Multilateralismo mutilado

Imagem: Fidan Nazim qizi
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Por GILBERTO MARINGONI*

A nova realidade não cabe nas estruturas impostas pela potência hegemônica há oito décadas

O mundo caminha para a multilateralidade, mas as organizações multilaterais estão em crise. Longe de um jogo de palavras, essa é a constatação essencial que se pode fazer a partir da perda de efetividade do Conselho de Segurança da ONU, da falta de consequências práticas de decisões do G-20, de impasses surgidos em reuniões de organismos voltados para meio ambiente, comércio internacional e direitos humanos, em meio ao acirramento da disputa Ocidente-Oriente.

Ao mesmo tempo, há uma crescente disputa política em blocos de interesses específicos, como o G-7, a OTAN, o BRICS e a Liga Árabe, entre outros. Se nos fixarmos apenas no BRICS, dos quatro membros iniciais presentes em sua fundação em 2009 – Brasil, Índia, Rússia e China –, somaram-se mais 19 até a cúpula de Kazan, em outubro último. A OTAN contempla 32 países, liderados pelos EUA, a Liga Árabe 22 e o G-7 segue como o principal fórum dos países mais ricos do Ocidente, aos quais se agrega o Japão. Não se trata de comparar atividades do sistema ONU com outros arranjos internacionais, mas de perceber que o multilateralismo enfrenta tensões e insuficiências sérias no mundo pós-crise de 2008.

Ausência de líderes

Duas das maiores expressões de turbulências enfrentadas por instituições multilaterais aconteceram no segundo semestre de 2023. A 78ª. Assembleia Geral da ONU se destacou pela ausência dos líderes de quatro dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança. Xi Jinping, da China, Emmanuel Macron, da França, e Rishi Sunak, da Inglaterra, alegaram problemas de agenda. Vladimir Putin, por sua vez, tinha contra si um mandato de captura, emitido pelo Tribunal Penal Internacional.

Embora não integre a mais alta instância da Organização, o indiano Narendra Modi tampouco deu as caras. À exceção de Joe Biden, todos enviaram representantes. Dois meses depois, na 18ª. Cúpula do G-20, em Nova Delhi, faltaram Xi Jinping, Vladimir Putin e Lopez Obrador, substituídos por auxiliares. Em 2024, novamente os presidentes da China e da Rússia não compareceram à Assembleia Geral.

A não participação de líderes em eventos relevantes não afeta o funcionamento da ONU, embora evidenciem algum descrédito da instituição. Muito mais grave tem sido o reiterado descumprimento de resoluções aprovadas em suas instâncias. Vamos nos fixar num exemplo, o genocídio na Faixa de Gaza, a partir de 7 de outubro de 2023. Desde então, o Conselho de Segurança aprovou quatro resoluções exigindo pausa humanitária, trégua ou cessar-fogo. Tel-Aviv não acatou nenhuma e seus representantes acusaram a Organização de “antissemita”, pregaram seu fechamento e declararam o secretário-geral Antonio Guterres “persona non grata em Israel”.

A difícil concertação global

A constelação de organismos multilaterais que enfeixem todos os países independentes é fenômeno recente na história. A primeira tentativa de colocar distintos interesses em torno de uma mesa se deu em 1919, no final da Primeira Guerra Mundial, com a Sociedade das Nações, que chegou a associar 58 membros. Era basicamente uma proposta dos Estados Unidos, liderada por Woodrow Wilson, que não convenceu o Senado de seu país da importância da iniciativa. Com a potência em ascensão de fora, o bloco teve atuação limitada, até sua extinção, em 1946.

A tentativa seguinte de se organizar e disciplinar o sistema interestatal teve também os EUA como principal formulador e patrocinador. Foi desenhado a partir das três conferências de cúpula protagonizadas por Franklin D. Roosevelt (EUA), Winston Churchill (Grá-Bretanha) e Joseph Stálin (URSS), entre 1943-45, quando já se vislumbrava a vitória aliada sobre o nazi-fascismo, na Segunda Guerra Mundial. Franklin D. Roosevelt reestruturara internamente o papel do Estado na economia após a crise de 1929, através do new deal, e preparava-se para traçar a ação imperial de seu país no plano externo.

