Música final

Mona Hatoum
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Por JORGE COLI*

Introdução ao livro recém-lançado, uma reunião de textos de Mário de Andrade comentados por Jorge Coli

De 1943 até a sua morte, em 1945, Mário de Andrade assumiu a redação de uma coluna semanal na Folha da Manhã consagrada à música e intitulada “Mundo musical”. O conjunto de artigos revelou-se de primeira importância, veiculando as principais reflexões sobre a música do modo como, naquele momento, se configuravam para o autor.

“Mundo musical constitui-se de textos “soltos” sobre diferentes questões estritamente musicais. Mas incorpora também, intercaladamente, algumas sequências concebidas dentro de projetos autônomos, independentes de outros artigos.

Um pensamento sem hierarquia

“Olhe, Guilherme: nunca escreva crônica pra jornal, pra revista. Escreva sempre pensando que é livro.”

Este trecho foi formulado por Mário de Andrade numa carta de 1942 a Guilherme Figueiredo, que o transcreveu na palestra “O Villa-Lobos Que Eu Vi e Ouvi”. Ele não apenas confere a Mundo Musical sua verdadeira importância. Ele revela também o quanto o pensamento de Mário de Andrade se dá num vivido em que a natureza dos meios nos quais se expressa não estabelece hierarquia.

Esse pensamento se fez numa trajetória entretecida com reações imediatas, com leituras circunstanciais muito numerosas, mas também irregulares, com preocupações constantemente retomadas, muito mais do que com conceitos. Ele se manifesta no escrito jornalístico, no ensaio, no estudo erudito e aprofundado e, por vezes, no esforço – malogrado, é forçoso que se diga – em atingir uma estrutura teórica mais abstrata. O debate trazido pelo rodapé “Esquerzo”, que revelamos em todos os seus elementos, tem como pano de fundo a estreiteza de uma incapacidade teórica.

Emergência do nacionalismo

Mas é preciso acompanhar um pouco a trajetória. Nos primeiros tempos foi a formação no conservatório e, logo, seu trabalho ali como professor. O discurso sobre a música se inicia com o jornalismo: críticas a concertos, a óperas, desde 1915. Surge, em 1921, a conferência “Debussy e o Impressionismo”, reflexão de grande alcance, espantosa pela sua precocidade. Mas o primeiro marco decisivo é, em 1928, o Ensaio sobre a Música Brasileira.

Manifesto-programa, nascido na mesma época de Macunaíma, ele representa um testemunho capital da inflexão definitivamente nacionalista tomada por nossa modernidade. Como tornar “verdadeiramente” brasileiras as composições de nossos músicos? Mário de Andrade não quer um tropicalismo de pacotilha; quer a consolidação de um “espírito de raça”, de um inconsciente artístico intersubjetivo, coletivo. Seiva brasílica, episteme de nossas criações, Volksgeist determinante da criação.

As obras devem inserir-se na bela continuidade nacional, que emergia historicamente pouco a pouco, embora sem conhecimento de si. Observemos, portanto, a dupla postura: uma contemporânea, que manda ser nacional; outra histórica, projetando no passado a consciência nacional obtida no presente. Essa consciência possui um método curioso.

As formas internacionais da arte são produto de um saber perfeitamente dominado. Enxertadas no meio brasileiro ainda incipiente, insuficiente, elas tornam-se irregulares, pois a plena maestria dos processos se perdeu. Como, de todos os modos, elas acabam sendo produzidas, é preciso contar com as falhas e os paliativos dos processos em exílio.

Então, a consciência encontra o “ruim gostoso” nesses defeitos peculiares. São sintomas psíquicos, éticos, sociais da brasilidade impaciente por se manifestar, que a nova consciência nacionalista descobre a posteriori.

