verdade. Este fenômeno só pode existir devido à perda do lastro discursivo. Dito de outra forma, a mudança epistemológica que estamos presenciando só existe pela impossibilidade de construir um mínimo comum conceitual.
Nesse sentido, as fake news sintetizam a parte fundamental do funcionamento discursivo pós década de 1970: a aposta na performatividade do discurso. Vladimir Safatle aponta que, com o advento do cinismo, no sentido que Sloterdijk dá ao termo, não faria mais sentido pensar em contradição performativa, como poderíamos pensar ao nos defrontarmos com a ambivalência entre a notícia e o fato. No entanto, o que se pode notar é que com a ausência dos pressupostos comuns, que dão as bases para que uma contradição possa existir, a performatividade passa a ser a única força em jogo na relação entre enunciação e enunciado. De certa maneira, é como dizer que o enunciado não mais existe, existe apenas aquilo que está posto em funcionamento: a enunciação.
Abandonar o lastro-ouro é operar um processo semelhante em relação à moeda. O lastro seria o enunciado, contra o qual a enunciação pode ser constituída ou não como contradição. O abandono do lastro, a volatilização da moeda, transforma as operações financeiras em enunciações, nas quais a força performativa daqueles que a operam vale mais do que a relação que esta mantém com o enunciado.
A Economia, como ciência performativa por excelência, acaba sendo catapultada ao centro de qualquer debate, seja sobre educação, saúde, ciências. O uso exaustivo dos dados[xxiv] serve para mascarar a ausência de lastro e a predominância da performatividade nesses discursos que se querem técnicos.
Um fim bem no começo
O que se pretende aqui é esboçar uma possível relação entre o fenômeno discursivo político das fake news e o processo econômico de financeirização do capital. Ainda que haja pontos a serem trabalhados, a ideia geral, exposta pelo conceito de perda do lastro discursivo e sua correlação com a perda do lastro financeiro, parece-me bastante válida. Os estudos sobre neoliberalismo[xxv] e sua mudança nos modos de gestão do humano, do tempo, também podem ser incorporados a essa ideia mais ampla. Esses apontamentos visam propor um caminho para se compreender o funcionamento da esfera pública e pensar possibilidades efetivas de se construir opções políticas.
*Lucius Provase é doutor em Teoria Literária pela USP.
Notas
[i] Folha de São Paulo, 01 de abril de 2006, in: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0104200602.htm acessado em 01 de março de 2018.
[ii] http://www.jb.com.br/pais/noticias/2018/03/14/firmar-documento-ou-nao-tem-o-mesmo-valor-no-cenario-eleitoral-afirma-doria/ acessado em 15 de março de 2018.
[iii] O conceito de cinismo ao longo deste artigo será o mesmo cunhado por Peter Sloterdijk em Crítica da razão cínica. A ideia de “falsa consciência esclarecida”, que perpassa o livro citado, parece definir muito bem o que seria essa razão cínica e esse cinismo: a possibilidade de sempre escolher a saída, ética e política, mais fácil sem que isso provoque qualquer tipo de conflito (o que chamaríamos, em outros tempos, de contradição).
[iv] O conceito foi elaborado em minha tese de doutorado. No entanto, é fruto de uma troca de muitos anos com Roberto Zular sobre as questões comuns ao estudo da enunciação e suas relações com a literatura.
[v] A diferença entre vivência e experiência é uma proposta que trago em diálogo com Alexandre Nodari com o intuito de diferenciar entre aquilo que é algo individual e cujo compartilhamento não consegue ultrapassar esta fronteira, a vivência, de algo que só pode ser construído em seu compartilhamento, a experiência.
[vi] Como veremos, o cinismo que prevalece em nossa sociedade impede que as chamadas contradições performativas ocorram. Isso quer dizer que a diferença entre o dizer e o dito, entre aquilo que digo e aquilo que faço tem cada vez menos importância.
