Mulheres nos parlamentos

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Por CLARA ARAÚJO*

As apostas da política institucional para ampliar a presença feminina nos parlamentos brasileiros – algumas contribuições ao debate.

A América Latina tem sido celeiro de experiências inovadoras para ampliar a presença das mulheres no poder legislativo. O México conta atualmente com 48,2% de deputadas na Câmara Federal. O Equador, nas eleições deste ano, elegeu 38% de mulheres. O Peru, com a nova Lei de Paridade, elegeu 40% de mulheres para o congresso unicameral. Mesmo países vizinhos que “patinavam” em relação a esses percentuais, como o Uruguai, deram saltos importantes na última década (ver tabela 1).

Tabela 1 – Posição dos países da América Latina segundo porcentagem de cadeiras que as mulheres ocupam nas Câmaras Baixas ou em parlamentos unicamerais

Fonte: elaboração própria com dados da IPU-Interparliamentary Union e de páginas de Congressos Nacionais. Acesso em 03/06/2021. Peru elegeu 52 mulheres, mas uma faleceu antes de tomar posse, entrando o seguinte mais votado da lista.

O êxito mais recente foi o do Chile. Em maio, o país elegeu 155 representantes para a Assembleia Nacional Constituinte que irá elaborar nova Constituição, em substituição à atual, da época do General Pinochet. Um dos requisitos, tanto para candidaturas quanto para definição dos eleitos, foi a paridade de sexo. As mulheres surpreenderam e ultrapassaram a meta de 50%: foram eleitas 88 candidatas contra 74 candidatos homens. Fato inusitado, elas cederam 11 vagas para eles, a fim de garantir a representação paritária. O resultado significa mudança extraordinária no ritmo de eleições de mulheres no país.[i]

Apesar de contextos históricos, econômicos e políticos específicos, parte considerável desses ganhos é atribuída à interação entre Leis de Cotas e/ou Leis de Paridade adotadas e alguns fatores, não possíveis de serem analisados de modo aprofundado neste texto. Para o momento, é suficiente indicar: tipos de listas eleitorais, medidas de financiamento com perspectiva de gênero destinadas a fortalecer a liderança de mulheres nos partidos políticos e maior acesso de candidatas a fundos de campanha eleitoral. Mas o destaque central das estratégias para “femininizar a política” está na implantação de Leis de Cotas, com elevados percentuais de candidaturas para ambos os sexos, e nas Leis de Paridade, acompanhadas de sanções efetivas pelo não cumprimento das legislações.

Doze países latino-americanos contavam com leis de paridade até o ano de 2020. As iniciativas resultaram em incremento considerável na média da representação de mulheres, com salto de 9% para 30% entre os anos de 1990 e 2019. Estudos sugerem que “regimes eleitorais de gênero” fortes, que exigem dos partidos respeito aos procedimentos de registro e definição de candidaturas, tendem a resultar em mais chances para mulheres se elegerem (ver quadro 2 anexo e Freidenberg, 2020: 9-10).

Quadro 2- Resumo de leis e algumas medidas legislativas e judiciais com efeito sobre as cotas, Brasil, 1995-2019

Fonte: elaboração própria com base em pesquisa junto ao TSE e outras referências bibliográficas; marcos apresentados no Seminário “Participação Política das Mulheres e Cotas no Brasil”, promovido pela ONU Mulheres e pelo Núcleo Flora Tristán/IPOL/UNB, entre os dias 22 e 25 de março de 2021

Notícias sobre esses resultados eleitorais despertam dois tipos sentimentos: admiração e alegria pelos êxitos crescentes “das vizinhas”; e frustração e indignação diante dos “passos de tartaruga” que marcam a inserção de mulheres na representação parlamentar no Brasil. O país ocupa o 142º lugar no ranking da IPU entre 199 nações, e está no 18º na América Latina (ver tabela 1 anexa). Menos de 30% de nações no mundo registram 15% ou menos de mulheres nas Câmaras Baixas.[ii]

O Brasil deu um salto nas eleições legislativas entre os anos de 2014 e 2018, com incremento de 51% na Câmara dos Deputados e de 36,67% nas Assembleias Legislativas. Pulou de 9,94% % para 15,01% e de 11,33% para 15,49%, respectivamente. Nas eleições para as Câmaras de Vereadores, em 2020, o país elegeu 16% de vereadoras, contra 13,5% no ano de 2016. Mas isto significou sair de patamares baixíssimos para patamares baixos. Passamos de situação quase inercial, para andarmos a “passos de tartaruga” a partir das três últimas eleições. Não que a situação mundial seja confortável. No entanto, comparando o Brasil com a média internacional, o desconforto é grande.[iii]

Múltiplos fatores normativos, políticos, incluindo o nosso sistema eleitoral, culturais e socioeconômicos respondem por esse quadro. Diante do cenário, a pergunta que vêm sendo feita há muito, pode ser resumida no seguinte: quais os caminhos para superar o quadro atual e garantir salto numérico significativo de mulheres nos parlamentos, e, assim, o país sair do atual ritmo “passos de tartaruga”? O momento pede debates e interlocução entre representantes políticos e diversos setores sociais. Na Câmara dos Deputados um grupo de trabalho – sobre o Código Eleitoral – e uma comissão – Comissão Especial da PEC no. 125-A, de 2011, (que trata de dia de eleição próximos a feriados), uma espécie de “PEC Guarda-chuva”, estão discutindo sobre reforma política.

Deputadas e deputados (estes últimos de maneira mais tímida nos espaços de comunicação, mas certamente envolvidos internamente em seus partidos), apresentam suas opiniões sobre o que seria possível mudar, ainda neste ano de 2021, para as eleições de 2022. Propostas relacionadas com as cotas de gênero também estão no “cesto de ofertas”. Surgem proposições sobre aprimoramento ou substituição da atual Lei de Cotas de gênero para candidaturas proporcionais, assim como alternativas, via projetos de reserva de vagas parlamentares, apresentadas no âmbito dos dois espaços institucionais mencionados acima.