Carlos Gomes, cuja importância emblemática descobriremos, é objeto de uma análise que demonstra como seu “ser” traduz, apesar de si, uma diferença: “O “Guarani”, anterior de quasi 20 anos ao “Escravo” e bem inferior a este como caracterização [nacional]. Porém o tema rítmico de Peri já traz pra ópera uma estranheza bem expressiva. Poderão objetar que estranheza não implica racialidade a todos esses ritmos e melodias… Mas si Carlos Gomes não tirou da música italiana em que se formara integralmente, donde que a tirou sinão de si mesmo? E este “si mesmo” quando não agia manejado pela italianidade da cultura dele, quem sabe si era manejado pela Conchinchina!”

Esse passo encontra-se no Compêndio de História da Música.O livro se refundiria em 1942 na Pequena História da Música,no qual a parte referente a Carlos Gomes se viu bastante reduzida, certamente desproporcional ao restante. Mostra muito bem como a substância do coletivo impõe-se: afora os acidentes individuais, tem-se, no passado, uma “quididade” nacional, surgindo como podia entre perturbações internacionais presentes no “ser” do artista.

Ora, a consciência daquele processo histórico obriga o criador contemporâneo a assumi-lo para reforçá-lo.

Nessa tarefa, deve submeter-se a ele, abdicando mesmo da sua afirmação individual. Horror ao gênio – esse traço sacrifical da personalidade de Mário de Andrade se estende a todos os artistas na fase histórica em que a brasilidade necessita ser construída. Os titãs individuais deveriam surgir depois desse trabalho feito – agora, eles apenas o atrapalhariam nacional e coletivamente com suas bizarrices individuais. Por isso Gallet interessa mais do que Villa-Lobos.

Naturalmente, trata-se de um período transitório. Em 1939, no artigo “Evolução Social da Música no Brasil”, vem traçado o que foi e o que será: “É certo que esta Fase nacionalista não será ainda a última da evolução social da nossa música. Nós ainda estamos percorrendo um período voluntarioso, conscientemente pesquisador. Mais pesquisador que criador. O compositor brasileiro da atualidade é um sacrificado, e isso ainda aumenta o valor dramático empolgante do período que atravessamos. O compositor, diante da obra a construir, ainda não é um ser livre, ainda não é um ser “estético”, esquecido em consciência de seus deveres e obrigações. Ele tem uma tarefa a realizar, um destino prefixado a cumprir, e se serve obrigatoriamente e não já livre e espontaneamente, de elementos que o levem ao cumprimento do seu desígnio pragmático. Não. Se me parece incontestável que a música brasileira atravessa uma adolescência brilhantíssima, uma das mais belas, senão a mais bela da América, se é lícito verificar que há um compositor brasileiro que se coloca atualmente entre as figuras mais importantes da música universal contemporânea; se nos conforta socialmente a consciência sadia, a virilidade de pensamento que leva os principais compositores nossos a esta luta fecunda mas sacrificial pela nacionalização da nossa música, não é menos certo que a música brasileira não pode indefinidamente se conservar no período de pragmatismo em que está. Se de primeiro foi universal, dissolvida em religião; se foi internacionalista um tempo com a descoberta da profanidade, o desenvolvimento da técnica e a riqueza agrícola; se está agora na fase nacionalista pela aquisição de uma consciência de si mesma: ela terá que se elevar ainda à fase que chamarei de Cultural, livremente estética, e sempre se entendendo que não poderá haver cultura que não reflita as realidades profundas da terra em que se realiza. E então a nossa música será, não mais nacionalista, mas simplesmente nacional, no sentido em que são nacionais um gigante como Monteverdi e um molusco como Leoncavallo”.

Psicofisiologia e semântica musicais

Os laços entre o individual e o coletivo (o “social”) passaram até agora pela questão do nacionalismo. Mas há outra preocupação recorrente nos escritos de Mário de Andrade sobre a música. Ela também se vincula ao “ser social” do artista. Ela conduzirá esse ser pelos caminhos ásperos do empenho político.

Como perceber a música na relação que ela mantém com o ouvinte? Quais os seus poderes e como agem? Qual sua extensão, qual sua natureza? Qual o “sentido” dos sons, de que modo se mesclam com a palavra? Como se caracteriza a reação de quem se expõe a ela? Qual a parte do “físico”, qual a parte do “cultural”?