O pesquisador britânico Peter Gowan escreveu que a administração democrata tinha duas tarefas a cumprir na criação da ONU: “Uma seria voltada para a política popular de massa, tanto dentro dos EUA quanto internacionalmente. Seria uma face ética inspiradora, oferecendo a promessa de um mundo melhor. Simultaneamente, a face interna da organização poderia ser moldada (…) como uma estrutura para a política de poder” da potência hegemônica.

O Departamento de Estado tivera de resolver uma questão intrincada, que inviabilizara a Liga das Nações: como agrupar sob as mesmas regras grandes potências e Estados da periferia com peso diminuto na arena global? Ou seja, como atualizar as regras da hierarquia entre países e o equilíbrio de poderes, base do sistema mundial definido a partir da criação do sistema interestatal, em 1648, nas negociações da Paz de Vestfália, que selou o fim da Guerra dos Trinta Anos?

ONU sob controle dos EUA

Para ter legitimidade, o projeto da ONU deveria combinar, a um só tempo, as complexas arquiteturas políticas da igualdade e da hierarquia. A solução foi estabelecer uma assembleia-geral, na qual cada Estado teria um voto, independentemente de sua importância relativa, e uma espécie de diretório restrito, integrado por cinco membros que compuseram as forças aliadas no conflito recém findo.

O acordo sobre a estrutura básica foi selado na conferência de Dumbarton Oaks, no segundo semestre de 1944, nos arredores de Washington, entre representantes da URSS, China, Grã-Bretanha, França e EUA, que se tornariam membros permanentes da instância batizada como Conselho de Segurança. Como método de garantir o cumprimento do que fosse decidido, todas as votações deveriam ser unânimes. Bastaria assim um voto contrário para que qualquer resolução fosse vetada.

Os Estados Unidos nunca pensaram a ONU como um governo mundial, mas como um organismo sob seu total controle. A proeminência estadunidense na nova entidade representava a outra face dos resultados da conferência de Bretton Woods – que validara semanas antes a nova arquitetura do sistema financeiro internacional. Ali, o dólar foi imposto como moeda global, da mesma forma como o Conselho de Segurança foi criado através da força. Embora constituída como mecanismo multipolar, a ONU foi concebida para o exercício da unipolaridade americana. Daí por diante, quando esta foi colocada em xeque, o organismo enfrentou crises.

A Carta da ONU foi assinada por 49 países independentes em 26 de junho de 1945, em meio a pompa e festa. Quase toda a África e parte da Ásia e do Oriente Médio eram constituídos por colônias, protetorados ou mandatos de países europeus. Com imperfeições e desequilíbrios, representou um avanço civilizatório notável. Ao longo da Guerra Fria (1947-91), as Nações Unidas representaram obstáculos para inúmeras ações imperiais dos Estados Unidos e de outras potências ao redor do mundo.

Potências desrespeitam regras

A criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em 1949, representa a primeira manifestação concreta das limitações da ONU para Washington. O império criava ali uma aliança que abertamente negava sua pregação multipolar em nome do combate a um inimigo comum. Seis anos depois, a URSS articularia o Pacto de Varsóvia. Violações às regras da Carta aconteceram seguidas vezes. A esse respeito, o historiador britânico Perry Anderson escreveu: “A ocupação israelense da Cisjordânia durou meio século sem que o Conselho de Segurança levantasse um dedo. Quando os EUA e seus aliados não conseguiram garantir uma resolução autorizando-os a atacar a Iugoslávia em 1998-99, valeram-se da OTAN em vez disso, em violação patente da Carta da ONU. (…) Quatro anos depois, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha lançaram seu ataque ao Iraque, contornando o Conselho de Segurança”.