Este texto tem o propósito de fornecer alguns subsídios e contribuir com o debate em curso. Não é objetivo abordar as várias dimensões que o tema comporta. Pretende-se tratar, de forma sucinta, de dois processos em curso na Câmara e, em seguida, tecer considerações sobre caminhos e desafios das políticas de cotas atuais. O primeiro tema diz respeito a Projeto de Lei (PLP- 135/2019) aprovado na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher (doravante CDDM), com destaque para o substitutivo apresentado pela relatora, deputada Margarete Coelho (PP-PI). O segundo se refere a uma PEC de reserva de cadeiras para mulheres nos legislativos, proposta atualmente em debate na Comissão Especial. Antes, porém, convém fazer breves comentários sobre a atual Lei de Cotas brasileira.

O Brasil, os “passos de tartaruga” e os desafios da chegada

Há 25 anos o Brasil adota cotas de gênero nas listas eleitorais. Primeiro, em 1996, de 20% para as Câmaras Municipais e, a partir de 1998, de 30% para todos os níveis proporcionais (Lei no. 9.504/97). A legislação foi aprimorada especialmente a partir da Lei 12.034/2009, que tornou mais precisa a obrigatoriedade da cota mínima – com mudança do termo “reservará” para “deverá preencher” – e legislou sobre uso de recurso de fundo partidário, definindo percentual mínimo de investimentos na formação político-partidária de mulheres. Ainda assim, a Lei seguiu parcialmente desconsiderada na sua execução prática e a legislação funcionou quase como uma peça fictícia.

Isso ocorreu, entre outros fatores, em razão de sua (in)adequação ao sistema eleitoral de lista aberta vigente, da ausência de sanções legais pelo não cumprimento do percentual mínimo, dos frágeis compromissos partidários com a Lei (muitos mais retóricos do que efetivos), e, de modo particular, devido aos custos exorbitantes das campanhas eleitorais no país. A partir de 2015 a fiscalização se ampliou e trouxe à tona o problema das “candidaturas laranjas”.[iv] Maior rigor na fiscalização resultou na observância da cota mínima e redução das “candidaturas fictícias”.

Mas a maior conquista veio mesmo em 2018, primeiro com resposta do STF à ADI – 5617/2018[v] no mês de março; em seguida, no mês de maio do mesmo ano, quando o TSE, em resposta a consulta de parlamentares, regulamentou a decisão do STF.[vi] Na ocasião, o TSE decidiu que os partidos deveriam repassar o mínimo de 30% dos recursos do recém-criado Fundo Especial de Financiamento de Campanha, bem como do Fundo Partidário, quando usados em campanhas, para candidaturas de mulheres. E ainda, que o patamar de 30% valeria também para a propaganda eleitoral no rádio e na televisão. A regra foi usada já na eleição de 2018. E, a despeito de ter sido definida nos “45 minutos do segundo tempo”, por assim dizer, estudos iniciais sugerem que essa norma influenciou de maneira positiva os resultados eleitorais daquele ano, assim como os resultados para as Câmaras de Vereadores em 2020. Em suma, apesar de muito distantes do “mínimo razoável”, pode-se dizer que os resultados dos dois últimos pleitos se devem, também, aos fatores indicados acima.

Entre a utopia e o “realismo” pessimista – há saídas?

No percurso tortuoso sucintamente descrito, e diante da permanência de aspectos adversos relacionados à Lei de Cotas, propostas e iniciativas legislativas vêm sendo apresentadas no Congresso Nacional ao longo da última década. Na Instituição transitam algumas (poucas) proposições que podem ser definidas como extravagantes: estão na contramão das tendências de políticas públicas da maior parte dos países neste início de século, e propõem a supressão de qualquer tipo de cota ou de ação afirmativa.[vii] Mas a maior parte visa aprimorar mecanismos de ações afirmativas, ampliar porcentagem de cotas de candidaturas de mulheres, introduzir Leis de Paridade ou ainda aprovar reserva constitucional de vagas de cadeiras no parlamento. E é sobre duas dessas propostas que passo a tratar a seguir.

O projeto de Lei Complementar votado na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara dos Deputados

O PLP-35 foi apresentado pelos deputados Marcelo Freixo (PSOL-RJ) e Sâmia Bonfim (PSOL-SP) em 2019. Resumidamente, seu conteúdo trata de alteração na Lei Complementar no. 78 de 30 de dezembro de 1993, que disciplina a fixação do número de deputados federais por estado, de acordo com os princípios proporcionais e o tamanho de suas populações. O projeto altera aspectos dos seus artigos 2º. e 3º. para “criar cotas para cada sexo nas eleições para Deputado Federal” observando a paridade. Está apensado ao PLP-35/2019 outro projeto (o PLP 109/2019), apresentado pela deputada Gleisi Hoffmann (PT-PR), com teor parecido: altera a Lei 78/1993, para “estabelecer reserva de metade das vagas para mulheres, não apenas na Câmara dos Deputados, mas em todas as eleições proporcionais no país”.

Quando as duas propostas foram encaminhadas, no ano de 2019, o Brasil ocupava o 108º lugar no mencionado ranking da IPU e esta posição foi um dos argumentos usados nas justificativas dos respectivos projetos. Atualmente o país está no 142º. lugar no ranking. Outro argumento comum versou sobre a pequena eficácia das cotas mínimas de candidaturas – 30% -, apesar das várias medidas de aprimoramento. Por fim, ambos destacam as recomendações feitas por organismos internacionais e multilaterais, tais como a ONU e o Parlatino, que estabelecem metas de paridade nos espaços de representação política.