[vii] Gilles Lipovetsky, Zygmunt Bauman, Elie During, Hans Ulrich Gumbrecht , Ulrich Beck, Maria Rita Kehl, Tales Ab’Saber, Jean-François Lyotard, Henri Meschonnic, Georges Didi-Huberman, Isleide Fontele, David Harvey, Paulo Arantes, Reinhardt Koselleck, François Hartog, Marcos Siscas, Octávio Paz. Estes são apenas alguns dos nomes de pesquisadores das mais diversas áreas que perceberam uma compressão da percepção do tempo. É possível, ainda, pensar que “o fim da história” de Francis Fukuyama seria uma outra maneira de diagnosticar essa mudança entre os tempos, ainda que com um tom celebratório e conservador que em muito dista dos outros pensadores e outras pensadoras mencionados.
[viii] E possível relacionar a ideia de comum tal como ela aparece em Rancière a conceitos da linguística e da antropologia tal como a ideia de “frame”, a fraseologia, a gramática de construções. Muitos destes oriundos das primeiras ideias de Chomsky de uma gramática universal. O que ocorre é que aquilo que era partilhado fica cada vez mais fragmentado. Um exemplo, é a crescente dificuldade em identificar ironia em textos escritos. É cada vez mais comum, quando um articulista escreve ironicamente, que seja avisado ao leitor com uma frase como “contém ironia”. Impossível não lembrar das embalagens de leite que avisam ao consumidor que o produto em questão “contém leite”.
[ix] Algumas dessas marcas aparecem em referências frequentes a uma suposta descontextualização da fala, como se o contexto fosse algo imutável e, portanto, um lugar de verdade. O conceito de lugar de fala, que é tanto tido como uma versão do “standpoint theory” ou do conceito de “positionality”, é um exemplo desse lugar de verdade que se firma a partir de um suposto contexto anterior à enunciação.
[x] O caso do julgamento dos policiais que participaram do massacre de Carandiru, revisto em 2016, é sintomático desse processo. Por ser impossível julgar um crime coletivo, cada policial deveria ter sua parcela de culpa. No entanto, por se tratar de um massacre, é impossível individualizar. O que parece ser apenas um detalhe técnico ou formalidade, como muitas vezes parece no Direito, é peça fundamental do funcionamento dessa linguagem: o ato jurídico é o único que tem o poder de determinar seu próprio lastro, prescindindo de um comum.
[xi] Adriana Varejão talvez seja um ótimo exemplo de como o alargamento da linguagem simbólica afeta a produção de sentido e, por sua vez, resulta na perda do lastro. O trabalho que ela faz com os azulejos, muitas vezes, não é apenas um problema do material artístico; torna-se uma assinatura, uma maneira de reconhecer o trabalho da autora; um lastro, enfim. O fato de artistas criarem seus próprios lastros com o público é o sintoma dessa perda.
[xii] Os relatos de brincadeiras, acidentes e até mesmo crimes que ocorrem em locais nos quais se espera a performance são inúmeros e vão desde um abacaxi colocado em uma galeria de arte em Edimburgo, passando pelo choque que um estudante sofreu no Instituto de Artes da UFPE, até dois casos de facadas em galerias que foram considerados performance pelas testemunhas.
[xiii] Há que se ressaltar a coincidência temporal entre a perda do lastro financeiro e a perda do lastro discursivo. A quebra do acordo de Bretton Woods, de maneira unilateral, pelos EUA pode representar o início desse novo sistema que se anunciava desde o pós-guerra. Até então, as experiências com a moeda sem lastro não tinham o impacto que tiveram naquele momento por não termos consolidada uma economia global. Dito de outra forma, o que era feito localmente não impactava da mesma forma a economia, pois os Estados-nação não tinham o poder de influenciar com políticas monetárias a economia global. Essa desmaterialização do dinheiro e a flexibilização da acumulação do capital, como propõe David Harvey, impõe uma compressão do espaço e do tempo que se espraia em todos os níveis da experiência social. O espaço vai perdendo suas formas de resistência para se moldar ao processo cada vez mais veloz do capital. Ou seja, a concomitância também revela alguma interinfluência entre esses dois processos. A finaceirização do capital não seria possível sem o lastro discursivo perdido. Como especular se estamos presos a uma narrativa comum? Um exemplo é a crise de 2008 e o subprime. Quem ganhou muito dinheiro nesse período foram aqueles que perceberam o quanto havia de cinismo naquelas relações financeiras.