Estamos gravitando em volta de um núcleo, na realidade nunca atingido, mas que se poderia chamar de “estética da percepção”. Ele se incorpora a uma antiga e ilustre cadeia do pensamento musical, presente desde a Antiguidade, mas, é verdade, bastante ocultada pela vertente formalista de Hanslick até os nossos dias. Mário de Andrade se inspira em Plutarco, mas ainda em Combarieu e Riemann. Estes últimos tentaram uma sistematização sólida daquelas questões; mantiveram a antiga tradição diante da vitória cada vez maior do formalismo, capaz de perceber a música apenas como intrínseca e pura construção.

O interesse dirigido por Mário de Andrade aos problemas da semântica musical não é somente derivado de suas leituras. Há algo de mais profundo. As experiências pessoais, por ele observadas em si próprio, a facilidade com que a análise brota, apoiada em tantos exemplos que a percepção selecionou ao curso de uma vida, revelam o pensamento que se enriquece com a leitura dos teóricos, mas que, de alguma forma, existe sem eles.

Tal abordagem possui muito também do antropólogo. É inútil lembrarmos essa vocação fundamental em Mário de Andrade. Um dos comentários de Mundo Musical, à frente, revelará quais afinidades são justamente possíveis entre a “Ouverture” de Le cru et le cuit e o modo de pensar perseguido por Mário de Andrade. Modo de pensar do qual se originaram algumas de suas mais brilhantes análises.

No momento da mais forte preocupação nacionalista – Macunaíma, Ensaio sobre a Música Brasileira –, o escrito “Crítica do Gregoriano”, de 1926, hoje publicado em Música, Doce Música, mostrava o emprego analítico de alguns desses princípios. O programa nacionalista, entretanto, era mais forte.

Essa “estética da percepção”, ou pelo menos alguns aspectos que de uma forma ou de outra a pressupõem, mostra-se mais presente a partir dos anos 1930. O primeiro impulso do projeto nacional já fora dado; ele entrava, por assim dizer, em velocidade de cruzeiro. Aflorava, no entanto, outra consciência: a da responsabilidade social. No modo de pensar de Mário de Andrade, esta última repousa sobre as questões vinculadas à relação entre música e ouvinte.

As funções sociopsicológicas da música encontram seu lugar de mais clara expressão em “Terapêutica Musical”, de 1937, a primeira parte do díptico encerrado em Namoros com a Medicina. Ali, a música é definida, antes de tudo, como a arte por excelência dos princípios “dinamogênicos e cenestésicos”. Disso provém sua força coletivizadora.

Numa nota manuscrita de seu exemplar de trabalho do Compêndio de História da Música – nota para a qual só é possível uma data post quem:

1928 – encontramos traçados os lineamentos dessas questões: “A música, por causa de seu fortíssimo poder dinâmico sobre o corpo, conseguindo ritmar um agrupamento humano como nenhuma arte consegue tanto, é de todas as artes a mais capaz de socializar os homens, de fundi-los numa unanimidade, num organismo só. Isso se manifesta principalmente nas civilizações primárias em que, por assim dizer, o corpo importa mais do que a livre manifestação espiritual. A força profunda de socialização, de organização de conjunto que a música tem, lhe deu porisso uma significação toda especial entre os homens de civilização primária. Porisso é muito frequente entre estes atribuir à música uma origem divina ou sobrenatural”.

“Terapêutica Musical” nos contará que a música tem uma autoridade irremissível sobre o ouvinte. O ritmo é um poderoso organizador, do qual é impossível escapar: não somos capazes de organizar uma rítmica “corpórea” diferente da que estamos ouvindo. Envolvendo, subjugando, o ritmo é hipnótico. Ele anula a racionalidade, a consciência. Por isso é constante nas cerimônias mágicas: é o caminho do transe, da encantação.