O PLP-35/2019, com o substitutivo apresentado pela relatora, deputada Margarete Coelho, foi aprovado no dia 29 de abril deste ano em votação simbólica na CDDM, então presidida pela deputada Elcione Barbalho (MDB-PA). Vinte e dois membros da Comissão – dentre os quais três homens – pertencentes a 14 partidos registraram presença. Houve 1 (um) voto em separado, e o único contrário, da deputada Chris Tonietto (PSL-RJ).[viii] A proposta de substitutivo apresentada por Margarete Coelho define mudanças no artigo 1º da Lei Complementar 78/1993, que passaria a vigorar com o seguinte texto:

“§ 2º Os partidos políticos terão direito a tantas vagas quanto o respectivo quociente partidário indicar, na ordem da votação nominal dos candidatos, observada a alternância de sexos.
§
3º A regra da alternância de sexos também deverá ser observada nas eleições para as Assembleias Legislativas Estaduais, Câmara Legislativa do Distrito Federal e Câmaras municipais”.

O relatório apresentado ao PLP 35/2019 é peça bem fundamentada e baseada em argumentos pró-igualdade entre homens e mulheres. Mais importante, toca no ponto nevrálgico da conciliação entre interesses partidários na dinâmica da representação proporcional, lugares ocupados recorrentemente pelos “estabelecidos” dentro dos partidos e demanda por equidade de gênero no âmbito dos três níveis da representação parlamentar no Brasil. Por isso, vale destacar aqui partes da justificativa e dos argumentos apresentados no voto da relatora do PLP-5/2019.[ix]

Primeiro a deputada elenca várias razões pelas quais o projeto merece aprovação da CDDM, como, por exemplo, “o fato incontestável” da baixa representação feminina, assim como os compromissos assumidos pelo Brasil nos principais tratados internacionais sobre igualdade entre homens e mulheres, como o CEDAW.[x]

Quanto ao mérito, Margarete Coelho afirma: “Analisando a questão estritamente sob o ângulo do mérito, não há que se afirmar também que medidas desse tipo violariam qualquer critério de justiça envolvendo a soberania popular, uma vez que o exercício dessa se dá nos termos da lei e do sistema eleitoral de cada país, sendo, perfeitamente proporcional que se inclua no âmbito destes sistemas requisitos de equidade entre os sexos” (p. 3). Argumenta também que, “priorizar o acesso de mulheres, entre as mais votadas inclusive, a cadeiras no parlamento, constitui medida menos gravosa a uma visão ideal de soberania popular do que o descarte de votos presente nos sistemas majoritários ou mesmo a eleição de candidatos com menos votos no sistema proporcional, possibilidades estas, inclusive, não usualmente contestadas sob o ponto de vista da soberania popular”.

Por esses e outros elementos, a relatora considerou os projetos “extremamente positivos”, mas fez duas sugestões com fins de “(…) operacionalização mais efetiva e justa dos princípios propostos por ambos”. Isso porque, ambos apenas legislam sobre a distribuição total das vagas, sem detalhar critérios para a distribuição.

As sugestões, segundo avalio, tocam no cerne de tensões político-partidárias, raramente explicitadas, quando se discute proposta de cota e critérios de inclusão de mulheres através de cotas eleitorais. Tais tensões envolvem a soberania dos partidos políticos, o princípio de proporcionalidade de representação e as ações afirmativas institucionais para se alcançar equilíbrio entre homens e mulheres.[xi] Segundo Margarete Coelho, trata-se de problema que envolve “justiça política” e, ao mesmo tempo, “expectativas razoáveis dos partidos e candidatos”. A deputada observa que o projeto não especifica como o princípio da paridade será operacionalizado, considerando a realidade partidária dos votos obtidos nos estados. E argumenta “(…) não se pode ignorar, do ponto de vista do mérito, a incompatibilidade entre a mera estipulação da reserva de vagas para mulheres e o sistema proporcional” (p.5).

Diante disso a relatora observa: “(…) tanto no que diz respeito à justiça política quanto no que diz respeito à expectativa razoável dos partidos e dos candidatos (…) não nos parece justo que, no âmbito de um sistema proporcional, haja um deflator global para excluir candidatos homens mais votados […] Em outras palavras, não é justo que reserva de vagas beneficie uma mulher de um determinado partido em detrimento de um homem de outro partido” (p.5).

Margarete Coelho propõe então conciliar o princípio da proporcionalidade partidária e das votações obtidas via quociente eleitoral, com o mérito da proposta contida no PLP 35/2019: “[…] a única solução possível no âmbito infraconstitucional, cuja constitucionalidade também deverá ser debatida de forma oportuna na Comissão de Constituição e Justiça, seria instituir a alternância de vagas no âmbito das cadeiras dos próprios partidos, após o cálculo do quociente partidário” (p.5). Por fim, reconhece que a solução não chega a garantir a paridade proposta pelos projetos avaliados, mas, dentro das características do sistema eleitoral brasileiro, avança nesse objetivo.

Apesar de argumentos consistentes e de estar em consonância com tendências legislativas exitosas na região, conforme indicado anteriormente, sua aprovação pela CDDM praticamente não teve repercussão no Congresso, tampouco na imprensa e na mídia em geral. Seria a proposta utópica?

Como ressalvou a deputada Margarete Coelho, não é a paridade almejada. Mas o projeto, com o substitutivo proposto, pode ser um ponto de partida, um caminho possível ao desafio de conciliar necessário e urgente crescimento numérico de mulheres nos espaços de representação proporcional com soberania partidária em sistema proporcional.

Cenários de paridade podem parecer realisticamente mais distantes no contexto atual do país, embora, como foi mostrado, muitos exemplos na América Latina indiquem que tal meta pode não ser assim tão utópica. No entanto, em se tratando de decisões políticas, se faz necessário considerar metas e possibilidades de realização, envolvendo forças, interesses compromissos e efetividade.