Passada a Guerra Fria e com a ausência de qualquer competidor global, o unilateralismo de Washington desmoralizava o arranjo multilateral do pós-Guerra. A soberania de Estados não alinhados a Washington se tornava peça de ficção e o chamado direito internacional se subordinava à lei do mais forte.

Em maio de 2020, descontente com os rumos que a Organização Mundial de Saúde tomava no combate à pandemia de covid-19, Donald Trump anunciou a saída de seu país do organismo do qual era o maior contribuinte. A Corte Internacional de Justiça, criada em 1945 para dirimir diferenças entre países, não conta com a participação dos EUA, China, Rússia e Israel.

A frágil ordem mundial

Em maio de 2024, centenas de entidades lançaram uma carta pública apelando aos Estados-membros para que regularizassem suas contribuições à ONU, o que gera redução de atividades de diversos órgãos, em especial aqueles voltados para a defesa de populações vulneráveis em regiões de conflitos. Na ocasião, quase metade dos países-membros estavam com seus pagamentos atrasados. Neste mês de dezembro, a entidade tornou pública a necessidade de um aporte adicional de US$ 40 bilhões para atender demandas humanitárias em vários países.

Para José Luís Fiori, professor de economia política internacional da UFRJ, a ordem mundial do segundo pós-Guerra começou a ruir no início dos anos 1970, “quando os EUA abandonaram os acordos de Bretton Woods e se descomprometeram, unilateralmente, com relação à paridade entre o dólar e o ouro, definida por eles mesmos em 1944”. Em suas palavras, uma segunda etapa dessa ordem (1992-2008) foi sustentada pelo poder unipolar dos EUA. A partir da vitória na Guerra Fria e na Guerra do Golfo (1991-92), “os EUA se reservaram desde o início o direito unilateral de fazer ‘guerras humanitárias’, e de declarar e atacar o ‘terrorismo’ em qualquer lugar do mundo, segundo seu exclusivo arbítrio, e já sem nenhuma preocupação com as Nações Unidas e seu Conselho de Segurança, que foram sucateados literalmente em 1999”, escreve ele. No plano econômico-financeiro, trata-se da ordem neoliberal, sacramentada no Consenso de Washington (1989) e imposta por meio de força e chantagem à periferia.

Uma terceira fase se abriu a partir da crise de 2008, que radicalizou a aplicação das medidas de desregulamentação, privatizações e ajustes fiscais eternos como novo consenso ocidental. Ela coincide com os anos da vigorosa entrada chinesa como competidor global dos EUA, na recuperação da economia russa, no peso inédito adquirido pela Índia e na disseminação, nos anos mais recentes, de guerras localizadas de repercussão global.

São tempos de acelerada perda da influência política da Europa, do avanço generalizado de correntes de extrema direita e neofascistas e de fortes deslocamentos populacionais. A crise ambiental tornou-se fator decisivo nas relações entre países, bem como a acelerada desindustrialização da América Latina, o descarte de projetos nacionais em importantes países da periferia e o agravamento das disparidades de renda e riqueza.

Estrutura congelada

As possibilidades do sistema ONU se mostram defasadas nesse admirável mundo novo. Suas dezenas de órgãos, comissões, câmaras de controvérsias, instituições financeiras etc., ainda têm sua mais importante instância de poder congelada num desenho de oito décadas atrás.

O presidente Lula tem enfatizado, em fóruns internacionais, a necessidade de repactuação da “governança global” através da revisão da Carta, considerando que apenas 51 dos atuais 193 membros das Nações Unidas participaram de sua fundação.

As tensões atuais evidenciam que a ordem mundial está batendo lata, como se diz pelas ruas, mas não há perspectiva do caminho a ser trilhado. O chamado direito internacional, como sempre, se define pelo velho adágio de quem tem mais força leva. Lamentavelmente, uma nova concertação planetária não virá apenas na base da boa conversa.

*Gilberto Maringoni é jornalista, professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC).

Versão ampliada de artigo publicado na edição 1343, de final de ano, da revista Carta Capital.


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