Um dos princípios primordiais da música é esse poder de submeter o espírito, eliminando as capacidades racionais. “Terapêutica Musical” narra uma cerimônia ritual assistida por seu autor: “Eu fora ver as danças iniciais do maracatu do Lião Coroado. O pessoal, composto quase exclusivamente de negros e negras velhas, já estava na porta da rua dançando as cerimônias da, não sei se diga, adoração da Calunga, a boneca que passava de mão dos dançarinos. Dum lado, um tirador de cantigas, acompanhado de dois coristas, era o ponto de conexão dos instrumentos numerosos, que formavam uma roda duns quatro metros de diâmetro, dentro da qual os dançarinos estavam. Eram só instrumentos de percussão, bombos, gonguês, ganzás violentíssimos, num bate-bate tão possante que me era absolutamente impossível escutar qualquer som dos cantores. Interessadíssimo em minhas paixões folclóricas, eu me introduzira indiscretamente na roda, para ver se grafava a linha das melodias. Mas mesmo com o ouvido quase na boca dos cantadores, não escutava nada ante a barulheira rítmica. Desisti da melodia e me apliquei apenas a registrar os ritmos dos diversos instrumentos que, num binário bem fixo, formavam uma polirritmia duma riqueza admirável. Estava esquecido de mim, nesse trabalho de escrever, quando senti um mal-estar doloroso, a respiração apressa, o sangue batendo na cabeça como um martelo, e uma tontura tão forte que vacilei. Senti a respiração faltar, e cairia fatalmente se não me retirasse afobado daquele círculo de inferno. Fugi para longe, necessitado de reorganizar em sua pacífica fragilidade, meu pobre corpo de leitor infatigável. Mas os negros, as magras negras velhas lá ficavam com suas danças macias, lá ficariam horas, lá ficariam a noite inteira junto daquele estrondo, cada vez menos leitores, cada vez mais corpóreos”.

Há uma compensação, no entanto, para esses poderes do ritmo. Se eles dominam, se reduzem o ser à passividade, são completados pela harmonia e melodia, que provocam uma resposta ativa. Evidentemente, essa resposta não possui uma natureza discursiva, argumentativa: encontramo-nos no domínio das sugestões, das emoções, das sensações, das reações intuitivas, instintivas, de vagas determinações. Desses pontos derivam algumas das análises mais importantes de Mário de Andrade, e, em “Músicas Políticas”, de Mundo Musical, ele cria a noção de “dinamismo do som”, para não reduzir a dinâmica apenas ao ritmo. A música, portanto, pelo ritmo, “ordena” o ouvinte, torna-o passivo, mas, pela melodia e harmonia, cria uma disponibilidade do espírito que o induz a uma resposta.

Não é tudo. O pensamento de Mário de Andrade termina por excluir a possibilidade de se perceber o som numa “pureza” significante. De início, porque a cultura, na sua história, se encarrega de marcar grandes campos semânticos: vivacidade ou melancolia, desespero, arroubo,

paz ou solenidade. O rodapé “Elegia” nos diz: “o que você não poderá jamais é interpretar no ‘Estudo’ [de Chopin] como risadas o que chamei de gritos, nem a quasi terrífica potencialidade da ‘Sétima’, como descrição do rosal da praça Floriano (p. 363)”.

Além desses “campos semânticos”, desses moods, como Aaron Copland escreveu em passagem assinalada por Mário de Andrade do livro What to Listen for in Music, existem as inflexões culturais, as marcas que não se apagam, associam-se às sonoridades, trazidas por informações extramusicais que terminam por se tornar música… Biografias, confissões, títulos, metáforas literárias, textos programáticos, tudo isso faz parte da música, “dirige” esses vastos horizontes emocionais, cujo ponto de partida é pouco determinado.

Uma associação mais orgânica ainda é a da incorporação da palavra, nas obras cantadas. Se o ritmo “animalizava”, a palavra devolve a consciência, contaminando o som com seu sentido. Por outro lado, carregada de substância musical, ela se torna mais opaca, dissolve um pouco sua significação nas encantações musicais próprias à música.