Nessa perspectiva, um exercício numérico básico é apresentado a seguir, com o fim de ajudar a refletir sobre o potencial do projeto votado pela CDDM, com o substitutivo proposto. Trata-se de situação hipotética. São cálculos numéricos ligeiros, aplicados aos resultados de 2018 na Câmara dos Deputados, baseados no número de cadeiras obtidas por cada partido em cada estado. São desconsiderados todos os outros fatores e variáveis, inclusive, é claro, fatores mais gerais dos contextos eleitorais. Foi considerada a hipótese de alternância de sexo entre os eleitos, seguindo a proposta aprovada, incluindo duas situações: números ímpares de eleitos e partidos que elegeram apenas 1 parlamentar no estado.

As bancadas dos 30 partidos que elegeram deputados para a Câmara dos Deputados foram incluídas. No cálculo hipotético todos os partidos que elegeram números ímpares de representantes num determinado estado “optaram” por dar a vaga indivisível aos homens (por exemplo, se 9 foram eleitos, 5 seriam homens). Ao lado disso, nos casos em que os partidos elegeram apenas um deputado em determinado estado, também preferiram “dar” a vaga a um homem. O resultado da conta, pessimista (espero) foi o seguinte: 24 partidos teriam mulheres em suas bancadas; seriam eleitas 147 deputadas, correspondendo a um total de 28,65 % da representação na Câmara dos Deputados.

Ainda que o resultado matemático esteja abaixo da média latino-americana e não alcance o índice de 30% estipulado como cota mínima, o crescimento estimado foi considerável. Em outras palavras, embora aquém do desejável, parece ser um patamar mínimo realista em cenário pessimista. Obviamente se trata de cálculo com base em resultados passados e descolados do conjunto complexo de elementos envolvidos nas eleições. Mas a breve análise, feita acima sobre o PLP-35/2019 e o exercício hipotético sugerem alguns pontos para reflexão. Apresento-os de forma sintética a seguir.

De início ressalto o aspecto “conciliador” de uma saída nesses moldes, ao tentar articular autonomia partidária, preservação do princípio de proporcionalidade da representação dos partidos, respeito à representatividade mínima dos candidatos – uma vez que se elegeriam as mais e os mais votados – e clamor por mais participação das mulheres.

Sabe-se que a CDDM não ocupa lugar central na estrutura das Comissões da Casa. Tende a operar mais como espaço catalisador dos debates e local de mediação para a construção de consensos possíveis na agenda dos direitos das mulheres. Contudo, supondo que o voto dos integrantes dos 14 partidos ao Projeto não seja irrelevante – ainda que simbólico – e que expresse algum compromisso mínimo, individual e partidário (a ver), a junção entre projetos apresentados e substitutivo incorporado pode ser um exemplo, um caso de mediação possível.

Resta, contudo, indagar se um patamar mínimo de eleitas estimado como cálculo matemático – 28,65% – chegaria a desestabilizar o “jogo” de forças no Congresso. Mais ainda, resta considerar se, para os partidos políticos, propostas que produzam diferenças para além dos “passos de tartaruga” são efetivas ou seguem como mera peça retórica. Aparentemente é percentual modesto, mas pensar sobre sua efetividade talvez nos dê uma ideia sobre o quanto podemos e não podemos caminhar.

A política democrática é feita de negociações. Sem tais negociações, como se apontou, há o risco de engessamento e/ou sua transformação em uma “Torre de Babel”: cada unidade/indivíduo defendendo seus interesses originais. Por isso, e pensando em termos de accountability da agenda da igualdade de gênero, ficam aqui algumas perguntas: pode-se considerar que a proposta votada pela CDDM também está na mesa das negociações das reformas neste momento? Ela é ou não viável? Por quê? Se sim, quais os desdobramentos? Em caso negativo, quais as alternativas, considerando as demandas e a relação de compromissos entre representantes e representados?

Reserva de vagas nos assentos dos parlamentos – casos, ganhos e riscos

Feitas as considerações acima, comentarei, a seguir, outra proposta em discussão na Comissão Especial que debate reforma política. Embora não fechada, a proposição tem como eixo articulador reserva constitucional de um percentual mínimo de cadeiras nos três níveis parlamentares proporcionais. Suas possíveis derivações em formato de Projeto de PEC vêm galvanizando debates na mídia e no Congresso. Aparentemente não há consenso em relação ao mecanismo – PEC –, em relação ao percentual mínimo a ser estabelecido, bem como ao caminho alternativo: reserva de cadeiras ou ajustes na Lei de Cotas. O tema é complexo e polêmico. No entanto, ao que parece, por diferentes razões há receptividade ao caminho proposto, ainda que com discordâncias quanto ao percentual mínimo de cadeiras. Seria caminho realista?

Como registrado, o debate foi desencadeado após instalação de Comissão Especial destinada a proferir parecer à PEC no. 125-A, de 2011. A comissão é presidida pelo deputado Luis Tibé (Avante-MG) e tem relatoria da deputada Renata Abreu (Podemos-SP).[xii] Segundo declarações da deputada, o objetivo é juntar as propostas que transitam pelo Congresso, relacionadas com sistema eleitoral e eleições, em torno de alguns eixos, sendo um deles o do “aumento da representação feminina e de grupos minoritários”.[xiii]

Nessa linha, à PEC-125-A, foram apensadas várias propostas que poderão entrar na pauta da Comissão, incluindo a PEC n.98 aprovada no Senado em 2015 e que se encontrava parada na Câmara dos Deputados desde então. O projeto teve como relator o senador Romero Jucá (MDB). Sumariamente, propõe emenda ao artigo 60 da Constituição Federal, acrescentando um artigo – de número 101 – nas disposições transitórias, para “reservar vagas para cada gênero na Câmara dos Deputados, nas Assembleias Legislativas, na Câmara Legislativa do Distrito Federal e nas Câmaras Municipais nas três legislaturas subsequentes” (à sua aprovação). Define que é “assegurado a cada gênero, masculino e feminino, percentual mínimo de representação de cadeiras da Câmara de Deputados, Assembleias Legislativas, Assembleia do Distrito Federal e Câmaras de Vereadores, nas três (3) legislaturas subsequentes à promulgação desta Emenda Constitucional “(…) e veda patamar inferior a: I – 10% das cadeiras na primeira legislatura; II – 12% das cadeiras na segunda legislatura; e III -16% das cadeiras na terceira legislatura”. Acrescenta ainda que “(…)nos casos em que esses mínimos não sejam atingidos por determinado gênero (…) as vagas necessárias serão preenchidas pelos candidatos desse gênero com a maior votação nominal individual dentre os partidos que atingiram o quociente eleitoral”.