[xiv] Na Inglaterra do século XIXI, a querela entre monetaristas bulionistas e antibulionistas é tida como o início dessa disputa entre moeda lastreada e moeda creditícia ou fiduciária. Bulionistas, adeptos do que veio a se desenvolver como a Teoria Quantitativa da Moeda (TQM), acreditavam que a inflação era fruto do desequilíbrio entre a moeda e o metal que a sustentava (o bulion), ou seja, acreditavam que a inflação era um problema de emissão em excesso. Os antibulionistas, por sua vez não acreditavam que o aumento de preços era fruto do excesso de moeda. Para um aprofundamento no tópico ver Fonseca & Mollo, 2012.
[xv] Alguns economistas apontam que não apenas a moeda fiduciária (fiat Money) não é um fenômeno tão antigo quanto defendem diversos economistas, como comentam o fato de essa moeda fiduciária, que substituiria a moeda commodity, ser uma invenção econômica que não encontra respaldo na realidade. Sobre isto, um excelente artigo é de Goldberg (2015).
[xvi] André Lara Resende, em seu livro Juros, moeda e ortodoxia, dedica-se a investigar essa lacuna, discutindo as diferentes teorias monetárias nos capítulos 1 a 3, passando pela dificuldade em especificar o que determina o preço, uma consequência da falta de compreensão sobre a moeda e a dificuldade em especificar a relação entre moeda e inflação. Mas o ponto mais importante, em minha perspectiva, são os diversos momentos em que Resende destaca a distância entre a proposta de algumas teorias macroeconômicas e a realidade econômica.
[xvii] Um dos últimos sintomas dessa ausência é o debate em torno da Modern Monetary Theory (MMT). Além da falta de unidade em torno do que seria essa teoria, as críticas mostram que há diversas maneiras de compreender o que é a moeda e, principalmente, sua função.
[xviii] O exemplo mais recente é a afirmação do Ministro da Educação de que é preciso investir em cursos que tenham retorno.
[xix] Seria de fácil compreensão o porquê a MMT vem aparecendo com força entre o mercado financeiro como mostram algumas reportagens do New York Times e da Bloomberg. De que alguma forma, a compensação financeira, em torno do U$ 1 trilhão, feita no pós-crise de 2008 é uma aplicação das ideias básicas do MMT. A isso equivale dizer que o princípio básico do MMT, de que o déficit não é o maior problema quando o endividamento é realizado na moeda que se pode emitir, já existi há algum tempo para uma determinada elite econômica (como não lembrar do Proer), mas quando se trata de políticas públicas de fato, sua aplicação é limitada.
[xx] Embora a moeda não tenha surgido junto com o Estado-nação no século XIX, sua força e universalização só foram possíveis pela estrutura institucional montada com o nascimento do Estado. Basta ver a resistência que as criptomoedas recebem dos Bancos Centrais.
[xxi] Aqui, assim como no caso do discurso, as crises decorrentes do abandono do lastro de forma unilateral pelos EUA com a quebra do acordo de Bretton Woods.
[xxii] Importante diferenciar o lastro físico, normalmente um metal precioso, de um lastro discursivo ou simbólico. A defesa que os Estados, e a “solidez” de suas economias, passam a ser o lastro das moedas é algo velado. De qualquer forma, é importante estabelecer essa matriz para que fique claro que o abandono do lastro financeiro não significa o abandono de qualquer lastro, mas apenas a sua extrema flexibilização.
[xxiii] Cabe um comentário: é verdade, como Foucault aponta, que diferentes sociedades produzem diferentes regimes de verdade. No entanto, nem sempre as mudanças no regime de verdade produzem mudanças epistemológicas. Dito de outra forma, nem sempre o registro discursivo da verdade quando alterado produzia mudanças nas formas de saber (e do saber). O caso aqui é que a era da pós-verdade, a perda do lastro discursivo, faz com que, mais do que o regime, a forma de produzir e receber conhecimento é alterada.
[xxiv] Sobre isso, cabe referir-se a Evgeny Morozov e seu livro Big Tech: a ascenção dos dados e a morte da política.
[xxv] É interessante ver como, nas redes sociais, há uma ridicularização desse termo por parte de certos economistas, como se o conceito, amplamente debatido, fosse um não-conceito. Como é de praxe, nenhum debate é estabelecido, apenas o desmerecimento. É assim que funciona o campo público em um mundo sem lastro.