As análises de Mário de Andrade sobre a ópera são baseadas fundamentalmente nesses princípios. Wagner, Verdi, Carlos Gomes foram por ele amplamente explorados, exemplarmente analisados. Seu estudo de 1936 sobre a Fosca, de Carlos Gomes, é talvez o que melhor caracteriza esses processos.

As questões da semântica do som, dissemos, vinculam-se às mais antigas tradições do Ocidente. Mas, no século xIx, elas tornaram-se mais nevrálgicas do que jamais. O desejo de expressão emocional, que provocava a mistura das artes e dos gêneros, os sentimentos indefiníveis, mas nomináveis, levaram-nas então ao apogeu – isto é, de um ponto de vista histórico, perfeitamente verdadeiro, e Mário de Andrade o sabe. As críticas metafóricas de Baudelaire, os motivos condutores de Wagner, os múltiplos poemas sinfônicos e outras formas híbridas ligam Mário de Andrade à tradição romântica: não serão esses os únicos traços de união.

É justamente “Romantismo Musical”, de 1941, que exprime lapidarmente: “[…] o que essencialmente caracteriza o espírito musical “romântico” é ao mesmo tempo essa pretensão de atingir, por meio de sons inarticulados, o domínio da inteligência consciente, isto é, justamente o vaidoso domínio que só se manifesta por meio dos sons articulados, por meio das palavras”.

Para depois constatar o mistério: “A música não sabe nem conseguirá jamais saber quais os seus limites expressivos. É tão forte e de tal forma imprevisível o seu dinamismo encantatório e o seu poder associativo e metafórico que ela, si não consegue se realizar em juízos definidos dentro de nossa compreensão, no entanto vaporosamente se divulga, se derrama por muitos escaninhos da nossa consciência e assume, não as formas, porém os fantasmas e os mais profundos avatares do juízo”.

Mistérios acessíveis, porém. Se Mário de Andrade não fabrica uma estética da percepção, fabrica instrumentos muito aguçados e eficazes para proceder às perfeitas análises semânticas de “Romantismo Musical” e de vários outros textos, muitos deles de Mundo Musical.

Éthos

A Pequena História da Música traz uma inflexão particular a esses desenvolvimentos. A Grécia antiga estabelecera ligações estritas entre formas musicais e significações “éticas”. Essas formas eram “coletivizantes” e sobretudo baseadas no ritmo. Eram vividas como capazes de nobilitar, sensualizar, enfraquecer, fortificar: cada modo possuía o seu éthos.

Acompanhando Mário de Andrade, a história revela que o ritmo coletivizador deixa a preponderância para ser substituído pela melodia. Ela não terá o mesmo poder “ético” dos tempos “simples” da Antiguidade. Mas poderá adquirir outros, modernos, como nos revelará os quatro textos intitulados “Músicas Políticas”.

Reencontrar um éthos. Não mais os perfeitamente cristalizados dos gregos, ancorados no fundo cultural anônimo. Ele surgirá do esforço político, social, consciente do compositor. Este recebera, desde Mozart, um legado sedutor, mas difícil: o da liberdade de ser artista. Assim, arte e música puderam tornar-se apenas manifestações gratuitas, puderam rebaixar-se ao serviço da vaidade individual do criador. Eis o grande debate dos últimos textos de Mário de Andrade.

O artista, o artesão e a política

Mário de Andrade está sempre mais preocupado com o criador e menos com a obra. Tudo se passa como se a reforma do artista acarretasse diretamente a reforma da arte. O programa é, então, reformá-lo.

Em “O Artista e o Artesão”, de 1938, publicado em O Baile das Quatro Artes, encontra-se um escorço histórico do objeto artístico. Primeiro, a arte foi submetida a empregos diversos (rituais, por exemplo). A beleza era um princípio coletivo, situado além dos objetos, que se conformavam a ela ou participavam dela. O cristianismo trouxe uma forte individualização, e a beleza tornou-se o objeto de uma busca – e um achado pessoal: assim seria, sobretudo, no Renascimento. Pouco a pouco, a obra passa a ser a expressão de um “eu” tão cada vez mais forte, que ele se torna, para o próprio artista, mais importante do que a obra em si.