Segundo informações não oficiais, essa PEC 98/2015, por ter sido aprovada no Senado, ou seja, ter sua admissibilidade votada, e tramitar na Câmara dos Deputados, poderia funcionar como catalisadora de possíveis iniciativas de mudanças em relação à legislação atual. Os comentários seguintes tomam como referência declarações de parlamentares na mídia, notadamente declarações da relatora da Comissão Especial, deputada Renata Abreu,[xiv] e dados e informações dos sites do Instituto IDEA[xv] e da IPU sobre essa modalidade de cotas.

Antes, vale o registro de quão alvissareiro é saber que a relatora, deputada Renata Abreu, está empenhada em viabilizar medidas para avançar em direção ao equilíbrio na presença de homens e mulheres na representação parlamentar do país. Especialmente após debates gerados por ocasião da apresentação do seu Projeto de Lei no. 4130/2019, propondo a extinção da sanção quando partidos políticos não conseguissem preencher as cotas de 30% de candidaturas por gênero. Esse projeto, e outros que tramitavam na época propondo a redução das cotas de 30%,[xvi] foi alvo de muitas críticas no Congresso, inclusive da então coordenadora da Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados, deputada Professora Dorinha, do DEM/TO (A Gazeta, 17/07/2019).

Uma justificativa apresentada por Renata Abreu por ocasião dos debates sobre seu projeto, e reiterada em declarações recentes, se refere a uma suposta injustiça contida na Lei de Cotas vigente: tirar homens que querem disputar porque os partidos não acharam mulheres para preencher o percentual mínimo de 30% (entrevista concedida à Folha de São Paulo e citada acima). Voltarei a esse aspecto mais adiante.

Em declarações à imprensa, a deputada considerou a possibilidade de uma reserva mínima de 15% de assentos parlamentares um avanço (entrevista ao Jorna Folha de São Paulo citada acima). Em artigo escrito para o Jornal Folha de São Paulo, a deputada defende esse tipo de reserva de vagas e cita outros países da América Latina como exemplos. Destaca, particularmente, os casos da Bolívia e do México. Mas será que uma reserva de vagas que considera como patamar mínimo 15% ou mesmo 20%, tal como se discute, é alternativa para o caso do Brasil?

Aproveito o “gancho” dos exemplos da Bolívia e do México para fazer algumas observações sobre o tipo de cota genericamente conhecida como reservas constitucionais de vagas de cadeiras nos assentos parlamentares. De início, destaco o que parece ser um equívoco recorrente: considerar Leis de Paridade e reservas constitucionais de vagas separadas de cadeiras nos assentos parlamentares como a mesma coisa. No México e na Bolívia, assim como em outros países da América Latina, o que existe são leis constitucionais de paridade, com definições sobre como os candidatos e os votos serão contados. Vários outros possuem Leis de Cotas com porcentagens elevadas de candidaturas por sexo (ver Quadro 1, acima). Esclarecer a natureza do que está sendo proposto é passo fundamental para o debate público.

De acordo com categorização do Instituto IDEA, atualmente só 26 países no mundo possuem reservas de vagas constitucionais de assentos nas Câmaras Baixas. Destes, segundo informações no site, apenas 6 reservam como cota mínima percentagens iguais ou menores que 15% das cadeiras. São eles: Samoa, Eswartini (antiga Suazilândia), Jordânia, Kenya Nigéria e o Marrocos. Nas Américas, os únicos dois países com esse tipo de cota são a Guiana e o Haiti; todos os outros se localizam nos continentes asiático e africano (ver países na tabela 2 anexa).

Tabela 2 – Países que possuem reserva de assentos no parlamento Nacional asseguradas constitucionalmente, 2021 (Obs. só título traduzido)

Fonte: IDEA- Institute for Democracy and Electoral Assistance. https://www.idea.int/ Acessado Em 21/05/2021

Pesquisas no site IDEA e em outras fontes de internet sobre os 26 países, permitem definir aqui, de forma muito simplificada, as seguintes características mais ou menos compartilhadas entre essas nações: i) muitas estão tentando construir suas democracias mais recentemente, e por isso, são institucionalmente frágeis; ii) na maioria, as mulheres não usufruem de direitos iguais, são perseguidas e os sistemas patriarcais seguem bem enraizados; iii) muitos possuem níveis incipientes de desenvolvimento socioeconômicos; iv) parte não se enquadra propriamente naquilo que definimos como “sistemas de democracia representativa liberal”. Neste último grupo encontramos aqueles que não se enquadram porque são claramente ditatoriais (ou senhoriais), ou porque não há eleições diretas ou ainda porque não são pluripartidários.

Como considerar o Brasil diante das características listadas acima? Em quais das situações elencadas estaria o país, a ponto de ser destacado como avanço um patamar de 15% como reserva mínima de vagas para mulheres em assentos parlamentares? A partir destas interrogações, cabe revisitar a proposta original aprovada pelo Senado no ano de 2015 – a PEC 38/2015 –, bem como sua adaptação, apresentada em torno da reserva de assentos parlamentares.

O Projeto original previa mínimo de 10%, em seguida, de 12% e, por último, de 16% de vagas nas três eleições subsequentes à aprovação da Lei. Claramente, e quanto a isto não resta dúvida, essas primeiras etapas ficaram ultrapassadas. Desde que a proposta foi aprovada no Senado houve crescimentos tímidos, mas que alcançaram esses percentuais, conforme mostrado anteriormente. O patamar mínimo de 16%, previstos para o ano 2022, foi atingido nas eleições para as Câmaras de Vereadores de 2020. Como então considerar um mínimo de 15% na Constituição avanço?

Outro argumento usado por parte dos defensores de reserva mínima de 15% é que restam ainda no Brasil mais de 900 municípios que não possuem, sequer, uma mulher na vereança. O argumento tem alguns problemas. Primeiro, é necessário olhar o peso populacional e de representação parlamentar que esse número representa na totalidade dos municípios brasileiros. Trata-se, predominantemente, de municípios com até 15.000 habitantes, o que corresponde a Câmaras de Vereadores com 9 representantes.

Segundo, e sem desconsiderar o gravíssimo problema da ausência de mulheres nos mais de 900 municípios, é importante refletir se para legislar em prol da parte que está ainda mais atrasada do que a média do país, é necessário estabelecer patamar muito baixo para os três níveis legislativos. Em outras palavras, a pergunta é: para adotar política de ação afirmativa orientada pela realidade de menos de 1/5 dos municípios brasileiros é razoável rebaixar o patamar nos outros níveis que já alcançaram esse percentual mínimo? E, ao fazê-lo, “amarrar” o mínimo através de PEC, o que pode significar legitimar constitucionalmente esse patamar? Se com o percentual de 15% a medida visa “começar por baixo”, o que em si é muito discutível, não seria o caso de se estabelecer Lei provisória e diferenciar os três níveis legislativos – Câmara de Vereadores, Assembleias Legislativas e Câmara dos Deputados – com índices minimamente dignos, em consonância com as tendências mundiais?

Há também certo temor de vários setores, incluindo parte dos movimentos sociais, da comunidade acadêmica que estuda o tema e mesmo de integrantes de instituições internacionais, que pode ser expresso na seguinte pergunta: será os 15% um patamar mínimo ou, na prática, resultará em teto? Penso que o temor tem fundamento. Como destaca a cientista política Pippa Norris, da Universidade Havard, ao discutir e explicar as dificuldades de grupos outsiders ocuparem espaços de poder, as instituições tendem a operar com a lógica inercial, no sentido de manter a estabilidade alcançada e não arriscar o conquistado.

Acrescento: instituições não são abstrações, mas resultado da ação e das práticas de indivíduos, de seus interesses e agrupamentos dos mais diversos tipos; e partidos não são espaços vazios. No caso em lume, convém refletir se a tendência à inercia que as práticas institucionais comportam, somada ao quadro histórico brasileiro de discrepante, escandalosa e recorrente “super-representação masculina”, não tenderá a transformar o patamar mínimo em patamar padrão ou mesmo patamar máximo, para todos os níveis.

Por fim, as experiências de êxito servem para nos estimular e conhecer caminhos. Muitos dos países que conseguiram grandes ganhos quantitativos na representação parlamentar os obtiveram ousando colocar metas avançadas, inicialmente como percentuais e, depois, como Lei de Paridade. Essas metas e horizontes se mostraram factíveis em diferentes tipos de sistema eleitoral e países com níveis de desenvolvimento semelhantes. Por exemplo, no México com sistema eleitoral misto, através, inicialmente de cotas de 40% e, a seguir, de lei de paridade; na Bolívia idem, na Argentina e Peru em sistemas proporcionais (Freidenberg, 2018; 2020). Outros países poderiam ser citados, mas para o momento bastam os mencionados acima.

O que esperar da Lei de Cotas vigente?

As preocupações e críticas à Lei de Cotas, tanto no que tange às dificuldades de preenchimento das vagas como em relação aos seus resultados eleitorais, marcam a trajetória brasileira ao longo dos seus 25 anos de adoção. Como pesquisadora, acompanhando essa experiência no Brasil, indiquei e critiquei, assim como o fizeram vários colegas, suas limitações, algumas “estruturais”, por assim dizer; outras por “timidez” na sua formulação.

Há, e é inegável, limitação inerente à eficácia da cota devido ao sistema eleitoral brasileiro de lista aberta de candidaturas e às suas especificidades. Como bastante comprovado, as cotas demonstram muito mais eficácia em sistemas de lista fechada com regras de alternância e previsão de sanções. Mas esta é uma parte da questão. A outra parte diz respeito aos “vícios de origem”, sucintamente elencados no início deste texto. Quanto a estes últimos, pode-se dizer que as medidas mais recentes aumentaram o potencial de eficácia das cotas no Brasil, como registrado mais acima (ver quadro 2 acima).

Apesar disso, o preenchimento dos percentuais mínimos de candidaturas segue em destaque entre os partidos, como um problema, com alguns enfatizando mais o desafio de encontrar candidatas competitivas, e não tanto de encontrar candidatas. Além disso, após 25 anos do experimento no Brasil, há desconfianças quanto ao seu potencial de “atalho”: mantido o atual sistema eleitoral de voto (listas abertas), as cotas estariam esgotadas como caminho ou haveria margem de manobra para aprimorá-las?

Aqui não é possível aprofundar a questão, mas, no atual momento, quando se discute uma reforma política e mudanças constitucionais, sugiro pontos para debates e futuras investigações. Começo pelo tópico anterior. O preenchimento de candidaturas femininas tem sido problema bastante mencionado pelos partidos políticos. Quando o tema é abordado, em geral as mulheres e sua disposição individual e cultural para concorrer surgem como O problema, como O obstáculo aos ritmos partidários, e não se questionam outros aspectos.