Vanguarda pela vanguarda, pesquisa pela pesquisa, tudo isso seriam as consequências de um equívoco contemporâneo. O artesanato poderia ensinar ao artista a submissão à obra. Construí-la deveria ser, primordialmente, o objetivo do “criador”.

“O Artista e o Artesão” foi escrito em 1938. Ele se encontra nos limites de um último período da vida de Mário de Andrade, período ao mesmo tempo atormentado e fortemente colorido por exigências políticas. O artesanato adquirirá então uma dupla função. Além da primeira, moralizar o artista colocando-o por trás de sua produção, vem agora a consciência política exigindo que ele ponha a obra a serviço de seu empenho.

A música, coletivizadora acima de tudo, “a mais social das artes”, é a primeira de todas a dever submeter-se a essa exigência. O músico por excelência é o mártir politicamente sacrificado de “O Maior Músico” (p. 37). Ou melhor, duplamente sacrificado, pela política e pela consciência artesanal.

“Elegia” (p. 361) traz as questões da semântica sonora, mas agora fazendo crescer imensamente a responsabilidade do artista: os impulsos, os arroubos, os “campos semânticos” podem e devem ser dirigidos. Cabe ao artista definir as direções.

Se a poesia é um poderoso auxiliar semântico para a música, a ópera é a melhor das formas “militantes”. “Do Teatro Cantado” (p. 315) menciona uma “conversão à ópera”; veremos como ela se deu. Mário de Andrade toma para si a tarefa de fazer ele mesmo uma ópera: Café é prova de seu empenho, e também exemplo a ser seguido.

Depois do pontapé de Mozart

“O Pontapé de Mozart” (p. 191) assinala um divisor de águas. O Ancien Régime engendrara o artista serviçal, criador de obras de circunstância. Mozart, desvinculando-se do mecenas, instaurara a liberdade completa do artista, superior à obra, superior à sociedade. Um outlaw, diz Mário de Andrade em O Banquete.

O artista pode perder-se em si ou encontrar-se pela consciência política pondo sua obra a serviço dela. Mundo Musical revela o quanto a ideia de “consciência política” pode significar águas turvas.

Águas ainda em grande parte românticas, em todo caso. O artista é o mesmo outlaw (ou “fora da lei”), inadaptado, capaz no entanto da nobre causa. Significativamente, uma das derivações de Café é Boris Godunov e a grand opéra. As semânticas sonoras articulam-se com um passado que “Romantismo Musical” revela, e são os agentes de um empenho ao qual o artista adere, menos com a consciência do que com as vísceras.

Águas também perigosas. O artesanato, o empenho, acabam excluindo vanguardas e experimentalismos. E terminam por recuperar uma “sã demagogia”, capaz de levar as multidões para o bom caminho.

Essa sã demagogia parece, aliás, ter uma consequência um pouco inesperada em Mário de Andrade. Pela boa causa, os efeitos demagógicos na arte são permitidos e desejáveis. Ora, isso vai fazer com que irrompa no discurso de Mário de Andrade uma retórica, uma eloquência, uma grandiloquência incontidas: tentativas de voos… condoreiros; encontramo-nos, portanto, novamente próximos do romantismo.

Estas breves notas estão muito longe de oferecer uma ideia da dramática e densa complexidade própria a Mundo Musical. Ela mostrar-se-á somente em cada passo do percurso.

*Jorge Coli é professor titular em História da Arte e da História da Cultura na Unicamp. Autor, entre outros livros, de O que é arte (Brasiliense). [https://amzn.to/44gS82N]

Referência


Jorge Coli. Música final: Mário de Andrade e sua coluna jornalística “Mundo musical”. Campinas, São Paulo. Editora da Unicamp\ Edusp, 2024, 590 págs. [https://amzn.to/4dtr58X]


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