De saída, o imbróglio estaria nas mulheres, sem que outros aspectos costumem ser observados. Talvez seja momento de tentar verificar esse “problema” sob outra ótica: o do uso efetivo de todas as vagas de candidaturas proporcionais que a Lei faculta aos partidos, sejam estas em situação de coligação ou não (neste momento a Lei não admite coligação proporcional). Como é sabido, concomitante à adoção das cotas, a quantidade de candidaturas a que cada partido tinha direito também foi ampliada. Antes, as siglas podiam lançar até 100% do total das cadeiras em disputa. A seguir, com as cotas, as vagas de candidaturas foram ampliadas, inicialmente para 120% e, depois, para 150% (por exemplo, se um estado tem direito a 10 deputados federais, cada partido pode lançar até 15 candidatos). No caso de coligações, a lista poderia conter até 200% de nomes. No cenário político-partidário brasileiro, uma pergunta que pode contribuir com o debate é a seguinte: será que os partidos vêm usando a totalidade das vagas, sejam elas para homens ou para mulheres?

Jairo Nicolau (2006), discutindo problemas da lista aberta, registrou essa dificuldade e assinalou que nenhum partido havia preenchido a totalidade das vagas no país nas três últimas eleições por ele analisadas.[xvii] Em levantamento amostral não sistemático, com dados de alguns estados, inclusive do Rio de Janeiro, para candidaturas à Câmara dos Deputados em 2008 foi constatado que os totais de vagas não foram preenchidos na maior parte dos partidos, em ambas as situações: quando os partidos concorriam sem coligação e quando concorriam em coligação. [xviii] Em discussão recente sobre tal hipótese com integram do Fórum Fluminense Mais Mulheres na Política, foi observado que o problema poderia ser ainda mais amplo, com a proibição das coligações proporcionais.

Uma conclusão do debate foi a urgência de investigar se as mulheres de fato seriam as “responsáveis” pela “exclusão” dos homens das listas de candidaturas. A pergunta síntese pode ser a seguinte: seriam de fato as cotas de 30% o ponto limitador de mais candidaturas de homens, ou haveria mais “oferta” do que “demanda” no mercado eleitoral como um todo?

Na hipótese de o padrão ser homens deixarem de se candidatar porque não se tem encontrado mulheres em número suficiente para preencher a cota mínima, vale retomar a memória dos debates iniciais e do princípio que motivou a estratégia de cotas de gênero para eleições parlamentares. Em linhas gerais, pode-se dizer que a adoção das cotas em países com diversos tipos de sistema político e de listas eleitorais foi motivada por duas razões: a exclusão histórica das mulheres dos espaços de representação parlamentar; e os obstáculos subsequentes e recorrentes por elas enfrentados para competir e fazer política institucional em igualdade de condições com os homens.

Esses fatos consolidaram e, de certo modo, institucionalizaram, padrões de desequilíbrio profundo na presença por gênero nas instâncias decisórias da política representativa, resultando em déficit democrático considerável. Com efeito, muitas experiências internacionais mostraram que essa “substituição” (de alguns por algumas) necessitou ocorrer para que mulheres pudessem entrar em tais espaços.

Mas é possível também colocar o problema em outros termos. Os homens são “super-representados” na política e as mulheres “sub-representadas”, notadamente quando isto envolve limites numéricos à representação parlamentar. Ao mesmo tempo, permanecem desigualdades na vida pública e privada que terminam dando vantagens aos primeiros. Diante disso, em observância aos princípios democráticos que norteiam as instituições políticas, não há que se fazer justiça a esse afastamento compulsório por longo tempo? Não se “solicita” legalmente que os homens “cedam” lugares na política às mulheres? Ou ainda se acredita, de fato, que mulheres não querem participar da vida pública e tomar decisões sobre o que afeta suas vidas e a sociedade em geral?

Comentários finais

Diante do quadro atual de muitas incertezas, interrogações e pouco tempo para o debate, restam as observações finais desta incursão ao tema.

Primeiro, quando, há mais de duas décadas, se aprovou a Lei de Cotas estipulando um mínimo de candidaturas de 30%, vários países adotavam esse percentual mínimo. Muitos deles avançaram ou para mínimos de 40% ou para a paridade. A origem do percentual de 30%, vale lembrar, se baseou em estudos e evidências sobre o mínimo suficiente de presença para que mulheres tivessem condições básicas de exercer seus mandatos e influenciar, via presença em comissões, mesas diretivas ou no ato de debater e legislar sobre projetos.[xix] Do contrário ficariam poucas abnegadas tentando alcançar espaços sem as condições mínimas para fazê-lo. Machismo e interesses partidários se mesclam recorrentemente. O episódio ocorrido no início da CPI da COVID envolvendo senadoras e senadores está fresco na memória, apenas para citar o mais recente e que veio a público.

Segundo, no contexto de escassez de tempo para debates amplos, legislações que se tornem constitucionais necessitam de cautela na sua efetivação. Trata-se de inscrever na Constituição índices numéricos, que tanto podem funcionar como metas estimulantes, quanto como “freios”.

Terceiro, em qualquer alternativa ou contexto, um ponto de partida razoável, e capaz de unificar amplos setores políticos e sociais, suponho, é o de refutar o discurso de que as mulheres não estão na política porque não querem e não se interessam; por consequência, o melhor é deixá-las “no seu canto” e permitir que os homens “façam seu trabalho” na política. Discurso que não tem base na realidade contemporânea, nos estudos e investigações e nas experiências políticas mundo afora. Nossas vizinhas latino-americanas estão aí para comprovar.

*Clara Araújo é professora do Instituto de Ciências Sociais da UERJ.

Notas

[i]https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-05/mulheres-sao-mais-votadas-no-chile-mas-lei-obriga-ceder-lugares. Publicado em 18/05/2021. Acesso em 20/05/2021.

[ii] Câmaras dos Deputados ou Parlamentos Unicamerais. Interparliamentary Union – Women in Parliament. https://www.ipu.org. Dado relativo a 30 de abril de 2021. Acesso em 19/05/2021.

[iii] Além das estatísticas produzidas pela IPU (nota anterior) e o IDEA, ver, por exemplo Projeto ATENEA -por uma democracia 50/50- Mecanismos para acelerar a participação política das mulheres na América Latina e no Caribe”, Brasil: onde está o compromisso com as mulheres? ONU Mulheres, Brasília, 2020. Disponível em https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2020/09/ATENEA_Brasil_FINAL23Sep.pdf. Acesso em 12/03/2021; e “Gender and elections”, ACE – The Electoral Knowledge Network, https://aceproject.org/ace-en/topics/ge/ Acesso em 12/03/2012.

[iv] Em 2015 foi interposto recurso junto ao TSE para julgar fraudes no preenchimento de vagas nas cotas de gênero em município do Piauí.

[v] A ADI foi ajuizada pela Procuradoria Geral da República/PGR e teve como Amici Curiae a ABRADEP- Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político e a ONG feminista CEPIA- Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação.

[vi] A consulta feita ao TSE foi assinada por 14 deputadas e senadoras de 6 partidos: PCdoB, PT, PMDB, PR, PSB e PSD.

[vii] Dois argumentos tendem a nortear tais propostas: a) mulheres não se interessam tanto por política quanto os homens, e sua presença reflete exatamente isso; b) não se deve intervir na livre disposição de quem quer ou não ingressar na política, pois a decisão é de fórum íntimo e privado.

[viii] A declaração de voto da deputada pode ser acessada nos registros da Comissão. Constitui peça primorosa sobre ideias que ainda vigoram a respeito da participação política das mulheres.

[ix] Relatório do Projeto de Lei Projeto de Lei Complementar nº 35, de 2019; Apensado: PLP nº 109/2019-Relatoria -Margarete Coelho. Substitutivo adotado pela Comissão de Defesa dos Direitos da

Mulher ao Projeto de Lei complementar nº 35, de 2019 – (Apensado: PLP 109/2019). Aprovados em 29 de abril de 2021 na CDDM. Accessível através do portal da Câmara dos Deputado. shttps://www.camara.leg.br

[x] Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres.

[xi] No caso do desenho do sistema eleitoral brasileiro, a proporcionalidade é baseada nos votos de candidatos e no quociente eleitoral alcançado por cada partido em cada estado. A distribuição das 513 cadeiras da Câmara dos Deputados se baseia no número de habitantes de cada estado, com base em contagem do IBGE. Desse modo, sob a ótica exclusiva do sistema eleitoral e partidário vigentes, o ponto nevrálgico tende a envolver três aspectos: um relativo às disputas entre os partidos pelas vagas a que o estado tem direito; outro entre os candidatos de cada partido, que disputam entre si as vagas que poderão ser obtidas pela sigla; e o terceiro a compatibilidade entre as normas derivadas das leis de ação afirmativa estabelecidas e as duas regras anteriores, em cenários nos quais muitos interesses já estão estabelecidos (e costuma ter homens como seus representantes).

[xii] O objetivo formal da comissão (análise da PEC 125-A) é apenas um recurso procedimental para que os parlamentares possam discutir o que estão chamando de reforma política.

[xiii] “Não há clima para a volta das doações empresariais de campanhas”. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/nao-ha-clima-para-a-volta-das-doacoes-empresariais-de-campanha-diz-relatora-da-reforma-politica.shtml. Acesso 18/05/2021.

[xiv] Ver entre outras referências, entrevista ao site Poder 360, programa “Poder Entrevista”, podcast dia 13 de maio de 2021 (https://www.poder360.com.br/congresso/podcast-poder-entrevista-com-a-relatora-da-reforma-politica-renata-abreu/); entrevista ao Jornal Folha de São Paulo em 17/05/2021 e artigo de opinião publicado no Jornal Folha de São Paulo em 15/05/2021. Embora outros parlamentares venham se manifestando publicamente, como, por exemplo, a Senadora Liziane Gama (Cidadania-MA) e o Deputado Zaratinni (PT-SP) -, além de declarações da própria relatora, no Jornal “Valor” edição dos dias17, 18 e 19 de maio de 2021.

[xv] Institute for Democracy and Electoral Assistance, tem o principal site mundial de mapeamento de experiências de cotas de gênero nos parlamentos. Na página, podem ser acessados todos os países, alguns detalhes sobre as leis, ano de promulgação, porcentagens, entre outras informações. https://www.idea.int/data-tools/data/gender-quotas. Acesso em 17/05/2021.

[xvi] Como a esboçada pelo deputado José Nelto, do Podemos-GO, também propondo a redução de 30% para 10% das cotas mínimas de candidaturas (Gazeta 17/07/2019).

[xvii] NICOLAU, Jairo, “O sistema eleitoral de lista aberta no Brasil”, DADOS, v.49, pp.689-720, 2006.

[xviii] ARAUJO, Clara. “Gênero e o acesso ao poder legislativo no Brasil”, Revista Brasileira de Ciência Política, n.2, pp. 23-59,2009.

[xix] Entre os quais os mais destacados foram os de Drude Daherup, que participou, como convidada, de uma das mesas do Seminário “Participação Política das Mulheres e Cotas no Brasil”, promovido pela ONU Mulheres e pelo Núcleo Flora Tristán/IPOL/UNB, com apoio do Jornal Folha de São Paulo, entre os dias 22 e 25 de março de 2021. Ver, por exemplo, DAHlERUP, D. “From a Small to a Large Minority: Women in Scandinavian Politics”, ScandinavianPolitical Studies, 11,v. 4, pp.275-98,1988; ”Women, Quotas and Politics, (Ed): London, Routledge,2006.

ANEXO


Quadro 1 – América Latina: Leis de Cotas e Paridade em vigência em 2018*

Fonte: PISCOPO, Jenifer, 2015, copiado de FREIDENBERG, Flávia y CAMINNOTI, Mariana “Reformas electorales inclusivas en América Latina y retos para la igualdad real de las mujeres en la política”, in, Fredenberg et al,Op.Cit., 2018. * Dado não constante no quadro de Psicopo (2018), alterado por Araújo com base em informações sobre a Lei vigente;**Honduras se aplica aos partidos que não usam primarias.
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